Não é de hoje que Call of Cthulhu tem sido chamado de "um dos melhores jogos de RPG de todos os tempos" e talvez seja mesmo! Mas algo que por vezes acaba sendo subestimado a respeito desse clássico jogo de horror, que recentemente chegou a sua 7a edição, é que ele também pode ser utilizado como um dos mais versáteis e bem pesquisados RPG Históricos existentes.
Além da ambientação clássica que geralmente se passa nos Estados Unidos dos anos 1920, expansões históricas de CoC permitem levar o jogo até os dias gloriosos e decadentes do Império Romano (Cthulhu Invictus), à obscura Europa da Idade Média (Cthulhu Dark Ages), para a Inglaterra Victoriana (Cthulhu by Gaslight), uma versão bem particular da Segunda Guerra Mundial (Achtung! Cthulhu e World War Cthulhu) e até os dias de paranoia da Guerra Fria (World War Cthulhu: Cold War).
Honestamente, é possível jogar CoC em qualquer época ou período histórico. Adotando para isso o princípio definido por Lovecraft de que "Os Mythos são, os Mythos foram e os Mythos sempre serão" para nortear a presença desses horrores ao longo de toda existência humana.
Aqui estão CINCO razões que comprovam porque Call of Cthulhu é um dos melhores RPG históricos existentes.
E não, isso não significa dizer que CoC parece uma versão de Downton Abbey com tentáculos (embora essa ideia possa dar origem a uma aterrorizante campanha). Quando Sandy Petersen e os demais game designers da Chaosium estavam idealizando a primeira edição de CoC em meados de 1981, eles decidiram que o jogo iria se passar na década de 20, o período no qual H.P. Lovecraft viveu e escreveu suas histórias envolvendo os Mythos de Cthulhu.
A princípio, poderia parecer uma ideia estranha, e não funcionar bem, mas no fim das contas, foi algo genial. Centrar o jogo básico em 1920 significava transformar CoC em um jogo de fundo histórico assim com o um jogo de horror.
CoC permite ao mestre inserir questionamentos a respeito de sociedade, política, comportamento, civilização, economia... existe a oportunidade de ambientar sua aventura tendo como pano de fundo a Revolução Francesa, a sangrenta Guerra do Vietnã, a Guerra dos 100 anos, a Luta pelos Direitos Civis no Sul dos EUA ou os dias de medo pós-11 de setembro.
Mais do que simplesmente situar sua narrativa nesse período, mestre e jogadores precisam incorporar elementos do período à história que estão contando. O que as pessoas vestiam nessa época, como se comportavam, o que pensavam, como tratavam uns aos outros e quais eram seus valores e defeitos? Uma aventura de CoC permite mergulhar em períodos conturbados, em momentos marcantes e acontecimentos que levaram o mundo a ser o que ele é hoje.
O potencial histórico de uma aventura de Cthulhu extrapola e muito a noção de que é "apenas" um jogo de horror. Em que outro RPG os jogadores tem a chance de enfrentar os nazistas em uma aventura se passando na Paris ocupada pelos alemães, lutar com soldados da União nos campos de Gettysburg ou descer o Nilo a bordo de um barco a remos, contemplando a construção das Pirâmides ao longe? Tudo isso usando o mesmo sistema e uma premissa semelhante.
Além de ser um excelente motor para a imaginação, uma típica aventura de Cthulhu permite tocar em assuntos espinhosos e profundos, mas que podem (e devem) ser debatidos: Racismo, preconceito, sexismo, nacionalismo... são temas que podem ser abordados em cenários de CoC como pano de fundo de uma investigação sobrenatural. Que tal assumir o papel de escravos fugindo pela Ferrovia Subterrânea na Louisiana? Ou fazer parte do Movimento de Independência nas 13 Colônias? Quem sabe os personagens possam assumir o papel de Cristãos perseguidos pelos romanos na Judeia.
Para absorver a experiência de CoC por inteiro, os jogadores precisavam imaginar dois mundos diferentes: um mundo perdido nas sombras do passado e um mundo aterrorizante, sufocado pelos horrores Mythos de Cthulhu. Foi essa noção, até então, algo inédito que deu o tom para o jogo crescer dali para frente.
