quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Açougue de Carne Humana - O Sinistro Caso dos Crimes da Rua do Arvoredo

 

Dando continuidade a história dos infames crimes da Rua do Arvoredo.

Além de José Ramos e Catarina Palse, haveria um terceiro personagem na sinistra história, um tal Carlos Claussner, elemento importante na trama como um dos pivôs na tragédia. Ao seu tempo, ele também se tornaria vítima de seus comparsas.

Claussner, chamado por alguns de "alemão", era proprietário de um pequeno açougue situado na Rua da Ponte, atrás da igreja das Dores, uma região aberta e tranquila da cidade. Era um estabelecimento consolidado que atendia uma boa e fiel clientela - algumas das família mais importantes de Porto Alegre compravam ali seus suprimentos.

Claussner imigrara para o Brasil em 1859 com o título de “proprietário”, o que lhe conferia a distinção dos camponeses e artesãos, já que alguém nessa condição podia viver de rendimentos. Ele pertencia a uma classe média alta e vivia relativamente bem. Assim que chegou a Porto Alegre, estabeleceu o mencionado açougue. Isto, segundo a história, significa que deve de ter trazido consigo alguma riqueza. O ofício de açougueiro era um ramo de atividade rentável mas que não era bem visto pela população em geral. No entender da maioria, quem mexia com carne estava sempre em contato com sangue e vísceras de animais, era portanto atividade desagradável. A maioria das pessoas sequer entrava num açougue, considerando desagradável sentar os pés em tal estabelecimento. Eram escravos e criadas que faziam as compras de carne das casas de seus patrões. 

O açougueiro, no entanto, estava disposto a mudar isso: decorava, pintava e mantinha a loja sempre limpa. Alguns vizinhos se surpreendiam ao afirmar que a loja do alemão Cluassner nem parecia um açougue dado o asseio.

O alemão tornou-se amigo de Ramos em meados de 1861 e lhe ofereceu trabalho como assistente naquele mesmo ano. Ramos era hábil com a faca e não se apiedava dos animais, mesmo os novilhos novos que gritavam como bebês ao serem feridos. Ele até gostava do ruído, diziam. O mais importante é que Ramos era fluente em alemão e assim atuava como intérprete para negociar com a clientela, visto que o patrão não dominava bem o português. Como parte do acordo, ele ensinava um pouco o idioma e em contrapartida Claussner transmitia o ofício de açougueiro. 


Parece razoável supor que os dois se davam bem e que se tornaram amigos já que o alemão foi visto repetidas vezes na casa do empregado bebendo e trocando um dedo de prosa. Talvez tenha sido nesses encontros e nas conversas informais em alemão que os dois começaram a maturar o plano que lançaria seus nomes na infâmia. Talvez a ideia tenha surgido como uma suposição ou mesmo uma brincadeira... não há como saber, mas um dos dois sugeriu que assassinato poderia ser um meio de vida.

Supõe-se que em algum momento a dupla tenha colocado a teoria em prática. Há boatos de que Porto Alegre experimentou uma espécie de "epidemia" de desaparecimentos, sobretudo de visitantes e estrangeiros que chegavam a cidade para fazer negócios. Não que desaparecimento fosse algo raro em Porto Alegre. o lugar era uma cidade com cerca de vinte mil pessoas sem contar os escravos que não entravam nas contas do senso. Pode parecer pouco, mas para os padrões do Brasil colônia, era uma cidade de médio porte, quase grande. Gente chegava e partia sem se despedir, as vezes deixando tudo para trás. Havia também comércio e estabelecimentos onde dinheiro circulava de mão em mão.

Se foi Claussner ou Ramos quem sugeriu a coisa, nao importa. É de se supor, no entanto que foi o segundo quem envolveu a esposa, Catarina, na trama, ordenando que ela andasse pelas ruas escuras após o cair da noite, deixando-se ser vista pelas pessoas. Uma mulher bonita como Catarina era uma visão inesperada para homens rudes de passagem pela cidade. Ela não parecia uma prostituta, era bela e perfumada, vestia-se bem, talvez fosse uma senhora "não muito certa das ideias e disposta a ceder seus favores". Seja como for, sua presença era difícil de ignorar. Um sorriso, um sinal, um aceno eram o bastante para atrair a vítima em potencial até os fundos do açougue que era uma área deserta e escura. Lá estariam esperando os algozes com faca e porrete nas mãos dispostos a aliviá-los de seus pertences. É de se presumir que o trio tenha feito ao menos meia dúzia de vítimas dessa maneira, até mais. 

