quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Armas mística da Segunda Guerra - a Ahnenerbe e o Retábulo de Ghent


Ao longo da história da guerra, os lados rivais tentam constantemente superar um ao outro. Do punho, ao bastão, da pedra à lança, até o advento das armas nucleares, sempre houve uma constante busca pela superioridade armamentista. Aquele que dispunha da arma mais poderosa teria uma vantagem sobre o adversário e poderia derrotá-lo de uma vez por todas. 

Na antiguidade os exércitos recorriam à magia e às forças paranormais obscuras para tentar mudar a maré dos conflitos. Haviam videntes, feiticeiros e xamãs imbuídos com poderes sobrenaturais que comungavam com forças desconhecidas e que as utilizavam para garantir a vitória de seus líderes. Eles rezavam a entidades poderosas, pediam a graça dos céus ou do inferno e obtinham os acordos que eram mais vantajosos. Sabe-se que os maiores Impérios do mundo antigo contavam com sábios e especialistas que se debruçavam sobre a questão, buscando no mundo oculto os meios para garantir a vitória do seu lado.   

Longe de se tornar mera superstição e tradições esquecidas, tal coisa persistiu até os dias modernos. Em tempos contemporâneos sabe-se que os britânicos usaram de previsões astrológicas para invadir a Crimeia, de que os russos se valeram de mediuns para lutar na Grande Guerra e que é comum vários países árabes usar uma reza específica, reservada apenas para quando se lançam em conflitos. Durante o brutal desenrolar da Segunda Guerra Mundial, isso não foi diferente. Houve aqueles que buscaram se valer de poderes sobrenaturais para concretizar seus objetivos, e todos os lados se voltaram para a magia para obter alguma vantagem no campo de batalha.

Ao falar do uso da magia durante a Segunda Guerra Mundial, é inevitável que comecemos falando dos nazistas. O Regime Nazista sempre foi o grande vilão e por um bom motivo. Suas filosofias distorcidas, sua crueldade e seus numerosos projetos secretos os envolveram sob um manto sinistro de maldade e misticismo inescrutável. Adicione histórias envolvendo armas ultra secretas, poderes ocultos, esconderijos subterrâneos e a busca por poderosos artefatos e você terá a receita perfeita para uma organização sinistra. A imagem cinematográfica dos nazistas apresentada em filmes clássicos como "Caçadores da Arca Perdida" não está muito distante da realidade. De fato, os nazistas estavam profundamente envolvidos em pesquisas, expedições e experimentos tão fantásticos e absurdos quanto a mais estranha ficção. A verdade consegue ser mais estranha que a ficção, e a propensão do homem para o mal não conhece limites - o que é especialmente verdade em se tratando dos nazistas. 


Hoje sabemos que Hitler e muitos dos líderes nazistas tinham autêntico interesse no ocultismo. Tudo isso é muito bem documentado. O Partido Nazista teve seu início em uma espécie de fraternidade que remonta aos primeiros anos da ascensão do regime na Alemanha. Esse profundo interesse pelo ocultismo e pelo mundo arcano levou à expansão significativa de uma cabala secreta dedicada ao tema, um grupo conhecido como Ahnenerbe. Fundada originalmente em primeiro de julho de 1935 pelo infame Heinrich Himmler, que mais tarde se tornaria o notório líder da SS, junto com Herman Wirth e Richard Walther Darré, a Ahnenerbe significa literalmente "Herança dos Antepassados". Ela começou como um instituto dedicado a pesquisar a história arqueológica, antropológica e cultural da raça germânica, mas na realidade existia para encontrar evidências que apoiassem a teoria de que a raça ariana era um povo superior. 

Seus membros, um bando incomum de acadêmicos eram agentes de propaganda procurando encontrar evidências científicas para apoiar suas ideologias distorcidas. Para esse fim, a Ahnenerbe financiou inúmeras expedições e escavações arqueológicas ao redor do mundo em lugares tão distantes quanto Alemanha, Grécia, Polônia, Islândia, Romênia, Croácia, África, Rússia, Tibete. Sua busca incluía encontrar runas arcanas perdidas, artefatos, relíquias e ruínas que reforçariam suas alegações. 

