Apesar dos fracassos na Segunda e Terceira Cruzadas, a Europa ainda não havia se dado por satisfeita e tão logo o conflito terminou, uma nova Incursão começou a ser planejada.
O movimento, contudo, carecia de liderança, precisava de comandantes e principalmente dependia de dinheiro. Estava claro para todos que um empreendimento do porte das cruzadas era algo caro e arriscado, não apenas do ponto de vista militar, mas principalmente econômico. Não era possível deslocar grandes contingentes de pessoas, pagar pelo esforço delas, abastecer e suprir as fileiras de soldados apenas com promessas de redenção. Os homens precisavam de mais do que sustento espiritual, careciam de ouro tilintando em suas bolsas.
Ninguém fingia surpresa diante do fato que as Cruzadas eram um empreendimento tanto econômico quanto religioso, contudo, na Quarta Cruzada tal coisa ficou escancarada. A recompensa material era tão almejada, talvez até mais desejada pelos homens, que a espiritual.
Não por acaso, a Quarta Cruzada é considerada uma das mais absurdas e vergonhosas empreitadas da História Medieval. Não apenas seus resultados foram medíocres do ponto de vista militar, mas resultaram em um agravamento na conturbada relação entre a Santa Sé de Roma e a Igreja Ortodoxa. Resultou também na destruição de uma das maiores e mais modernas cidades da antiguidade, um orgulhoso marco da civilização que remontava ao Império Romano. Devastado pela sanha de riqueza de aproveitadores e ignorantes. O mundo antigo e a Idade Média nunca mais seriam os mesmos após essa trágica Cruzada.
A motivação principal dos cruzados uma vez mais focava na reconquista da Terra Santa supostamente pertencente à Cristandade. Mas diferente das demais, essa incursão concentrava seus interesses na Conquista do Egito, poderoso Reino muçulmano que uma vez submetido serviria como ponta de lança para outras vitórias no Oriente Médio e com o tempo Jerusalém. A obliteração do Sultanato Ayubita que governava o Cairo, era visto como uma meta essencial para o sucesso da empreitada. Sem essa vanguarda de valorosos guerreiros para conter uma invasão, a Terra Santa poderia ser tomada de assalto.
Aliados aos venezianos, os Cruzados francos e germânicos, tencionavam usar a poderosa Marinha da Cidade Italiana em sua jornada. O Doge de Veneza, Enrico Dandolo ofereceu uma frota para auxiliar no transporte dos 35 mil homens que compunham a cruzada, um feito notável. Mas o Doge manipulou os comandantes, oferecendo vantagens se eles realizassem ações que lhe fossem vantajosas.
Desde o início a Cruzada foi marcada por erros de gerenciamento e a falta crônica de recursos. Os Cruzados desejavam chegar ao Egito, mas não tinham dinheiro em seus cofres para suprir suas necessidades mais básicas. De fato, os cavaleiros cruzados estavam tão quebrados que não disfarçavam que tudo seria custeado através de pilhagens. Teriam de roubar para custear sua viagem e pagar aos homens o seu soldo. O Doge veneziano viu nisso uma oportunidade de ouro.
Enrico Dandolo convenceu os líderes da Cruzada a atacar a cidade de Zara, na costa da Dalmacia na atual Hungria. Zara era uma cidade rica, governada por rivais mercantis dos venezianos. Em troca de navios para o transporte de homens, os Cruzados agiriam como mercenários, contratados para tomar a cidade e obter recursos com a pilhagem. Havia, no entanto, um problema: Zara era uma cidade cristã e o Papa Inocêncio III havia advertido os cruzados que não seria tolerada qualquer ação temerária contra reinos da cristandade.
Apesar do dilema moral, os comandantes aceitaram realizar o ataque acreditando que "os fins justificariam os meios". Concluída a negociação, o exército cruzado foi conduzido em navios de guerra até a costa da Dalmácia, deixados a poucos quilômetros de Zara. O desembarque anfíbio dos milhares de soldados foi um dos primeiros dessa natureza. Os homens realizaram um ataque direto brutal, mas como as defesas resistiram bravamente, decidiram adotar um cerco. Após duas semanas tentando romper o acesso à cidade, os cruzados não haviam conseguido qualquer sucesso. A situação só mudou quando os venezianos trouxeram armas de cerco para reforçar a força de ataque. Guarnecidos com catapultas, trebuchets e aríetes, a investida ganhou ímpeto. Os valorosos defensores não tinham como resistir e acabaram se rendendo oferecendo um acordo que pudesse salvar os habitantes.
