É praticamente um consenso entre os fãs de Chamado de Cthulhu que "A Assombração" (The Haunting), escrito por Sandy Petersen é o cenário mais famoso do jogo.
Mas o que torna essa pequena aventura de horror tão popular e o que explica a sua longevidade?
A razão não poderia ser mais óbvia: ela literalmente ensina como jogar Chamado de Cthulhu. Tanto no que diz respeito ao estilo e principais elementos da ambientação, quanto a regras e diretrizes do sistema. Se você quiser ensinar o jogo a alguém, essa história poderia ser o equivalente a aula de introdução, um CoC 101 se preferir.
"A Assombração" não é apenas uma aventura clássica; é de longe a mais jogada e continua sendo o ponto de partida para muitos jogadores iniciantes. A explicação para essa predileção é que ela ensina como jogar e, mais importante, como executar uma sessão de RPG voltada para a investigação - que é o diferencial da ambientação.
Diz a lenda que A Assombração foi a primeira aventura escrita para Chamado de Cthulhu e a história que Sandy Petersen escolheu para apresentar o protótipo do jogo para seus colegas em uma espécie de test drive do sistema e ambientação. Ainda segundo a lenda, o autor não disse ao seu grupo de jogadores qual seria o tema da aventura que eles iam jogar. Quando um deles, lá pela metade da sessão disse que aquela história parecia algo saído da ficção de H.P. Lovecraft, Sandy soube que estava no caminho certo.
A proposta desde o início era algo inovador para a época.
Até o início da década de 1980, a maioria dos aficionados pelo então recentemente criado RPG participavam invariavelmente de explorações de masmorra (o bom e velho dungeon crawl). Essa modalidade de aventura junto com os wargames originou os RPG de mesa. Nesse tipo de jogo os personagens adentram, exploram e vasculham uma série de salas conectadas que formavam um grande complexo. Em alguns aposentos misteriosos encontram armadilhas, em outros monstros e em alguns (com sorte) acham tesouros. Certas salas também contém enigmas e quebra-cabeças para desafiar a mente dos jogadores e não apenas a habilidade ou sorte nos dados.
No final das contas as masmorras apresentam uma série de problemas interligados que precisavam ser trabalhados até todos os cômodos serem limpos. Quando Petersen escreveu sua aventura investigativa pioneira, ele partiu de um princípio semelhante.
A história dependia de uma série de pistas soltas que precisavam ser encontradas, analisadas e interpretadas corretamente pelos personagens. Da análise dessas pistas independentes viria a conclusão para a parte final da história. Talvez o grupo tivesse de encontrar um objeto, aprender o que ele fazia e só então, usá-lo em um ritual. Quem sabe se tratava de uma informação pesquisada numa biblioteca, complementada por um acadêmico e usada para descobrir o nome da criatura atormentando um lugar. Ou ainda, eles tivessem de ouvir o relato de uma testemunha, averiguar a verdade e só então encaixar em outra pista para fazer sentido.
Seja lá como for, jogos investigativos eram encadeados como as masmorras onde uma sala conduzia à próxima, até atingir o aposento final. Mas aqui, uma pista levava a outra, que por sua vez iria conduzir até a solução do mistério proposto.
Os autores de Chamado de Cthulhu imaginavam que aventuras investigativas poderiam ser um desafio diferente para os entusiastas de RPG. A Assombração, o protótipo para aventuras investigativas, foi incluída na primeira edição de Chamado de Cthulhu e desde então esteve presente em praticamente todas versões do jogo.
Ela funcionava (e ainda funciona) porque o roteiro tem uma estrutura em três atos:
O grupo começa pesquisando o caso de uma família que fugiu apavorada de uma casa supostamente assombrada. O início ensina que o primeiro passo em um RPG baseado em investigação é pesquisar as fontes. Seja numa biblioteca, arquivo público ou jornal, as informações estão lá, em algum lugar. Você deve obter o máximo possível de informações disponíveis publicamente, essa é a primeira regra.
O grupo então, fica sabendo que outras famílias também abandonaram a casa e que o endereço parece ter servido como a sede para um culto sinistro décadas atrás. Que culto era esse? o que queriam? Eles então tem que escavar mais fundo, pesquisar arquivos de jornais e quem sabe encontrar testemunhas do ocorrido. O jogo então apresenta outro diferencial, os Recursos (Handouts), pistas físicas daquilo que foi encontrado, outra inovação do jogo.
Tudo funciona como em um filme de terror: tem o velho que viu alguma coisa e implora para o grupo não visitar o lugar depois do anoitecer, os antigos rumores sobre coisas inexplicáveis acontecendo na calada da noite e as histórias contadas em sussurros pela vizinhança. Esses indidios pavimentam o caminho para as revelações que ainda estão por vir e que serão encontradas no momento propício. Até então, o que se tem são indícios e velhas histórias.