O Tibete era de especial importância para o Ahnenerbe, pois seus membros acreditavam que era lá que existia uma misteriosa civilização perdida que deu origem a raça ariana pura e perfeita. Eles acreditavam que cidades subterrâneas ainda existiam em algum lugar do coração do Himalaia e que fazer contato com ela era de suprema importância. Os agentes postulavam que através desse contato conseguiriam acesso a tecnologia avançada e inacreditável magia que aumentaria seus poderes.  


Não demorou muito para que as operações da Ahnenerbe saíssem do campo da ciência e enveredassem para o paranormal, o que considerando a linhagem de seus fundadores não causa nenhuma surpresa. Herman Wirth, um dos fundadores era um historiador holandês obcecado em encontrar a localização de Atlântida. Himmler tinha um fascínio intenso por todas as coisas ocultas a um grau perturbador. Na realidade, ele era um tanto desequilibrado. Himmler tinha grandes aspirações de um dia substituir a religião cristã por uma crença de sua própria autoria que se espalharia pelo mundo inteiro. Uma religião oficial, sancionada pelos nazistas e com o seu aval. Nesta, o próprio Himmler ganharia status de um Profeta.

À medida que essa organização sinistra pulsava e crescia, ela se lançava pelo mundo em inúmeras missões fantásticas que pareciam algo saído diretamente de um filme de Indiana Jones. Eles se aprofundavam em regiões remotas do mundo em busca de terras perdidas, relíquias, textos místicos, itens mágicos, curiosidades estranhas, locais paranormais e artefatos sobrenaturais, qualquer coisa para promover seus próprios fins. Com o endosso oficial do Regime Nazista, a Ahnenerbe se expandiu criando 50 departamentos que lidavam com previsão do tempo, viagem extracorpórea, telecinésia, magia, arqueologia, percepção extra-sensorial e o que mais viesse. Eles intensificaram operações, vasculhando os cantos mais distantes da Terra em busca de uma grande variedade de maravilhas lendárias como o Santo Graal, a Atlântida e a Lança do Destino, com a qual Longinus teria trespassado Cristo enquanto ele padecia na cruz. O grupo também procurou por portais para outros reinos, bem como por antigas terras perdidas, incluindo Atlântida e Mu, fazendo expedições influenciadas por uma organização igualmente misteriosa conhecida como Sociedade Thule. Seu interesse principal era encontrar o berço de nascimento da raça ariana, descoberta que os dotaria de vastos poderes sobre-humanos. 

Tudo extremamente bizarro e perturbador, mas não termina aí. 

Seu forte desejo de desenvolver armas secretas se estendeu às divisões "científicas" da organização, que buscavam ativamente criar novas tecnologias com base em conhecimento antigo perdido ou proibido. Os textos místicos e pesquisas arcanas resultariam em algo inacreditável. A Ahnenerbe também estava interessado em canalizar o poder do ocultismo, da magia e dos poderes psíquicos para usar como armas contra seus inimigos. Para esse fim havia programas dedicados a tais atividades, incluindo formar assassinos psíquicos que pudessem matar com a mentes, usar projeção astral para espionar o inimigo, empregar astrologia para traçar estratégias, valer-se de feitiçaria como armas e de adivinhação do futuro, para obter vantagens. A organização também tentou aproveitar o poder das runas, um fato refletido no uso de letras semelhantes a runas no logotipo da organização. Também havia especulação de que o grupo estava fortemente interessado em encontrar tecnologia alienígena para uso militar. Pode parecer um absurdo, mas nada disso era piada para os nazistas. Muitos acreditavam fervorosamente nessas crenças que impulsionavam missões e projetos secretos, despejando muito dinheiro, mão de obra e recursos neles.