Apesar das promessas de que os cidadãos seriam preservados, a entrada do exército foi violenta com casas destruídas, igrejas saqueadas e um autêntico massacre. Os invasores francos e venezianos divergiam sobre a divisão do saque o que ocasionou ainda mais disputas. Zara foi pilhada até que não restasse nada de valor na cidade, os navios apreendidos pelos venezianos e as tropas dispersas. A noticia da pilhagem de Zara chocou a Europa e fez com que o Papa excomungasse todos os envolvidos.
Mas o pior ainda estava por vir!
Após esse incidente, os Cruzados aceitaram se aliar a Aleixo Angellus filho do Monarca deposto de Constantinopla. Aleixo se aproximou deles prometendo recursos suficientes para seguir com a tropa para o Egito, se o Exército Cruzado lhe ajudasse a retomar o trono do seu pai Isaac II Angelos. Com isso, eles contariam com um aliado poderoso em Bizâncio que ajudaria a cumprir seus objetivos originais - Conquistar Jerusalém.
O Exército então se dividiu, com um contingente seguindo para Acre, no Oriente Médio, e uma tropa muito maior rumando para os portões da capital do Império Bizantino. Esta tropa cercou a cidade por alguns dias enquanto um acordo emergencial era costurado entre o Imperador e seus rivais. O Imperador permitiu a entrada dos cruzados nos limites da cidade acreditando que eles não ousariam erguer suas armas contra um reino cristão.
Os historiadores divergem até os dias de hoje sobre as motivações dos cruzados. Alguns acreditam que eles planejavam tão somente devolver a Isaac II o trono, contudo outros defendem que as maquinações do Doge Dandolo foram cruciais para mudar os planos e influenciar o que aconteceu em seguida. Veneza era rival comercial e lucraria enormemente com a remoção permanente da Capital Bizantina do cenário mercantil. Seja lá quais fossem os planos, por pressão dos cruzados, Aleixo Angelos foi nomeado co-Imperador. Contudo ele permaneceu no trono por pouco tempo, sendo deposto e assassinado logo em seguida em uma revolta arquitetada pelos seus oponentes.
Privados de seu aliado e acreditando que estavam sendo ludibriados, os comandantes cristãos exigiram que os acordos firmados com o falecido Aleixo fossem cumpridos. Quando o Imperador bizantino se negou a atendê-los, decidiram conquistar Constantinopla e fazer valer sua vontade.
Os Cruzados conseguiram adentrar os muros da cidade imperial com relativa facilidade e uma guarnição de 70 homens abriu os portões para a entrada dos demais. Nos limites ao norte, os venezianos escalaram os muros usando cordas e escadas improvidas enquanto outros tiveram sucesso arrebentando as muralhas e invadindo em massa. Um incêndio de grandes proporções se iniciou quando os cruzados tentaram romper o portão principal. Este se espalhou, mas foi contido. Um segundo incêndio, ainda maior se alastrou pela cidade queimando tudo que encontrava pela frente. Em meio ao caos e terror, a população tentava se refugiar em palácios e templos acreditando que seriam poupados. As casas menores e propriedades queimavam, famílias eram massacradas pela horda feroz que não admitia qualquer resistência. Por fim, temendo o pior, a cidade capitulou, mas isso não impediu o Saque que veio em seguida.
Os cruzados saquearam Constantinopla pelos três dias que se seguiram.