Então o grupo decide visitar a casa e a aventura oferece um mapa divertidamente linear do que existe em cada aposento.
Estamos de volta à masmorra, mas em vez de apresentar aos jogadores uma série de desafios, a aventura investigativa nos dá uma série de salas assustadoras nas quais estão espalhadas pistas que precisam ser reunidas. Aqui também o grupo é introduzido ao clima e atmosfera assustadoras. Com os indícios sugeridos no primeiro ato é fácil fazer os jogadores saltarem diante de suas próprias sombras e desconfiarem de qualquer ruído incomum. O cenário também fornece ao Guardião as ferramentas para agitar a panela na forma de efeitos mágicos sinistros implantados pelo monstro em seu covil. Coisas estranhas acontecem na casa dita Assombrada e se ver é acreditar, há muito para ser visto e temido aqui.
"A Assombração" às vezes é conhecida pelo título "A Casa Assombrada", mas um título adequado poderia ser Trem Fantasma ou Labirinto Assustador, já que essa parte da aventura funciona como uma atração de parque de diversões. Os jogadores são conduzidos através de uma série de salas enquanto o Guardião descreve os incidentes sinistros e macabros um a um.
Embora bastante simples, esta seção é uma aula magistral de como conduzir uma historia de RPG de terror. É claro, o modelo de cenários de aventura mudou desde a primeira publicação de "A Assombração", mas a estrutura pode ser reconhecida nessa aventura: prepare o terreno com indícios, faça com que eles pesquisem, permita que eles investiguem os aposentos da casa, prepare os sustos.
E então vem o ato final, outro exemplo de como o cenário se propõe a ensinar as pessoas como fechar uma aventura de Chamado de Cthulhu com chave de ouro. O confronto final ocorre em um ambiente escuro e confinado. Os poderes do vilão são descritos em detalhes, deixando claro que os investigadores estão em franca desvantagem diante dele. O horror e o medo despertado pela presença do sobrenatural devem ser sufocantes. O cenário deixa claro que o monstro é imune às balas, é resistente aos ataques e que comanda objetos inanimados. Ele também possui um sortimento de feitiços perigosos.
Um dos grandes méritos de "A Assombração" é colocar os jogadores na posição dos personagens, indivíduos que não estão preparados para enfrentar aquela tamanha sobrenatural. Diferente dos bravos heróis que enfrentam os perigos com espadas mágicas e um arsenal de feitiços, os investigadores dependem daquilo que aprenderam nos atos anteriores, de sua astúcia e de um pouco de sorte para sobreviver. E mesmo que sobrevivam, eles não irão sair incólumes da experiência. E é aí que está a graça!
Talvez a maior inovação do sistema criado por Sandy Petersen e apresentado em "A Aparição" seja a fidelidade a obra de Lovecraft. Nela, os homens e mulheres confrontam um horror indescritível que não apenas pode causar ferimentos físicos, mas deixar cicatrizes mentais e emocionais.
Outro elemento interessante é que a aventura não se encerra quando os sobreviventes conseguem deixar a casa assombrada. O roteiro deixa propositalmente uma série de perguntas sem resposta para o grupo preencher essas lacunas. Um grupo realmente fisgado pela proposta do jogo vai querer saber mais detalhes sobre o que aconteceu no passado, sobre o perigoso culto e sobre o terror que eles acabaram de enfrentar. Outra lição a se aprender, sempre deixar uma porta para futuras sequências.
Aqueles que jogam "A assombração" recebem uma base sólida não apenas sobre como é uma aventura investigativa, mas também como executá-lo. Não é raro que os jogadores que se tornam mestres de Chamado comecem a narrar justamente através desse cenário. É inegável a contribuição de "A Assombração" para a formação de Guardiões.
Embora "A Assombração" não tenha sido a primeira aventura que joguei de Chamado de Cthulhu (creio que foi a terceira), ela possivelmente foi aquela que me chamou a atenção e que me levou para dentro do universo lovecraftiano. Desde então, devo ter narrado essa pequena joia uma dúzia de vezes, sempre com resultado bastante positivo.
Mais de 40 anos depois da sua primeira publicação, "A Assombração" permanece tão inovadora e eficiente quanto era quando foi lançada. Tanto que os narradores continuam escolhendo mestrá-la em convenções e encontros para jogadores iniciantes. Nos encontros organizados pela Chaosium, como na GenCon por exemplo, há sempre uma mesa para novatos em que essa aventura está disponível.
Até hoje não tive o prazer de jogar ou narrar esse cenário, mas em breve estarei com um grupo que nunca jogou Chamado de Cthulhu e essa com certeza será a primeira aventura.
ResponderExcluirPostagem super interessante e informativa. Mas o que mais me chamou a atenção é o amor que a pessoa que escreveu tem pela aventura em si. Que bonito. Parabéns
ResponderExcluirEssa foi a primeira aventura que narrei de CoC e sempre utilizo para apresentar o sistema.
ResponderExcluir