Uma atividade na qual os nazistas estavam fortemente envolvidos era no projeto de rastrear artefatos antigos e considerados mágicos. Havia a crença fundamentada de que estes ajudariam a dominar o mundo! Um impulso obsessivo para adquirir tais objetos era o propósito de incontáveis expedições. Hitler tinha especial fascínio por uma enorme pintura que foi vista pelos nazistas como fonte de pistas chave para a localização dessas relíquias sagradas. A pintura em questão era conhecida como "Adoração do Cordeiro Místico" de Jan van Eyck, também comumente chamada de Retábulo de Ghent, concluída em 1432. Uma das primeiras pinturas a óleo, ele é, de fato, uma das pinturas mais famosas da história, retratando um campo celestial com mais de cem figuras intrincadamente detalhadas reunidas em torno de um altar sobre o qual está um cordeiro sacrificial sangrando em um cálice - supostamente o Santo Graal. A pintura é enorme, espalhada por doze painéis de carvalho medindo um total de 4,2 x 3,5 metros, com o conjunto pesando cerca de duas toneladas.

O Retábulo de Ghent é certamente uma obra de grande valor histórico, mas Hitler e seu segundo em comando, Hermann Göring, tinham verdadeira obsessão por ele. Viam-no como uma peça para compreender o misticismo antigo e desvendar mistérios guardados pelos séculos. É claro, os dois conspiravam para roubá-lo e levá-lo a Berlim. Ele estava escondido no sul da França no Chateau de Pal, contrabandeado para lá após o início da guerra. Oficialmente, os nazistas queriam a pintura porque era uma famosa obra de arte de um pintor alemão que havia sido tirada deles à força, e agora eles tinham o poder de tomá-la de volta. Para esse fim, os dois líderes nazistas desafiaram um ao outro sobre quem poderia roubá-la de volta primeiro e, embora Hitler tenha sido o primeiro a conseguir obtê-la, a obra de arte foi interceptada e roubada novamente pelos dois líderes um do outro várias vezes antes de finalmente acabar nas mãos de Hitler. Ela foi escondida em uma mina de sal nos Alpes austríacos, junto com milhares de outras obras de arte inestimáveis ​​de toda a Europa ocupada pelos nazistas, como parte de seu plano para a construção de um "super museu" quando terminasse a guerra.

Parece interessante e bastante estranho que dois líderes nazistas competissem entre si pela mesma pintura e chegassem a roubá-la um do outro para tê-la em suas coleções particulares, mas isso se deu porque eles acreditavam que o Retábulo de Ghent continha em seu profundo simbolismo pistas e códigos secretos. Estes supostamente apontariam para o esconderijo dos instrumentos da Paixão de Cristo, também chamados de Arma Christi, que incluem artefatos lendários como o Santo Graal, a Coroa de Espinhos, os Pregos usados na Crucificação e a Lança do Destino


Hitler tinha um interesse legítimo pelo oculto e sobrenatural, algo bastante documentado quase uma obsessão que se tornou mais poderosa à medida que seus esforços de guerra pioravam e ele ficava cada vez mais desesperado por soluções mágicas. Ele estava convencido de que, embora cada relíquia fosse poderosa por si só, a Arma Christi, quando reunida, lhe concederia vastos poderes sobrenaturais, algo além da imaginação que lhe traria vitória certa sobre o inimigo. Parece um enredo improvisado de um romance estilo Código Da Vinci, mas Hitler aparentemente acreditava em tudo isso e investiu muito dinheiro e recursos para encontrar essas relíquias fantásticas. Nesse sentido, a possibilidade de que essa pintura guardasse o mapa para elas pareceria boa demais para deixar passar.

O problema com a pintura quando ele conseguiu enfim roubá-la é que faltava um dos painéis, uma parte crucial conhecida como Painel dos Juízes Justos que retratava um grupo de sábios. O painel foi roubado da Catedral de Saint Bavo, em Ghent, Bélgica, em 1934 por Arsene Goedertier. Ficou claro por que ele iria querer roubar aquele painel em particular. A teoria é que o painel foi intencionalmente roubado antes da guerra por aqueles que sabiam que os nazistas tentariam usá-lo para encontrar os artefatos poderosos que os ajudariam a ter sucesso em seus planos. É possível que, ao negar-lhes este painel-chave, certas pistas estivessem faltando e o mapa para esses tesouros estaria incompleto.

