Antologias de cenários curtos para Chamado de Cthulhu não são exatamente uma novidade. Mas acredito que essa preocupação ganhou maior relevância com narradores que não tem muito tempo livre para preparar e desenvolver suas histórias. São Guardiões que gostariam simplesmente de reunir os amigos para uma rodada de jogo rápida e descompromissada.
O suplemento Minions, lançado em 1997 para Chamado de Cthulhu, Quinta Edição talvez tenha sido o primeiro livro com essa proposta. Ele trazia uma dezena de histórias curtas, quase sementes de cenários, que podiam ser jogadas com pouco ou nenhum preparativo. Mais recente, outro suplemento, Gateways to Terror ofereceu uma coleção de cenários curtos especialmente desenhados para eventos e encontros de RPG. Já o ainda mais recente Call of Cthulhu Starter Set expandiu o conceito com uma trinca de cenários clássicos adaptados para serem jogados em sessões com duração de duas ou três horas. O público alvo são os jogadores que não perderam sequer um ponto de sanidade na ambientação e que conhecem pouco (ou quase nada) sobre ela. Essa é uma espécie de porta de entrada para a ambientação.
A proposta é válida! Embora Chamado seja um jogo antigo e popular, sempre há espaço para introduzir novos jogadores e apresentar as maravilhas e horrores de uma investigação lovecraftiana aos neófitos.
As antologias trazem personagens prontos com suas próprias motivações e que se encaixam bem na história a ser jogada. Não é necessário fazer malabarismos para explicar qual será o papel de cada personagem na trama. Esse formato obviamente funciona melhor para sessões one-shots do que para aventuras sequenciais, ainda que, com algum trabalho, seja possível transformá-los em uma pequena campanha.
Do ponto de vista de estrutura de cenário, eles possuem um padrão. Os jogadores e seus investigadores são apresentados a um mistério, precisam fazer perguntas corretas, obter as pistas necessárias e interpretar o que descobriram. Com base nisso, eles eventualmente serão confrontados por uma ameaça que irá drenar sua Sanidade e colocar suas vidas em risco.
Em resumo, diversão pura e simples, sem muita firula!
O recém lançado suplemento "No Time to Scream" (Sem Tempo para Gritar, numa tradução livre) é uma espécie de sequência desse estilo de jogo. Os três cenários aqui reunidos foram projetados para serem usados de forma rápida e simples - o Guardião só precisa ler e se familiarizar com a trama. Todo resto, dos Handouts aos personagens, passando pelas dicas, estão ali para serem usados.
Entretanto, em comparação ao Gateways of Terror, os cenários de No Time to Scream são mais elaborados. São também mais longos, com reviravoltas e com a duração estimada de algumas horas, possuindo até mesmo um cronograma aproximado para estabelecer limites de sua extensão. Os cenários funcionam como entretenimento noturno ou de demonstração para convenções. Todos os três são adequados para jogadores novatos, ainda que ofereçam uma experiência agradável também para jogadores veteranos.
A antologia começa com uma visão geral de seus três cenários e uma introdução — ou reintrodução — às regras básicas de Chamado de Cthulhu. Isso é para ajudar o Guardião a apresentar as regras básicas para os jogadores. Embora soe um pouco repetitivo, posso entender que o propósito disso é facilitar o acesso de regras também ao narrador de primeira viagem.
A introdução observa que os cenários contêm textos que podem ser lidos em voz alta e tipos distintos de pistas. Pistas "essenciais" DEVEM ser encontradas como parte da investigação, pois são vitais para sua progressão e não exigem nenhuma verificação de perícia para serem encontradas, enquanto pistas "obscuras" adicionam mais detalhes, mas não são vitais para a conclusão do cenário. Se uma pista "essencial" exigir um teste de perícia, este normalmente determinará quanto tempo o personagem levou para encontrá-lo e se ocorreu alguma complicação para encontrá-la. Essa é a primeira vez que vejo esse pormenor das regras ser tratado de maneira tão direta, já que muitos criticam que a não obtenção de uma pista em Chamado poderia ser um desastre para o jogo na opinião de alguns. De fato, colocar no papel essa "regra tácita" é simplesmente validar o que a maioria dos Guardiões experientes de Chamado fazem desde o início.