Esta é a principal razão pela qual Cthulhu é capaz de esticar seus tentáculos gosmentos através dos mais variados períodos históricos. Cthulhu, Nyarlathotep, Yog-Sothoth e toda a hoste de monstruosidades dos Mythos são eternos e seus poderes, comparados a nós humanos, os torna algo próximo a Deuses. Sabe aquela comparação entre "Formigas e Bota"? Nós somos como as formiguinhas vivendo em cidades super-populosas como formigueiros que sequer imaginam haver algo tão devastador, tão perto. E quando os Deuses dos Mythos acordarem, vão usar a tal bota para nos esmagar sem piedade e reduzir nossas cidades e realizações a escombros.
Essas criaturas bizarras podem ser tratadas como entidades alienígenas que surgiram através das esferas do tempo e espaço, mas são também seres imortais para os quais a passagem das eras pouco importa. Isso significa que eles sempre estiveram aqui e sempre estarão. Não há um único momento da história da humanidade em que Cthulhu, por exemplo, não estivesse na Terra: observando, planejando, esperando... ele pode estar dormindo no fundo do mar, mas pode ter certeza que um dia voltará e quando acontecer prepare-se para a pior segunda-feira da sua vida.
O mais perturbador a respeito de Cthulhu é que ele ainda estará aqui muito depois da humanidade ter desaparecido por completo, extinta por ele próprio ou por algum outro acontecimento marcante capaz de nos varrer do mapa. O fato desses seres estarem entre nós, abre as portas para infinitas possibilidades e permite que o Mestre centre suas aventuras onde e quando bem entender.
Em CoC é perfeitamente possível que os jogadores assumam o papel dos membros de uma tribo de caçadores e coletores pré-históricos, vagando pela Era do Gelo e deixando seus desenhos rudimentares em cavernas. É possível que os personagens sejam membros da frota de Colombo que veio parar na América, descobrindo coisas estranhas no Novo Mundo. Quem sabe eles estejam presentes na Era da Pirataria, singrando os mares e disparando canhões contra monstros das profundezas. E por que não, voltar os olhos para o futuro, quando as estrelas se mostrarem como a fronteira final para exploradores, estes conhecerão os confins do Sistema Solar, e que horrores os aguardam entre as estrelas?
Tudo que se precisa é de um mestre interessado em centrar a aventura em um determinado período e pronto! As opções de cenário são quase infinitas. Tomemos por exemplo o suplemento Strange Aeons da Chaosium, lançado lá pela metade da década de 90. O primeiro volume dessa antologia trazia três cenários que se passavam na Inquisição espanhola, na Inglaterra Elizabethana e numa Colônia Lunar num futuro não muito distante. Já o segundo volume, Strange Aeons II, permitia jogar no Oeste Selvagem, no Japão Feudal, nas Guerras da Reforma Católica, nos turbulentos anos 60 e em muitos outros lugares e épocas. Esses dois suplementos abriram minha percepção para as possibilidades existentes e o resultado literalmente explodiu minha cabeça.
CoC é um jogo extremamente realista. Claro, talvez os shoggoths e Pólipos Voadores não existam de fato, mas quando o jogo foi escrito, sua mecânica era realista de uma maneira nunca vista até então. Os personagens em CoC não são heróis capazes de encarar inimigos frente a frente, brandir armas, executar manobras e conjurar magias devastadoras. Em CoC as habilidades de combate geralmente são secundárias e os personagens raramente são capazes de fazer muito mais do que tentar escapar do confronto. Isso porque, se eles não o fizerem, há o risco de morrerem esmagados ou destroçados pelos horrores que eles próprios tentam conter.
A fragilidade dos personagens em CoC faz parte das lendas a respeito do sistema.
A morte, destruição e obliteração estão sempre a um passo. Como acontece no mundo real, um soco pode lhe custar alguns dentes, uma facada pode perfurar seu pulmão e fazer você cuspir sangue, um tiro irá te mandar para o hospital ou para a cova. Isso sem mencionar os devastadores ataques de monstros gigantescos e criaturas bizarras capazes de transformá-lo em um borrão vermelho.
E se isso não é o bastante ainda existe um insidioso perigo adicional: Sanidade!
De fato, um dos maiores riscos nesse jogo não é morrer de maneira dolorosa - coisa que pode acontecer facilmente, mas ficar completamente louco, descobrindo os segredos e terrores ocultos no mundo. Atrás de cada revelação bombástica, em cada página amarelada que forma os tomos profanos dos Mythos ou em cada ritual secreto, permeia o risco de ir longe demais. Nenhum jogo invoca a sensação de que "conhecimento é perigoso" e que "ignorância é uma benção" quanto CoC.
E esse senso de realidade extremo cria uma espécie de sintonia com o mundo real.