Hitler sabia que o painel estava faltando quando roubou a pintura. Anos antes ele havia enviado um detetive nazista, especializado em localizar objetos de arte chamado Heinrich Köhn a Ghent para procurá-lo e trazê-lo de volta à qualquer custo. Köhn procurou meticulosamente pela cidade, chegando até mesmo a ordenar o desmanche de uma parte da catedral local na esperança de que a pintura desaparecida estivesse escondida em algum canto,  mas ele nunca foi capaz de localizá-la. Os nazistas nunca conseguiram completar o Retábulo de Ghent, e não se sabe se realmente havia um mapa escondido nele, e provavelmente nunca saberemos. Se realmente havia um mapa que foi frustrado por uma peça faltante, então também nunca saberemos o que teria acontecido se todas as relíquias sagradas tivessem sido reunidas. 

Tudo isso parece incrivelmente insano e improvável, mas Hitler tinha um desejo irracional por ter a pintura, e isso gerou uma quantidade considerável de especulações sérias sobre essas coisas.


Se Hitler realmente planejou usar algum tipo de mapa antigo escondido no Retábulo de Ghent para encontrar as Arma Christi não sabemos, mas ele certamente fez muitas tentativas de encontrar essas relíquias separadamente. Longe de ser apenas enredos de filmes, os nazistas de fato procuraram o Santo Graal e a Arca Perdida da Aliança, contudo uma das principais obsessões de Hitler era possuir a Lança do Destino, que dizem foi forjada pelo antigo profeta hebreu Fineias, 

E sobre a Lança do destino falaremos na continuação desse artigo.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Cinema Tentacular: Long Legs - Resenha do bizarro filme com Nicholas Cage

Uma jovem e brilhante agente do FBI é recrutada por seu mentor, um agente sênior para auxiliar a investigar uma série de brutais assassinatos não resolvidos. Assombrada por traumas familiares do passado, a agente mergulha em um horror que se desenrola em cantos cinzentos no interior dos Estados Unidos, aproximando-se cada vez mais de um assassino ao mesmo tempo horrível e fascinante.

Se isso soa familiar e parece a premissa de O Silêncio dos Inocentes, saiba que esta resenha vale também para outro filme lançado recentemente. No caso LONGLEGS, que segue mais ou menos a mesma premissa até que no ato final a história deixa o suspense criminal e se torna horror sobrenatural. LONGLEGS também encontra inspiração em Se7en, Hereditário, Colecionador de Ossos e outros filmes de terror e suspense que por sua vez devem muito a Hannibal Lecter e Clarice Starling. O filme é uma colcha de retalhos lindamente costurada de referências, bizarrice e estranheza.

Mas antes de começar a resenha, cabe aqui um conselho. Se você pretende assistir esse filme, talvez deva parar de ler nesse momento. Embora eu não pretenda incidir em Spoilers nessa resenha, LONGLEGS é um filme que se beneficia enormemente do desconhecimento do espectador à respeito do que vai assistir. 

Em bom português QUANTO MENOS SOUBER A RESPEITO DELE MELHOR.

A essa altura provavelmente já é difícil esconder fatos como a atuação de Nicholas Cage, as já mencionadas similaridades com Silêncio dos Inocentes e as muitas esquisitices do roteiro. Mas há muito mais sobre LONGLEGS do que isso.

Dirigido por Osgood Perkins, o filme se desenrola no início dos anos 1990, representado em gloriosa monotonia por imagens, cenários e figurino que deixam claro a época em que ele se passa. Num ambiente frio e estéril, da Costa Oeste dos Estados Unidos, sempre coberto de neve, o filme progride alternando momentos de lentidão glacial com outros de velocidade terminal, lançando a heroína, a Agente do FBI Lee Harker em um pesadelo macabro.

LONGLEGS já se inicia com uma sequência incrivelmente perturbadora com apenas um ou dois minutos de duração que prepara a plateia para o que está por vir uma mistura de elementos dissonantes que incluem crimes sanguinolentos, indícios de satanismo, humor negro, glam rock e um Nicholas Cage muito, muito, muitíssimo surtado.