Mas em dado momento, foi o alemão Claussner quem sumiu. Se foi uma discussão sobre divisão de bens ou um desentendimento mais simples, não há como saber. É certo que Ramos começou a espalhar na vizinhança que havia comprado o negócio do antigo patrão e que dali em diante seria o único proprietário do açougue. Sobre Claussner ele simplesmente disse que havia decidido tentar a sorte em outras paragens, na Argentina informou a alguns, em Santa Catarina garantiu a outros. Ninguém sentiu falta do alemão, Ramos era o único amigo próximo.

Passou o tempo e os negociis iam de vento em popa, Ramos se estabeleceu como distribuidor de carne de qualidade. Suas peças faziam sucesso, o açougue ia bem, ele frequentava os teatros e passava o tempo livre na ópera. Em especial, sua casa era conhecida pela saborosa linguiça que estava na mesa de várias famílias da cidade. Que beleza a linguiça que o compadre Ramos vendia em sua loja!

Então, chegamos ao ano de 1864, quando foi a vez de um comerciante português chamado Januário e de seu caixeiro, José Ignacio de Souza Ávila desapareram misteriosamente. Mas no caso do português e seu assistente a coisa chamava a atenção pois eles eram bem estabelecidos e com família que deles sentia falta. A polícia na época era algo simbólico, mantinha a ordem, mas raramente se dedicava a investigar crimes, ainda mais quando não havia indício claro deles terem acontecido.


Nesse caso em especial, testemunhas haviam presenciado o português e seu caixeiro na companhia de José Ramos um dia antes do desaparecimento. Duas testemunhas afirmaram que os dois conversaram com Ramos animadamente depois do anoitecer. O açougueiro recebeu uma intimação para que explicasse o que fazia na companhia deles e onde os havia visto pela ultima vez. Ao chegar à delegacia, não revelou o que realmente tinha ocorrido, mas alegou que os desaparecidos teriam embarcado para a região de Caí. Parecia nervoso e evasivo, claramente escondendo alguma coisa.

Ao final do depoimento dado ao chefe de polícia Dário Rafael Callado, a duvida ficou no ar. O que estaria ele tentando acobertar?

Desconfiado da "história" contada, Callado decidiu investigar. Policiais ficaram de tocaia vigiando a casa de Ramos e o movimento do casal que lá residia. Havia algo estranho acontecendo: as janelas ficavam fechadas apesar do calor sufocante, Ramos entrava e saia carregando objetos e sua esposa parecia apreensiva. 

No dia 18 de abril, a polícia de Porto Alegre decidiu agir e buscar provas na residência na Rua dos Arvoredos. Mandato de busca era algo que não existia e a polícia podia simplesmente entrar a força na casa se desconfiasse do morador. Os dois policiais e o Delegado Callado não tiveram de buscar muito, deram de cara com algo horripilante no porão da casa. Em meio ao material usado para produzir linguiça haviam pedaços de uma pessoa desmembrada. Alertados, escavaram o chão de terra batida que parecia remexido.

Lá estavam enterrados os pedaços de outro cadáver, já em avançado estado de decomposição. Achavam que se tratava de um dos sumidos, mas não... a vítima foi identificada mais tarde como o alemão Carlos Claussner, antigo dono do açougue na Rua da Ponte e ex-patrão de José Ramos. Aquele mesmo que teria partido de veneta tempos antes.

A busca prosseguiu e ao examinar um poço desativado, no terreno dos fundos da casa, os policiais sentiram um fedor medonho emanando do buraco. Ramos tentou disfarçar afirmando que havia descartado restos de carne no poço, mas os policiais não ficaram convencidos. Um deles desceu com uma corda, tampando o nariz com um lenço para disfarçar o cheiro nauseante.


La no fundo encontrou os corpos de Januário Martins Ramos da Silva e de seu caixeiro, José Ignacio de Souza Ávila, de apenas 14 anos, os dois haviam sido esquartejados. Partes faltavam e os pedaços dispostos em ganchos lembravam os restos de um matadouro. O policial que fez a descoberta saiu de lá atônito, vomitando e tremendo dos pés a cabeça. "Parece o inferno", disse aos seus colegas.

Outros desceram no poço onde acharam ainda os restos recentes de um cachorro preto, rasgado da garganta ao ventre. Há boatos de que haveriam mais cadáveres secionados, cortados para o preparo da iguaria vendida pelo açougueiro. Mas as histórias foram abafadas dado o teor lúgubre da revelação.

A essa altura não havia mais como esconder o horror ocorrido naquele endereço. 

