quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A Caçada a Serpente de Gloucester - O Monstro Marinho que assustou a Costa Leste dos EUA


Pouco mais de 200 anos atrás, a cidade pesqueira de Gloucester, Massachusetts, na costa leste dos Estados Unidos, foi atormentada por uma onda de avistamentos de um insidioso monstro marinho. 

Isso ocorreu ao longo de dois anos e deixou uma marca na historia da cidade e entre os homens do mar que lá viviam. O monstro foi visto repetidas vezes causando estranhamento, apreensão e finalmente terror entre os habitantes locais. Eventualmente, os testemunhos cessaram, e o mistério do que era essa criatura permaneceu sem solução. Atualmente, temos algumas ferramentas à nossa disposição que podem ajudar a identificar o que era essa estranha criatura marinha ou ao menos lançar suposições sobre sua origem.

Glossy, como passou a ser conhecida, foi vista pela primeira vez em março de 1817 por duas mulheres que estavam em terra firme. Elas viram uma longa linha de corcovas se movendo pelo Porto de Gloucester a cerca de 200 metros mar adentro. A criatura era grande, mas não era uma baleia, visto que possuía um corpo sinuoso e longilíneo. Movia-se por baixo da linha d'água de forma elegante vindo à superfície de quando em quando. As duas ficaram apavoradas, correram para chamar marujos, mas quando eles voltaram com elas, a criatura havia desaparecido sob as ondas.

Nem uma semana depois surgiu um segundo relato. A criatura foi vista por uma embarcação de passageiros cuja tripulação teve uma visão privilegiada dela. Vinte e oito pessoas afirmaram ter avistado a criatura de uma distancia não maior do que 70 metros. Os relatos a descreveram como uma espécie de serpente marinha de grande comprimento e dotada de uma linha de de corcovas dorsais. Uma testemunha descreveu-o como "uma corda grossa, dotada de espinhos dorsais e com uma enorme cauda de baleia". Os tripulantes à bordo deixaram claro que não era nada que eles já tivessem visto anteriormente e mesmo os marujos mais experientes se mostraram chocados. Os testemunhos mencionaram 10 corcovas, mas alguns chegaram a contar até 32. Conforme Glossy se movia pela água, as testemunhas afirmaram que ele parecia ondular verticalmente, como um golfinho, em vez de lateralmente, como um peixe. O comprimento de Glossy, a julgar pelas corcovas, foi calculado como algo entre 12 e 36 metros. 


O avistamento causou sensação e artigos foram publicados nos jornais de Boston e de Nova York, estampando com letras garrafais a existência de uma Serpente Marinha no litoral da Nova Inglaterra. Algumas semanas depois, um pesqueiro chamado Mary Elizabeth relatou o avistamento da mesma criatura a cerca de 70 milhas náuticas da costa na direção de Nantucket. O relato é notável pois os pescadores conseguiram ver a criatura de uma distância que lhes permitiu descrevê-la em detalhes: sua cabeça era como a de uma cobra gigante, com olhos redondos com órbitas vítreas de um amarelo pálido e íris alongada negra. Sua cabeça estaria a mais de 2 metros fora da água, erguendo-se desafiadora para o barco de pesca que passou triscando o seu costado na lateral do monstro. Um detalhe notável foi a descrição de uma espécie de chifre pontiagudo despontando na frente de sua cabeça. Sua cor era cinza pálida, branca ou ainda num tom azulado, com escamas que reduziam ao sol. Um dos marinheiros arremessou contra a besta um arpão, mas este simplesmente resvalou em suas escamas sem produzir qualquer ferimento visível.

A experiência da tripulação do Mary Elizabeth chamou a atenção uma vez que seu capitão era um certo Elisha Berek, um experiente lobo do mar, respeitado em Gloucester e tratado como um homem sério e que jamais inventaria uma história tão bizarra. Berek deixou claro o que havia visto e reconheceu que o oceano ainda tinha segredos que mesmo ele, com mais de 25 anos de experiência naval, desconhecia. 

Os jornais de Boston estipularam uma recompensa de 3 mil dólares (o equivalente hoje a 100 mil dólares) para qualquer pessoa que conseguisse matar a criatura e recuperar sua carcaça. A proposta atraiu vários pescadores, baleeiros e arpoadores de toda parte do litoral que convergiram para Gloucester interessados em reclamar a grande recompensa oferecida.   