De início o filme sugere ser um drama criminal no estilo procedimental em que a jovem mas promissora agente especial é escalada para capturar um assassino em série à solta. A agente, vivida por Maika Monroe demonstra possuir uma estranha sensibilidade que lhe permite compreender as motivações de criminosos violentos. Harker não é uma pessoa sociável, ainda que seja altamente intuitiva e perspicaz. Ela é recrutada pela Agente Especial Carter (Blair Underwood) precisamente por essas qualidades e se junta à investigação dos crimes envolvendo a chacina de famílias inteiras. O suspeito é alguém que se identifica apenas como Longlegs. Ele deixa na cena do crime cartas com estranhos símbolos codificados. Mais estranho ainda; as mortes ocorrem próximas do aniversário das crianças mortas causadas sempre pelo pai que é convencido a exterminar esposa e filhos em um frenesi homicida. Longlegs seria responsável por provocar a tragédia, convencendo o pai a fazer o trabalho sanguinolento, o que deixa o FBI perplexo.

Harker se envolve no caso e a medida que se aprofunda na investigação descobre possuir uma espécie de ligação direta com o assassino (o tal "vínculo mortal" sugerido no título brasileiro). Seria um elo psíquico, clarividência ou uma ligação mais íntima baseada em memórias reprimidas?

A primeira parte do filme sugere que vamos assistir um drama procedimental clássico no qual o espectador é convidado a participar da investigação e tentar determinar ele próprio quem é o assassino, qual a sua motivação e como ele age. Contudo, a medida que a coisa vai se desenrolando, a história vai ganhando nuances de sobrenatural e de ocultismo sugerindo um envolvimento diabólico na trama.

Valendo-se de um tom absurdamente sinistro e ameaçador, o filme prossegue cada vez mais sombrio acrescentando detalhes intrincados e revelando o modus operandi do maníaco. Em dado momento, o assassino parece tomar para si elementos de ocultismo, cifras misteriosas, religião e manipulação psicológica referindo a famosos homicidas que vão de Charles Manson, passando pelo Zodíaco e o Night Stalker. Mas quem seria o Longlegs e o que ele estaria tentando construir com seu rastro de mortes aparentemente sem sentido?

Maika Monroe se dedica de corpo e alma à sua personagem, deslocada e problemática caminhando na corda bamba da genialidade e desconforto. Ela fornece a Lee Harker credibilidade, sobretudo quando a história trás a tona sua conflituosa relação com a mãe que é tão (ou até mais) problemática que ela. A figura materna interpretada por Alicia Witt também acerta no tom contribuindo para o aprofundamento da história. Outra coadjuvante que também chama a atenção é Kiernan Shipka, que interpreta a única sobrevivente de um dos massacres de Longlegs e que está ali para transmitir pistas que podem revelar detalhes sobre o assassino. 

É inegável entretanto que quem rouba a cena é Nicholas Cage no papel do maníaco do título. Normalmente Cage se sente a vontade interpretando personagens esquisitos, mas aqui ele parece ligado no 220 o tempo todo, criando um maníaco absolutamente doentio. Para quem achou o Búfalo Bill de Silêncio dos Inocentes dançando Good Bye Horses vestindo uma roupa costurada com pele de mulheres a coisa mais doentia de todas, prepare-se para algo no mesmo nível. Sob maquiagem pesada que lhe concede uma aparência andrógina, o maníaco parece o resultado de dezenas de cirurgias plásticas mal executadas que tornaram sua face uma paródia de alguém que desejava ser único. E acabou se tornando único da pior maneira possível. Se por fora ele parece um retalho de ser humano, por dentro a ruína mental é ainda maior. Longlegs é total e inteiramente perturbado como fica claro em praticamente todas as cenas em que ele surge. Cage usa vozes esganiçadas e abusa de trejeitos desconexos para construir a imagem de um sujeito esquisito que fala através de metáfora e letras de músicas glam. Suas roupas e estilo também sinalizam que ele seria afeito dessa estética, bem como as fotos e pôsteres de astros do estilo como Lou Reed e T Rex nas paredes de seu esconderijo. Em retrospecto é difícil traçar quais foram as inspirações usadas pelo ator para dar vida a essa criatura, mas ele parece ter recebido total liberdade para criar essa imagem grotesca.

O diretor foi esperto em manter a aparência de Nicholas Cage em segredo, conservando a mística do monstro oculto. É inegável entretanto que quando Longlegs aparece, domina a cena e faz com que a plateia queira entender qual o problema daquele cara e o que o transformou naquilo. O fascínio pelo bizarro fica bem evidente aqui.