Crimes de natureza vil haviam sido cometidos por José Ramos em conluio com a esposa Catarina Palse e diante das evidências eles sequer tentaram esconder a culpa. O casal reconheceu que havia matado com o intuito de se apossar dos bens de suas vítimas. Há divergência sobre o número total de crimes. Alguns na época afirmaram que as gavetas e armários da casa estavam cheias de pertences de vítimas - baús e malas de viagem. A suspeita é que eles vinham atuando a anos, mas a investigação se concentrou apenas nos corpos achados na cena do crime. A polícia não queria mexer nesse vespeiro, por assim dizer.

O diário de Catarina, encontrado em seu quarto foi o ponto de partida para a investigação das mortes. Catarina Palse, tomada de remorso após a prisão, confessou à polícia que ali, naquele local, haviam ocorrido vários latrocínios. Mas o pior era a maneira como a dupla escolheu lidar com os corpos. A transformação deles em comida era algo digno de pesadelos.

Segundo os autos do processo, Catarina revelou seu modus operandi. Ela abordava as vítimas em potencial no Beco da Ópera, onde, nos dias de hoje, localiza-se a Rua Uruguai. Levava os escolhidos através dos becos escuros e ladeiras para um lugar combinado onde se dava o ataque. A vítima era então carregada até a casa na Rua do Arvoredo onde era degolada, esquartejada e descarnada. Toda carne extraida era moida e transformada na excelente linguiça vendida no açougue na Rua da Ponte. Segundo os registros da época, a iguaria, além de muito bem aceita no comércio, era consumida pela alta burguesia de Porto Alegre.


Consta que Ramos empurrou a culpa para os ombros de Claussner, tratado como “mentor” da fabricação de linguiça das vitimas. Seria essa a melhor maneira de impedir que os assassinatos fossem descobertos. Com a carne transformada em linguiça, os ossos eram dissolvidos em ácido ou incinerados no açougue, eliminando, dessa forma, as possíveis evidências dos crimes.

Na época, o delegado Dario Callado exercia concomitantemente as funções de Chefe de Polícia e Juiz de Direito, o que era autorizado em algumas províncias. Isso permitiu que ele agisse com celeridade no inquérito policial e cumprimento das funções judiciais. A sentença foi pronunciada rapidamente supostamente para que seu vínculo com o réu não levantasse suspeitas de sua isenção. 

Ramos foi acusado de latrocínio e condenado à pena de morte por enforcamento. Catarina acabou sendo presa como cúmplice, condenada a 13 anos de prisão. Nenhum dos dois, entretanto chegou a receber a punição estabelecida. A pena de Ramos foi comutada em prisão perpétua, e supostamente ele teria sido posto em liberdade após cumprir apenas 8 anos de encarceramento. Acredita-se que ele passou os últimos anos de sua vida no interior de Santa Catarina, trabalhando como açougueiro. Já Catarina Palse ficou presa por aproximadamente uma década, sendo transferida para um manicômio onde veio a falecer.

O autos do processo versando sobre os crimes da Rua do Arvoredo encontram-se hoje guardados na sede do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro - tendo sido transferidos para a então Capital do Império. Apesar da crença generalizada no sumiço dos papéis eles ainda existem e embora sucintos, provam que o caso realmente ocorreu e não foi mera invenção. 

Por muito tempo, o incidente foi tratado em Porto Alegre como uma lenda urbana, uma história assombrosa de tempos fúlgidos que seria um grosseiro exagero. Não é de se estranhar que autoridades em Porto Alegre tenham tentado varrer o caso para baixo do tapete da história, fazendo de conta que tais coisas jamais haviam acontecido, quanto mais em uma cidade civilizada como a Capital da Província Gaúcha. Era melhor para todos que aquilo não tivesse acontecido.

Entretanto, pergunte a qualquer porto-alegrense e ele prontamente reconhecerá a história macabra dos Crimes da Rua do Arvoredo e saberá de alguns detalhes. Crimes como esse marcam a história de uma cidade e acabam se tornando parte de sua própria existência.

2 comentários:

  1. Moro na Rua do Arvoredo. E como moradora, pesquisei bastante sobre o caso, tendo até lido uma publicação de 1940 dos autos do julgamento dos crimes do linguiceiro. Os assassinatos ocorreram e de fato é interessante pensar que a burguesia porto-alegrense comeu linguiça de gente. Porém, não foi possível provar sem sombra de dúvidas que os corpos foram realmente utilizados nas linguiças. E no próprio julgamento foi considerado que os corpos estavam jogados em decomposição, ao contrário das outras carnes. Mas é deliciosamente fascinante e asqueroso imaginar que nossos ancestrais comeram linguiça humana. Inclusive, a grande dúvida da vizinhança é sobre quem mora no terreno do açougue! Já que a numeração e o aumento da rua com o aterro do rio Guaíba, não nos permite saber onde ficava.

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  2. Bom dia mestre! Pensa em fazer review da quinta edição de lobisomen?

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