A criatura, entretanto parece ter se ressentido da súbita exposição e desapareceu misteriosamente frustrando os homens do mar que esquadrinhavam a costa em busca de qualquer sinal do monstro. O recém formado Museu de Vida Marinha de Nova York insistia que a criatura misteriosa deveria ser uma baleia ou qualquer outra espécie de cetáceo desconhecido. Mesmo assim, as buscas prosseguiram, atraindo cada vez mais pessoas para o Porto de Gloucester.


Até esse momento é interessante dizer que a criatura não havia causado danos a embarcações ou marinheiros, mantendo-se apenas como uma curiosidade enigmática. Isso mudaria com a tragédia ocorrida com a tripulação do Hispania, um baleeiro de pequeno porte. Ironicamente a tripulação não estava em busca da criatura quando deixou o porto do Gloucester em meados de junho. Seu objetivo era o abate de baleias azuis que eram atraídas pelas correntes frias da área. Eles teriam avistado a Serpente Marinha por acaso nas imediações de Cape Ann, a uma distância considerável no sentido sul.

O Hispania empreendeu uma perseguição ao monstro, segundo os marujos. Eles dispararam armas de fogo e arremessaram arpões manuais, mas não conseguiram ferir a besta que se afastou deles seguindo para águas mais fundas. A perseguição durou quase 50 minutos, até que o Hispania a perdeu de vista. O capitão ordenou que dois botes à remo fossem descidos para que pudessem aumentar a área de busca. O plano se provou um desastre.

Enquanto realizavam a busca, a tripulação de um dos botes percebeu a movimentação de uma forma grande que se aproximou velozmente. Eles não tiveram a chance de sequer lutar, a criatura rompeu a superfície abalroando o bote com força fazendo os tripulantes caírem na água gelada. Os homens gritaram e tentaram nadar, mas logo um a um foi puxado pela criatura. O único sobrevivente a ser tirado da água foi um pescador chamado John Hudson que afirmou ter visto seus companheiros, um a um, sendo devorados pela fera. O monstro em seguida escapou deixando um saldo de cinco homens desaparecidos.  

Ao retornarem para Gloucester, os marinheiros do Hispania contaram sua sensacional aventura. Hudson se tornou uma celebridade instantânea, concedendo entrevistas e sendo considerado uma espécie de herói pelos outros marujos. Ele perdeu a conta de quantas bebidas os homens do mar pagaram para ouvir sua narrativa heroica.


Mas não demorou muito para a história levantar uma série de dúvidas que colocava toda narrativa sob suspeita. De fato cinco marujos do Hispania haviam desaparecido em alto mar, contudo havia enormes incongruências na história contada pelos que haviam participado da caçada. Alguns homens chegaram a afirmar que não podiam garantir que se tratava de uma Serpente Marinha e achavam mais provável que fosse um grupo de orcas. A narrativa de John Hudson, o único sobrevivente do bote naufragado, que teria "visto a fera cara a cara", adicionava ainda mais dúvidas à história. O marinheiro, dado a exageros sobretudo depois de beber, descreveu a criatura de uma maneira pitoresca: era dotada de uma cabeça semelhante a de um cavalo com uma longa crina. A fera meneava sua cabeça se agitando violentamente, produzindo um som de guincho, relinchar ou ainda o grito potente de uma baleia arpoada.

Embora Hudson e a tripulação tenham recebido grande atenção, não demorou muito até que a maioria das pessoas colocasse a história inteira em dúvida. Vários barcos seguiram para Cape Ann em busca de Glossy e encontraram os destroços do bote e dois cadáveres boiando. Os experientes homens do mar cogitaram que aquilo parecia condizente com o ataque de orcas. A informação foi corroborada quando um grupo desses animais foi avistado e abatido por caçadores. A história dos homens do Hispania começou a cair em contradição, sendo que o próprio John Hudson acabou sendo apunhalado numa taverna depois de uma acalorada discussão. Poucos instantes antes ele havia sido chamado de mentiroso por um marujo local.

Um novo avistamento ocorreria em meados de setembro com um cargueiro de bandeira espanhola cruzando com a criatura em mar aberto a cerca de 300 milhas náuticas de Gloucester. Os tripulantes  descreveram o monstro como uma Serpente Marinha semelhante àquela vista pelas primeiras testemunhas. Eles não tentaram perseguir ou confrontar a criatura, não sabiam do que se tratava e julgaram mais seguro simplesmente observar o monstro se afastar e sumir no horizonte. Houve pelo menos mais uma dúzia de relatos até meados de 1819. Glossy permaneceu sem ser capturado ou identificado. Aos poucos a história foi perdendo interesse por parte da imprensa até ser esquecida fora da área de Gloucester. 