Durante esse período muitas obras de arte greco-romanas antigas e medievais foram roubadas ou arruinadas. Bibliotecas, palácios e museus arderam. Templos foram pilhados, altares virados e cofres de instituições bancárias roubados. Inebriados pela riqueza os cruzados se entregaram ao roubo sem pudores. Apesar da ameaça de excomunhão, eles destruíram, devastaram e saquearam os tesouros de igrejas e mosteiros da cidade. Acredita-se que o valor total saqueado de Constantinopla foi de cerca de 900.000 marcos de prata. Os venezianos receberam 150.000 marcos de prata que lhes eram devidos, enquanto os cruzados receberam 50.000 marcos de prata. Outros 100.000 marcos de prata foram divididos igualmente entre os cruzados e os venezianos. Os 500.000 marcos de prata restantes foram retidos por cavaleiros e soldados que levavam tudo que conseguiam carregar em suas mãos ávidas.
Grande parte da população civil da cidade foi morta e suas propriedades saqueadas. Mulheres foram estupradas e crianças executadas em um frenesi sanguinário que contagiou os invasores. Os cruzados não se importavam com quem eram suas vítimas - num primeiro momento judeus e muçulmanos que viviam na cidade sofreram, mas logo qualquer habitante local podia ser morto. Os assassinatos se multiplicaram em todo o canto. Nas praças, as fontes vertiam sangue, velhos eram obrigados a pular das muralhas e religiosos foram executados à sangue frio quando tentava conter os ladrões. Nada os detinha, nenhum argumento, nenhuma justificativa. Cegos pelo brilho fugaz do ouro e pela promessa de riqueza, eles se permitiam qualquer ato, não importando o quão reprovável.
Quando o Papa recebeu notícias sobre o ocorrido se encheu de vergonha e raiva, mas nada mais podia ser feito. A cidade ardeu por dias sem que houvesse quem apagasse as chamas que devoravam tudo. Muitos prédios antigos foram consumidos até não restar nada senão escombros calcinados. Mesmo o Palácio real foi saqueado pela turba que deixou um rastro de destruição após a sua passagem.
Os venezianos encheram seus navios com tesouros roubados, estátuas e obras de arte valiosas que abarrotaram os porões de suas embarcações. Prometeram que voltariam tão logo levassem os espólios para sua terra natal, mas jamais retornaram. Saciados pela riqueza conquistada, os venezianos decidiram que a cruzada já não valia mais a pena ser lutada. Da mesma forma, os soldados, agora ricos, desertavam aos montes e desguarneciam as fileiras do exército cristão. Alguns poucos decidiram se manter fiéis a proposta original e zarparam para Acre com o intuito de se juntar aos outros que lá os aguardavam. Mas a maior parte simplesmente decidiu que não queria mais tomar parte no empreendimento religioso, não agora que estavam ricos. Grupos se juntaram para fretar navios que os levassem de volta para a Europa deixando para traz as ruínas fumegantes da cidade que um dia foi a jóia maior da Cristandade.
Constantinopla já existia há 874 anos antes da época da Quarta Cruzada e era uma das maiores e mais sofisticadas cidades do mundo antigo. Talvez fosse o único lugar no Mundo Cristão que conseguia se equiparar às maravilhas das cidades islâmicas. Quase sozinha entre os principais centros urbanos medievais, manteve em funcionamento as estruturas cívicas, os banhos públicos, os fóruns, os monumentos e os aquedutos da Roma clássica. Era um triunfo arquitetônico de beleza e requinte inigualável com uma população culta e civilizada.
No seu auge, a cidade abrigou uma população estimada em cerca de meio milhão de pessoas protegidas por 20 quilômetros de muralhas com paredes triplas. Era inexpugnável e riquíssima. A sua localização fez de Constantinopla não apenas a capital da parte oriental sobrevivente do Império Romano, mas também um centro comercial que dominava as rotas comerciais do Mediterrâneo ao Mar Negro, seus mercadores visitavam terras distantes como China, Índia e Pérsia. Delas transbordavam riquezas e cultura inestimável.
Mas em 1203 ela quase deixou de existir no rastro da Quarta e mais vergonhosa cruzada.
A cidade, capital do Império Bizantino mudaria de mãos e seria absorvida nos séculos que se seguiram pelas tribos muçulmanas que a dominariam, substituindo a cruz no alto das torres pela lua crescente no topo dos minaretes. Em tempo, se tornaria a Capital da Turquia e doravante seria parte do Mundo Islâmico.
De fato, a quarta cruzada foi uma parte vergonhosa da história das cruzadas.
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