A explicação mais fácil para a origem de Longlegs é que ele é um desgraçado que se meteu com coisas muito perigosas e acabou consumido por elas. Ele é como um boneco nas mãos de forças demoníacas que o utilizam para espalhar o mal pelo mundo. Um mal que não precisa fazer sentido, ele é só isso: maligno. Nas mãos de qualquer outro ator, Longlegs soaria exagerado, até beirando o ridículo, mas ele caiu como uma luva para Nicholas Cage. 

Mas se é ao focar no personagem que a trama fica mais atraente é justamente quando se aproxima a conclusão que ela degringola. Ao se afastar da investigação criminal em que havia se estabelecido de maneira coerente e adentrar no terror sobrenatural a história perde um pouco seu foco. Ela puxa o tapete de baixo dos pés do espectador e a sensação é meio dúbia. A medida que fica claro que a agente está enfrentando algo obviamente sobrenatural o roteiro que vinha bem conduzido derrapa, exigindo certo grau de suspensão de crença sobre as explicações concedidas. E se estas, soam absurdas, a trama tenta corrigir simplesmente dizendo que é por conta de ser algo "sobrenatural" e portanto inexplicável.

E se você busca uma explicação razoável, isso é algo que você não vai ter aqui. Nesse quesito eu até entendo as pessoas que reclamaram do final e que enxergaram algo forçado ou até mesmo sem sentido. Talvez o fato do filme ter sido promovido como uma história mais convencional sobre a caçada a um serial killer, tenha minado a proposta original que é explorar a escuridão e a manipulação de pessoas por forças diabólicas.

A meu ver Longlegs é muito bem conduzido e acerta ao ser desconfortável em vários momentos, recorrendo mais a manipulação psicológica do que ao gore para incomodar o espectador. Amparado por uma direção eficiente e elenco afiado, em especial Nicholas Cage o filme funciona e nunca deixa de ser interessante.

Uma questão interessante é como encarar a hype sobre esse filme. Ao mesmo tempo que ajuda a vender um produto, a hype contribui para estragar a experiência quando ela termina. Nem sempre é aquilo que a gente espera,. Minha sugestão: não vá esperando "o filme mais assustadores da década" como alardeia exageradamente o cartaz. Ao invés disso espere um filme bem dirigido que entrega o que promete, uma experiência desconcertante de suspense que pode te incomodar mais ou menos dependendo da forma como você o encarar.

Trailer:

Pôster:

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Cinema Tentacular: ALIEN ROMULUS - Resenha do Filme de Fede Alvarez


Desde o distante ano de 1979, a franquia ALIEN tem aterrorizado e entretido o público em todo o mundo por intermédio de lendas do cinema como Ridley Scott e James Cameron. Embora a franquia nos últimos filmes não tenha atingido o alto nível estabelecido nos dois primeiros filmes, cada sequência apresentou uma nova ideia, tom ou filosofia que permitiu a ela se sustentar por conta própria. 

Claro, a criação mais famosa do suíço H.R. Giger, o Xenomorfo, se manteve como a face mais popular da franquia por décadas, fixando-se no imaginário coletivo como parte indissociável da ficção científica. A criatura permanece como um ícone bizarro tão evocativo quanto na época em que foi criada. A imagem do Alien se tornou referência de medo diante do desconhecido e do imponderável e de terror perante aquilo que perverte a própria essência de quem somos. Reflexões existenciais perfeitas para um filme de horror ontem, hoje e sempre...  