Mas o que seria essa misteriosa criatura e o que as muitas pessoas que afirmavam tê-la encontrado realmente viram? Teria sido uma espécie de alucinação, já que é complicado assumir que todas testemunhas simplesmente resolveram inventar a história?


O biólogo marinho Joe Nickell abordou o mistério e publicou sua teoria para Glossy em uma edição de 2019 da revista Skeptical Inquirer. Nickell se concentrou no "chifre" de quatro pés, também descrito por outra testemunha como uma "ponta ou lança" projetando-se de suas mandíbulas. Considerando todos os relatos que discutiam o comportamento e a aparência da criatura, Nickell concluiu que uma boa suposição é que as pessoas viram um grupo de narvais com presas que, às vezes, se alinhavam para formar uma longa fileira de corcovas. Embora os narvais - que são baleias de médio porte, vivam apenas nas águas árticas do Canadá, Groenlândia e Rússia não é impossível que haja casos isolados de narvais chegando a região da Nova Inglaterra. 

Nickell também oferece outras explicações possíveis: 

"Se fosse necessário atribuir a Glossy uma espécie de criatura marinha conhecida, há candidatos até mais plausíveis do que um cardume de narvais. Se decidíssemos que o "chifre" era a característica mais distintiva, provavelmente deveríamos supor se tratar de um peixe-espada ou peixe serra. A costa leste dos Estados Unidos é de fato famosa pela pesca esportiva de peixe-espada; eles são encontrados ao longo de toda sua extensão. Todos os peixes-espada se alimentam perto da superfície, então ver seu aguilhão cutucando acima da água não seria algo incomum", escreveu o biólogo marinho em seu artigo.

Mas ao sugerir essa explicação cotidiana para o mistério da Serpente de Gloucester, criamos um novo problema. Se fosse realmente algo que pode ser visto a qualquer momento, por que tantas pessoas ofereceram relatos de um monstro apenas entre 1817 a 1819?

Além disso, seria de se supor que marinheiros familiarizados com essas águas fossem capazes de reconhecer um peixe-espada ou peixe-serra sem tratá-lo como algo desconhecido. Contudo, é possível que em se tratando de um animal de grande porte, este pudesse causar confusão ou até ser confundido por pescadores veteranos. 

"É raro, mas sabemos de exemplares de peixe-serra que podem chegar a 7,5 metros de comprimento. Não é impossível que estes animais se reúnam em grupo, o que pode causar a confusão à distância e fazer parecer se tratar de um único e enorme animal.


É possível que um grupo de animais de tamanho extraordinário tenha aparecido nas águas de Gloucester entre 1817 a 1819, algo tão fora do normal que confundiu muitas pessoas e ganhou status de lenda duradoura. Um evento registrado no ano de 1994 atestou que um grupo de peixes-serra com mais de 7 metros foi avistado nas imediações de Gloucester. O grupo em questão era composto de cinco indivíduos sendo que o menor deles não tinha menos do que seis metros de comprimento. Talvez tenha sido algo semelhante ao que os marinheiros viram em 1817. 

Como explicações mundanas não geram manchetes e menos ainda vendem jornais, ninguém queria saber de peixes-serras e sim de uma serpente marinha misteriosa. Isso gerou dois anos de relatos sensacionalistas e manchetes de jornais sobre um monstro na costa da Nova Inglaterra. 

Há ainda a questão da conformidade social na qual certas crenças podem se espalhar rapidamente por uma comunidade, mesmo entre aqueles que não testemunharam nada fora do normal. Pessoas que ouviram falar sobre Glossy podem ter sido impactadas pela mesma narrativa e passaram a acreditar nela piamente. Casos de testemunhas oculares sempre são acompanhados pela observação prévia de outras pessoas reforçando a narrativa. O fenômeno é conhecido pela psicologia como Pareidolia uma espécie de confirmação combinada de indivíduos que acreditam ter visto a mesma coisa e assumem ter compartilhado de algo notável. Esses eventos são bem comprovados e exatamente o que esperamos no caso de animais ou criaturas sobrenaturais como este.

Verdade ou mentira, simples rumor ou monstro real, ninguém, mesmo hoje, é capaz de dizer com certeza o que aconteceu. A Lenda da Serpente Marinha de Gloucester se espalhou e continuou a ser contada ao longo do tempo. Dizem que Hermann Melville procurou saber à respeito dela para escrever seu famoso romance náutico - Moby Dick. 

É certo que as pessoas em Gloucester continuarão a lembrar dessa lenda, afinal, eles sabem que os mares oferecem histórias que às vezes são difícies de serem explicadas. 

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