Um jogador de primeira viagem que participa de sua primeira aventura de CoC sabe que não pode correr o risco de levar um tiro; se lutar com o maníaco armado com um machado ou (vale-me Deus!) uma abominação aterrorizante as coisas podem terminar mal. De certa maneira, a realidade extrema em CoC ajuda a enquadrar o jogo como algo próximo do mundo real, diminuindo a distância entre jogador e personagem.
Em termos de comparação, um guerreiro de Dungeons and Dragons pode dar cabo de um bando de orcs furiosos com sua espada mágica, enquanto um super-herói em Mutantes e Malfeitores, pode derrotar um exército inteiro voando e arremessando tanques com sua super-força. Mas e em CoC? Esqueça! Aqui, seu professor universitário terá de encarar um monstro aterrorizante, improvisando seus ataques com um atiçador de lareira, isso se ele não tiver enlouquecido por completo apenas por ter visto a criatura.
Está bom de realidade ou quer mais?
Os Mythos de Cthulhu um dia estiveram restritos a um gênero menor, o horror pulp, tratado como sub-literatura em sua época de ouro. Hoje, seu DNA pode ser detectado em inúmeras formas de entretenimento em histórias, novelas, quadrinhos, filmes, séries, desenhos animados, música, videogames, RPG, jogos de tabuleiro, algo que está sempre em expansão.
Eu imagino o que aconteceria se alguém conseguisse roubar o cadáver de Lovecraft, que descansa num Cemitério de Providence, o reduzisse à sais essenciais e o trouxesse de volta a vida usando a magia Ressurreição. Lovecraft, sem dúvida ficaria chocado (isso depois de se recuperar da experiência) com a informação do quão popular suas criações e ele próprio se tornaram.
Não é brincadeira! Esses dias eu fui fazer uma camisa pra mim com a cara feia de Cthulhu e o atendente da loja perguntou o que era essa coisa na estampa que eu havia escolhido. Eu desconversei, como normalmente costumo fazer e disse que era "um tipo de monstro". Ele deu mais uma olhada na imagem e comentou: "Isso aí não é o Cthulhu"?
Quando o pobre Lovecraft, que morreu praticamente na penúria, poderia imaginar que sua criatura icônica ganharia status de fenômeno pop? Atualmente Cthulhu é extremamente conhecido mundo a fora e isso se reflete na quantidade de produtos licenciados que são lançados diariamente, nas mais variadas mídias.
Mas mesmo no início, quando os Mythos não passavam de uma coleção de nomes esquisitos, difíceis de escrever e quase impossíveis de pronunciar, os autores já contemplavam a ideia de adaptá-los para diferentes épocas e períodos. Lovecraft deu a deixa escrevendo a História do Necronomicon citando lugares e pessoas reais, como base para o mais tenebroso dos livros. A maneira como ele traçou a história do tomo fez (e infelizmente ainda faz) algumas pessoas acreditarem que ele de fato existisse. August Derleth, um dos mais próximos discípulos de Lovecraft escreveu The Lurker in the Throshould se passando no século XVII. Por volta de 1950, Robert Bloch escreveu histórias com os Mythos se passando na Era Atômica. Em 1960 e 1970, Ramsey Campbel misturou os Mythos com o clima paz e amor com resultados bizarros. Stephen King adicionou uma pitada dos Mythos em vários dos seus contos e fez um aceno para Lovecraft em mais de um dos seus romances de horror contemporâneo. E geração após geração de autores continua trabalhando para expandir os conceitos imaginados por um sujeito queixudo e esquisitão lá no início do século XX.
Cada autor, contribuiu à sua maneira para a Mitologia de Cthulhu acrescentando verdades, princípios, mentiras ou informações. Uma vez que Cthulhu está presente ao longo de toda história humana, sempre é possível apontar para sua presença nefasta, como se fosse um tumor maligno crescendo e se alimentando de nossos tecidos. Se o autor quiser que Roma tenha testemunhado a presença do Culto de Cthulhu pode ter certeza que é possível. Se Nyarlathotep esteve presente quando a Bomba Atômica foi criada, isso é perfeitamente possível. Se alguém quiser imaginar que Sodoma e Gomorra foram varridos por uma explosão nuclear deflagrada pela Grande Raça de Yith, claro que pode ser imaginado.
Na história nebulosa dos Mythos, verdade e mentira estão sempre abertas a interpretação, a única certeza é que eles estão aqui e sempre desagradavelmente perto. E se você gosta de teorias de conspiração e de história alternativa o que está esperando para jogar esse negócio?