Quando a Disney adquiriu a 20th Century Fox em 2019, o destino do famoso Xenomorfo ficou totalmente em aberto. É claro, seria razoável assumir que mais cedo ou mais tarde o estúdio acabaria revisitando uma de suas franquias mais conhecidas, mas a desconfiança que repousava no peito de cada fã (como um parasita crescendo ali dentro) era como o estúdio do Mickey daria continuidade a série. Um receio perfeitamente justificado visto como a Disney tratou Star Wars nos últimos tempos. Também não ajudava o estrago provocado pelos últimos dois filmes da franquia. PROMETHEUS tentou ser inovador, soprando novos ares e contando a origem das criaturas pela perspectiva de uma expedição que desvendava o segredo dos Engenheiros uma raça que semeou a vida pela galáxia. Em algum momento os tais Engenheiros teriam criado os Aliens e estes acabaram por sobrepujá-los. Infelizmente a maneira como esse roteiro chegou ao cinema causou estranhamento e dividiu opiniões, sendo que a maioria simplesmente repudiou o filme (repudiar é pouco, eu acho o lixo do lixo, mas enfim). A continuação direta de Prometheus, COVENANT tentou corrigir algumas coisas e ser mais claro, mas acabou igualmente naufragando em uma história pouco interessante e sem grande atrativo.


Isso nos leva a ALIEN: ROMULUS, a mais recente sequência da franquia projetada como um interquel se passando entre o ALIEN (1979) original de Ridley Scott e o ALIENS (1986) de James Cameron. Dirigido pelo diretor de EVIL DEAD (2013) Fede Álvarez, ROMULUS investe em algo muito comum atualmente, fazer um filme que é uma espécie de releitura e que serve como homenagem aos demais que se tornaram clássicos.  

Não foi má ideia!

Com o destino da franquia num hiato, atolado em incertezas não é nenhuma surpresa que a 20th Century Studios e Fede Álvarez tenham optado por uma abordagem de volta ao básico. Ele acerta em cheio ao buscar nos dois primeiros filmes os elementos que garantiram sua longevidade. Se ALIEN ainda desejava ser relevante e minimamente interessante ele precisava voltar às suas raízes originais e o melhor lugar para encontrar isso seria nos filmes que os fãs conhecem quase de cor e continuam amando intensamente. Trazer de volta o suspense, pavor, asco, empolgação e entretenimento de qualidade era vital e ainda bem que Alvarez compreendeu isso. 

ALIEN: ROMULUS tem uma história relativamente simples, fácil de aceitar e de acompanhar. Na trama, jovens colonizadores espaciais anseiam deixar sua vida opressiva em uma colônia escura e medonha localizada nos cafundós da fronteira controlada pela Corporação Weyland-Yutani. A protagonista é Rain Carradine (Cailee Spaeny), uma operária órfã encarregada de cuidar de seu irmão sintético e imperfeito Andy (David Jonsson). Buscando escapar desse panorama pessimista, os dois aceitam participar de uma ação desesperada. Unem-se a uma equipe que descobriu uma estação espacial abandonada repleta de suprimentos e recursos necessários para a longa jornada a um mundo melhor. Tudo que precisam fazer é ir até lá e recuperar o equipamento de que tanto precisam. Embora os esforços de coleta pareçam promissores inicialmente, a tripulação rapidamente descobre que eles não são as únicas formas de vida na estação espacial. Há algo assustador espreitando no lugar que era usado secretamente para experimentos.


É inegável que o filme faça referência direta a ALIEN, mostrando a estação como uma gigantesca casa assombrada da qual não há escapatória pois há monstros vivendo lá e a ALIENS que puxa a luta pela sobrevivência a um nível visceral cheio de reviravoltas.  

 A decisão de manter o elenco pequeno e íntimo foi em última análise uma excelente medida, mantendo o roteiro mais focado nos personagens. Isso funciona porque os personagens são bem construídos e interessantes, o que faz sentido já que a história se desenvolve a partir de seus dramas, dúvidas e incertezas. Na vanguarda de ROMULUS está o relacionamento entre a protagonista Rain e Andy, cuja dinâmica de irmãos fornece um ângulo simpático e sincero que os torna fáceis de se conectar. Quando eventualmente o conflito entre eles aflora, na segunda parte da trama, há uma mudança interessante em como ela irá lidar dali em diante com seu irmão artificial. Rain e Andy são, sem dúvida uma grande adição para a galeria de heróis da franquia. A performance eficaz de Cailee Spaeny e especialmente do talentoso David Jonsson soa perfeitamente convincente e é possível se conectar com eles de uma maneira que era impossível em Prometheus, por exemplo. Ao longo dos filmes de Alien tivemos atores roubando a cena no papel de androides e aqui não é diferente. 

