Na Hungria, no início da década de 1900, Bela Kiss de 32 anos, mudou-se para uma casa alugada em Cinkota, uma pacata cidadezinha nos arredores de Budapeste.
Kiss era um homem simpático que logo ganhou a admiração de todos. Seus vizinhos imediatamente o viram como um sujeito amigável, o tratavam como alguém de respeito, um cidadão acima de qualquer suspeita. As mulheres o achavam bastante bonito, com cabelos loiros brilhantes e olhos de um azul que parecia se iluminar quando demonstrava interesse. Seu grande bigode, cuidadosamente aparado parecia másculo e severo, mas Bela era gentil e muitos descreviam sua voz como cativante.
Ele ganhava a vida como funileiro, uma profissão importante na época. Um funileiro era uma espécie de artesão em ferro que realizava conserto e serviços em objetos de metal, ofício que lhe garantia um salário regular. Para todos os efeitos ele tinha uma vida tranquila e com algumas regalias.
Kiss também se destacava pela sua notável inteligência. Não apenas havia aprendido sozinho seu trabalho como se mostrou um artesão admirado pela habilidade. Clientes vinham de todo canto, inclusive da capital, trazer algum objeto para ele reformar. Mas Bela não se destacava apenas pela sua profissão, ele também era famoso por ser um leitor voraz. De fato ele devotava seus momentos de folga para a leitura que era sua atividade favorita. Ele tinha orgulho da vasta coleção de livros sobre os mais variados temas. Kiss era um conhecedor de arte, literatura e história antiga. Era capaz de dissertar à respeito de estilos de arte clássica, de falar sobre as vertentes do modernismo, fazer crítica sobre romances e tecer comentários à respeito da política internacional. Alguns amigos vinham até sua oficina apenas para conversar e ele os recebia sempre com um sorriso, satisfeito em trocar ideias sobre os últimos acontecimentos na Europa.
Sem nenhuma escolaridade formal, era notável como Bela conseguia cativar a todos, sendo capaz de discutir praticamente qualquer assunto com as pessoas mais inteligentes e instruídas da cidade. Ademais falava alemão, russo, checo e latim, além de entender o básico de grego e búlgaro. Os idiomas, se gabava de ter aprendido quando prestou o serviço militar e foi secretário de um General. Bela teria se destacado recebendo inclusive condecorações no serviço militar.
Ele também tinha fama de ser um bon-vivant com propensão a dar festas. Em mais de uma ocasião convidou amigos e conhecidos para festejar nas tavernas locais, pagando à todos refeições e bebida, o que lhe valeu a fama de ser generoso. Em resumo, todos gostavam de Bela Kiss e ele era considerado pelas mulheres o solteiro mais cobiçado da cidade.
Não particularmente ansioso para se casar, Kiss contratou a idosa Sra. Jakubec, como governanta para realizar as tarefas domésticas que uma esposa normalmente faria. Cinkota tinha uma escolha limitada de companheiras, então Kiss manteve um apartamento em Budapeste e publicou anúncios românticos em jornais de lá. As mulheres se correspondiam com Kiss que recebia muitas cartas. As fofocas na cidade davam conta de que ao longo dos anos um fluxo constante de mulheres de Budapeste passavam curtos períodos de tempo na casa de Kiss em Cinkota, mas ninguém na cidade, nem mesmo a Sra. Jakubec, foi apresentado a essas jovens que iam e vinham tão rapidamente.
Ele tinha 37 anos quando a Guerra Mundial eclodiu em 1914 e os reservistas húngaros foram convocados para defender o país. Bela não estava especialmente ansioso para retornar ao serviço militar, mas acabou se apresentando e foi reintegrado ao Exército nacional. Bela deixou sua casa fechada e oito meses de aluguel pagos em avançado. Ele esperava retornar em breve e continuar seguindo com seu trabalho como funileiro, retomando sua vida normal. Talvez por conta disso ninguém jamais poderia imaginar o horror que seria revelado cerca de dois anos após a sua partida.
Tudo começou de uma maneira bem simples. Certo dia o detetive-chefe Charles Nagy da polícia de Budapeste, recebeu uma ligação alarmante. Era o dia 16 de julho de 1916 e a pessoa do outro lado da linha se apresentou como morador de Cinkota. O tom era de afobação e ele parecia não falar coisa com coisa.
Ele acreditava ter descoberto evidências de um assassinato ocorrido em sua propriedade.