5. A História Real está repleta de Horror
Pode ser um tanto desanimador mencionar isso no final de nossa lista, mas é preciso reconhecer que a história do mundo real é marcada por acontecimentos chocantes, guerras sangrentas, genocídios e outras coisas medonhas que parecem ter saído da ficção. Mas infelizmente, tudo isso aconteceu com pessoas de carne e osso, que sofrearam e tiveram de enfrentar esses períodos de incerteza.
Embora não seja o objetivo do jogo trivializar o sofrimento humano, esses períodos de terror e destruição funcionam perfeitamente como pano de fundo para cenários de CoC. Se você pensar bem, faz perfeito sentido. Os Horrores dos Mythos proliferam quando a humanidade é arrastada para os limites da civilização e barbárie. É de se supor que ghouls adorem uma boa e velha Guerra, afinal a quantidade de alimento para satisfazer seus apetites funestos aumenta exponencialmente nesse período. Os Insetos de Shaggai pequenos monstrinhos que adoram uma tortura adorariam assumir o controle de um grupo de inquisidores à serviço de Torquemada. Um culto apocalíptico poderia se filiar ao Estado Islâmico com o objetivo de explodir pessoas como sacrifícios para seus deuses profanos, disfarçando tudo como terrorismo jihadista.
É quando a humanidade acaba sendo levada à beira do precipício que os horrores dos Mythos ganham espaço. O dia a dia mostra que apesar de termos avançado muito, ainda somos capazes de verdadeiras atrocidades. Abra o jornal e dê uma olhada na quantidade de assassinatos, violência e mortes que somos capazes de impingir uns aos outros. Desde a presença de assassinos em série gerados pelo nature ou nurture, até homens bomba se explodindo, fundamentalistas religiosos atropelando inocentes nas ruas, aviões sendo derrubados e Extermínio Racial em pleno século XXI.
Muitos teóricos acreditavam que a essa altura nós já teríamos encontrado nosso equilíbrio e atenuado nossos preconceitos, domado o demônio que vive à nossa sombra, mas não... continuamos matando e a principal mudança é que implementamos maneiras mais eficientes e devastadoras de fazê-lo.
Olhando para trás, parece que avançamos muito, desde os Campos de Concentração e pogrons, das perseguições religiosas e fogueiras da Inquisição. Mas será verdade? Olhar para a estrada que percorremos revela manchas de sangue e cadáveres enterrados debaixo de cada lajota. Se olhar muito, você pode não gostar do que vai ver. O horror está presente em cada momento de nossa história antiga, recente e atual, e embora essa constatação seja pouco confortante parece que não estamos perto de mudar isso.
Para alguns, usar um jogo de Horror como ambientação para um RPG histórico, pode parecer errado até de gosto duvidoso, mas eu digo que o Horror propele nossa civilização desde quando um humano infeliz, mais macaco que homem, parou de pé, ereto, com o objetivo único de esmagar o crânio de seu irmão com um pedaço de osso. É o desejo de triunfar sobre os outros, torná-los pacíficos e por que não submissos, que levou a criação de Impérios e Dinastias. Não foram os tiranos que escreveram seus nomes nos anais da história? Não foram conquistadores que coletaram espólios e construíram a Riqueza das Nações? As Potências atuais não se ergueram a partir de Revoluções, manquitolaram em guerras Guerras Civis fratricidas e forjaram sua identidade nacional no fogo da injustiça?
Em CoC, melhor do que qualquer outro jogo, temos a chance de abrir a Caixa de Pandora para dar uma espiada. E até mesmo o Horror dos Mythos às vezes empalidece com o que encontramos no fundo dessa caixa.
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Bom pessoal, é isso... CoC está aí para ser jogado, conhecido e explorado.
Sem dúvida, um dos melhores RPG de Horror, mas muito mais do que um simples RPG de horror.
ResponderExcluirExcelente texto! Apenas uma coisa que me deixou curioso, à respeito de "1. Call of Cthulhu foi idealizado como um jogo de época desde o início". Há alguns dias (não me lembro onde, sou muito cabeçudo) li que quando Sandy Peterson pensou o jogo ele o fez tendo a época presente como período do cenário, pois acreditava que Lovecraft escrevia com seu pensamento sempre à frente, e que seria ideal acompanhar esse raciocínio. Porém a Chaosium achou melhor focar o cenário no período em as histórias ocorreram.
Mas como disse, nem sei mais onde li isso, rsrs... Ou se foi apenas um sonho...
Esse texto ficou tão convincente e esmerado que devia vir impresso na caixa do jogo. Parabéns! Não é a toa que esse é meu blog número 1!!
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