O restante do elenco ajuda a construir a tensão que vai se tornando mais e mais sombria e asfixiante. É claro, o elenco de apoio também serve como desculpa para aumentar a contagem de corpos. Entretanto eles não somem de cena simplesmente com mortes bobas como acontece com os coadjuvantes na maioria dos filmes do gênero. Fede Alvarez reserva para cada personagem uma maneira especial de sair de cena (leia-se morrer), da forma mais grotesca possível. Por sinal, em ROMULUS temos algumas excelentes cenas de gore e terror visceral.


A produção deu grande ênfase na criação de próteses e animatrônicos, em oposição ao cenário atual de blockbusters que abusam do CGI. O filme recorre a truques práticos e recursos mais simples para se manter fiel ao espírito dos filmes originais. Como resultado os Aliens ficaram mais aterrorizantes, preservando a aura deles como criaturas bizarras e incompreensíveis que apelam a nossa repugnância ao terror corporal. As aparições deles sempre são acompanhadas de significado e de uma alta carga de tensão. Também temos várias cenas dedicadas aos Facehuggers e Chestbusters, os estágios iniciais da mutação das criaturas. De forma muito competente Álvarez garantiu que ROMULUS fosse tão perturbador para a plateia atual quanto deve ter sido para o público do ALIEN original.

Visualmente o filme foi muito bem concebido contando com uma equipe técnica extremamente eficiente, ainda que não necessariamente inovadora. Os cenários grandiosos do espaço e da face do planeta e seus anéis, alternam para o interior claustrofóbico repleto de corredores e câmaras da estação espacial abandonada. A cenografia investe no visual consagrado pelo ALIEN original onde se destaca uma tecnologia retrô com computadores de tela verde, equipamento velho, naves que parecem velhos navios de carga enferrujados e compartimentos de carga repletos de sombras. O interior da Romulus remete em muitos momentos a Nostromo com seu labirinto de corredores e acessos. 

Se o objetivo da equipe de produção era salientar que o espaço é um lugar insalubre onde você jamais se sente à salvo, parabéns, conseguiram fazer isso com louvor. ALIEN sempre foi a respeito de exploradores desesperados, gente que precisa trabalhar e vai a lugares em que a humanidade não é bem vinda. Aqui não é diferente. A música de Romulus também se encaixa muito bem com a trama. Não é aquela composição típica de filmes de terror criada para causar surpresa ou jump scare. A cargo de Benjamin Wallfisch ela toma a liberdade de utilizar pequenos trechos dos demais filmes, com ênfase em um mood pessimista que permeia toda projeção e que funciona perfeitamente.


ROMULUS é uma experiência independente, mas imbuída de constantes referências e várias citações aos demais filmes. É possível pescar essas referências à todo momento com frases de efeito, aparição de equipamentos famosos, da semiótica e com imagens que remetem diretamente aos seus predecessores, sendo a mais notória a aparição de um androide clássico da franquia. Fan service, sem dúvida, mas que funciona muito bem para satisfazer a nostalgia do público.

Com tudo isso podemos dizer que ROMULUS está em pé de igualdade com os filmes que busca tão avidamente se aproximar? 

Há alguns problemas na trama, em especial uma coisa que me incomodou um bocado que é justamente a sensação de pressa na resolução de tudo. Na porção final esse senso de urgência acaba ficando um pouco cansativo. Se por um lado eu entendo que tal coisa é necessária para criar uma sensação vertiginosa, por outro eu vejo ali um problema decorrente. Para imprimir esse ritmo acelerado, foi necessário encaixar certos elementos na trama e fazer com que tudo acontecesse muito rápido. O que mais me incomodou foi como os Aliens tinham de crescer rapidamente para justificar que se tornassem uma ameaça logo. Há alguns momentos em que é necessário fazer uma suspensão de crença e simplesmente aceitar algumas coisas para a história seguir adiante. Não chega entretanto a ser um pecado que atrapalha o filme ou torna ele menos divertido. 

No geral, ROMULUS é uma contribuição valiosa para a mitologia provando que a marca ALIEN ainda tem muito a oferecer se entregue nas mãos de alguém com paixão e respeito pela franquia.

Trailer:


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