O sujeito explicou que era o proprietário de uma casa na rua Kossuth que havia sido alugada a um soldado chamado Bela Kiss. O inquilino havia partido para a guerra e o contrato havia expirado. Rumores mencionavam que ele se tornou prisioneiro de guerra ou até que possivelmente havia sido morto em batalha. De qualquer forma, não era provável que ele retornasse logo já que a guerra se arrastava.
O proprietário foi até a casa para ver que reparos seriam necessários caso ele viesse a alugá-la novamente. No pátio nos fundos da casa se deparou com algo inusitado: vários tambores grandes de metal. Aquilo era esquisito pois o inquilino havia deixado aquelas coisas misteriosas sem mencionar o que seriam. Imaginando que poderia ser combustível estocado, o senhorio perfurou um dos tambores fazendo escorrer de dentro dele uma água escura de fedor nauseante. Um funcionário da farmácia ao lado disse que o cheiro era inconfundível e decretou se tratar de decomposição humana.
O proprietário implorou ao Detetive Nagy que viesse com urgência já que haviam dezenas de tambores semelhantes e ele tinha um péssimo pressentimento sobre o que acontecia ali. Nagy reuniu dois de seus melhores detetives e correu para a pacata cidadezinha de Cinkota. Quando chegaram à casa da rua Kossuth, o proprietário e alguns vizinhos já aguardavam com olhares preocupados. A idosa Sra. Jakubec, que havia prometido proteger os pertences de seu patrão, ficou furiosa e gritou para os policiais deixarem a propriedade em paz.
Nagy a tranquilizou se responsabilizando por qualquer dano produzido. Ele então abriu um dos tambores de metal lacrado com solda. Isso confirmou as piores suspeitas do proprietário e dos moradores locais. Dentro havia o corpo nu de uma jovem morena com longos cabelos escuros. Também dentro do tambor de metal estava a corda com a qual ela havia sido amarrada. O fedor era tamanho que a vizinhança inteira se perguntava o que havia acontecido na casa do funileiro.
Ao ser questionada, a Sra. Jakubec ficou perplexa com o conteúdo das grandes latas de metal que Bela Kiss estocava em seu quintal. Os poucos que haviam visto os tambores presumiram que se tratava de gasolina ou diesel estocada. Quando os detetives examinaram os outros tambores de metal, descobriram que cada um continha o corpo de uma mulher nua. Todas elas foram vítimas de abuso e estrangulamento, finalmente haviam sido mergulhadas em uma solução de álcool que as preservava.
Depois que os detetives isolaram a cena do crime um agente funerário foi chamado para recolher os cadáveres. A polícia também conduziu uma busca na casa de Kiss e nos arredores, encontrando mais corpos que haviam sido enterrados no terreno. Cada vítima, mesmo aquelas que foram enterradas, havia sido preservada com álcool. Os corpos ainda eram reconhecíveis e podiam ser identificados se tivessem alguns nomes com os quais trabalhar. O número de vítimas chegava a 15.
Diante do maior caso de sua carreira o Detetive Charles Nagy notificou imediatamente os militares que Bela Kiss, se ainda estivesse no front, tinha de ser preso como assassino. Em seguida, ele interrogou a governanta aterrorizada. Nagy acreditava que Kiss poderia ter um cúmplice, por isso notificou as autoridades postais e telegráficas das redondezas que deveriam reter quaisquer mensagens destinadas a Bela Kiss. A notícia da grande descoberta estava se espalhando rapidamente por Cinkota e logo chegaria aos jornais de Budapeste. Nagy queria ter certeza de que nenhum cúmplice receberia um aviso.
Vários fatos tornaram a investigação mais difícil do que o normal. Os nomes húngaros Bela e Kiss eram extremamente comuns no país. Era provável que houvesse muitos homens no exército chamados Bela Kiss de modo que a prisão do indivíduo correto seria complicada por fatores alheios a sua vontade.
Nagy então se concentrou na identidade das vítimas que poderia ajudar a entender como aquelas mortes aconteceram. As pistas nos cadáveres eram escassas já que as vítimas estavam nuas e sem identificação. Contudo, dentro da casa que a senhora Jakubec manteve imaculada, a polícia encontro uma única porta trancada. "Essa é a sala particular do patrão", disse a criada ao detetive Nagy. "Ele me disse para nunca entrar e nunca deixar ninguém entrar". A Sra. Jakubec enfiou a mão no avental e tirou uma chave antiga que abriu a porta trancada a dois anos. Nagy percebeu imediatamente que a sala estava repleta de estantes cheias de livros e a única mobília era uma grande escrivaninha e uma cadeira confortável.