Mas vamos falar dos cenários pois eles são o que realmente importa nesse livro. Cada um é bem estruturado e segue o mesmo formato. Eles começam com conselhos sobre a estrutura do cenário para facilitar a condução do narrador. Em seguida, discute os investigadores prontos para cada cenário, incluindo suas características notáveis e ganchos de interpretação, o que fazer se houver menos de quatro jogadores e o que fazer se houver mais de quatro. Tudo isso antes de mergulhar na essência do cenário em si. Todos os três são muito bem apresentados, claros e fáceis de ler. Além de mapas decentes, cada cenário possui sugestões sobre como cada um dos investigadores reage quando perde sanidade, o que inclui possíveis Ações Involuntárias e Ataques de Loucura.
A trama envolve descobertas bizarras, exploração na casa do professor e uma luta contra o tempo. Há a chance de obter pistas que se mostrarão muito valiosas na porção final do cenário e que ensinarão aos jogadores uma valiosa lição: investigadores tem mais chance de sobreviver quando se dedicam a analisar as pistas com calma. O final do cenário provavelmente vai descambar para o lado físico, embora haja opção de tentar escapar ou usar outras opções. No geral, este é um cenário incrivelmente simples, mas deliciosamente divertido de executar.
O segundo cenário, "Bits & Pieces" (Restos e Pedaços), move a ação para Arkham e para o necrotério da cidade. É aqui que os Investigadores se encontrarão em 1927 após receberem o telefonema de um médico que murmura sobre cultistas, ressurreição e a necessidade de purificar o mal pelo fogo. O telefonema reúne um grupo heterogêneo de pessoas, primeiro em seu apartamento e depois no necrotério, onde eles se deparam com uma situação bizarra. Esse cenário tem o mérito de ir direto ao ponto e de beber desavergonhadamente das produções de horror trash com muito, muito gore.
‘Bits & Pieces’ me lembrou muito Reanimator, não o conto de Lovecraft, mas o filme de 1986. Assim como o filme (uma pérola do cine trash) esse cenário é simples, divertido e bobo. Ele consegue combinar horror e situações que beiram o pastelão. Novamente há um limite de tempo no cenário que impõe uma luta contra o relógio para que os investigadores tenham sucesso. Este é um cenário brilhantemente divertido, muito físico e que com certeza será memorável.
O terceiro e último cenário tem o nome "Aurora Blue" (Azul Aurora) e de muitas formas é o mais maduro e complexo dos três cenários em termos de seus temas e ambientação. Isso ocorre porque os jogadores assumem o papel de personagens estigmatizados por sexo ou cor da pele. A trama nos leva ao ano de 1932, quando os jogadores personificando agentes do Departamento de Proibição tentam colocar fim a um estranho caso no Território do Alasca. Logo no início os personagens sabem que estão em uma luta solitária para provar seu valor e que seus superiores os tratam como agentes de segunda classe.
O cenário é muito bem construído e oferece uma ‘Memória’ para cada um dos Investigadores, memória essa desencadeada por uma cena ou encontro específico durante a narrativa. Esses flashbacks são um momento para destacar e personalizar o status de cada Investigador concedendo a eles maior profundidade.
A ameaça central na trama é bastante interessante e o cenário oferece algumas sugestões para disfarçar a natureza da criatura fazendo com que ela seja surpreendente. O texto se refere ao monstro de uma maneira inovadora fornecendo frescor para o uso de uma criatura clássica.
De muitas maneiras, ‘Aurora Blue’ não é um história sutil e irá demandar do Guardião um aproach especial para conduzi-la. O cenário é mais sofisticado do que os anteriores. Os Agentes podem ter sucesso em completar a tarefa que se espera deles mas podem potencialmente tomar atitudes inesperadas. Esse tom de imprevisibilidade torna o cenário bastante curioso.
O livro é completado com dois apêndices e um conjunto de índices. O primeiro apêndice fornece os Recursos para os os três cenários, enquanto o segundo tem as bibliografias dos autores. Os índices ajudam a localizar mais facilmente trechos dos cenários. Fisicamente, No Time to Scream é muito bem apresentado, com mapas decentes e arte de boa qualidade que pode ser mostrada aos jogadores durante o jogo. Os recursos também são bem feitos, em especial uma série de desenhos infantis feitos com giz de cera que fazem parte de Aurora Blue.
O suplemento é uma ótima sequência para Gateways to Terror e se mostra um instrumento útil para jovens Guardiões de Chamado de Cthulhu refinarem seu estilo de narração. Não é exagero apontar este como um dos melhores suplementos de cenários prontos lançados para a sétima edição.
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