Os livros eram escritos em vários idiomas e versavam sobre os mais variados assuntos. No entanto, chamou a atenção de todos a quantidade enorme de livros versando sobe ocultismo, magia negra, feitiçaria e temas similares. Bela Kiss parecia alguém muito interessado no tema e dedicado ao que se convencionou chamar de Ciências Esotéricas. Os livros eram antigos, alguns manuscritos contendo todo tipo de conhecimento estranho.
Numa gaveta trancada na escrivaninha a polícia encontrou um enorme volume de correspondência entre Kiss e várias mulheres. Também encontraram um álbum com fotos de mais de cem mulheres com as quais ele teria se correspondido ao longo de vários anos. Nagy começou a se preocupar com a possibilidade de o número de vítimas ser maior do que o de cadáveres descobertos na casa. As cartas foram arquivadas em pacotes para que a correspondência fosse separada por ano. As mulheres escreviam em resposta a anúncios publicados na seção de Correio Sentimental nos maiores jornais de Budapeste. Todas queriam casamento e achavam Bela Kiss um bom partido. Mais tarde foi revelado que Kiss havia recebido 174 propostas de casamento. A 70 dessas mulheres, ele ofereceu casamento e manteve correspondência regular com elas. Outra coisa ficou bastante clara, Bela Kiss estava enganando mulheres pegando empréstimos delas e enriquecendo. Algumas das cartas datavam de 1903.
A polícia se perguntava como era possível que Kiss pudesse se corresponder com tantas mulheres e trazer muitas delas para sua casa sem que ninguém suspeitasse de suas intenções. Era impossível que ninguém soubesse de alguma coisa.
Nagy suspeitava da Sra. Jakubec, já que ela era criada na casa há mais de uma década. Quando Nagy a interrogou, ela se mostrou aterrorizada com a possibilidade de ser acusada de participação nos crimes, ainda assim tentava defendê-lo à todo custo: "Ele era um homem muito bom. Todos gostavam muito dele na cidade. Ele era gentil com todos; não machucaria ninguém! Tenho certeza de que isso é um erro – ele não pode ter matado aquelas mulheres!"
A criada admitiu ter visto muitas moças entrando e saindo da casa vindo visitar Bela Kiss ao longo dos anos, mas alegou não saber seus nomes. "Eu quase nunca disse uma palavra a eles. Eu era apenas a criada e passava as noites em minha própria casa. O que Bela fazia com essas senhoras não era da minha conta. Eram todas senhoras da cidade, não camponesas como eu. Vinham num dia e depois iam embora."
Nagy e seus colegas questionaram os vizinhos de Kiss na cidade e os que o conheciam. Todos gostavam dele e não achavam incomum um solteiro bonito e amável receber a visita de várias mulheres. Os homens casados da cidade o invejavam, as mulheres o admiravam. Quem poderia imaginar o que acontecia na casa? Quem poderia dizer que atos tão horríveis aconteciam ali, bem perto deles?
O detetive contatou os departamentos de polícia de todos os lugares onde encontrou uma mulher que havia se correspondido com Bela Kiss. Eventualmente, ele teve certeza de entender a técnica usada pelo assassino para atrair suas vítimas. Ele colocava anúncios nos jornais, buscando informações sobre os recursos financeiros da mulher. Quando recebia resposta ele a visitava, descobria sobre sua família e amigos. Ele se concentrava nas mulheres que não tinham parentes próximos e que não fariam falta se desaparecessem. Com o tempo as seduzia e conquistava sua confiança.
A maioria das cartas indicava que as mulheres lhe davam dinheiro, joias e às vezes tudo o que tinham, tamanha a habilidade dele em inventar histórias e razões absurdas para que elas o fizessem. Bela também dizia ser uma espécie de místico, bruxo ou vidente que auxiliava as mulheres oferecendo a elas meios de conquistarem o que desejavam. O homem era na verdade um charlatão, um falsário e um sedutor. Se ele achasse que havia algum risco de envolvimento da polícia, imediatamente providenciava um encontro no qual as eliminava. Dessa maneira ele aparentemente havia atraído dezenas de mulheres até sua casa ou até lugares onde poderia matá-las. Bela era um mestre no uso do garrote, aparentemente ele aperfeiçoou o método lendo e buscando informações em revistas policiais do período. Um auto de data, ele se gabava de ser capaz de matar com rapidez para não fazer a vítima sofrer demasiadamente: "Ao pegar de jeito, não há escape", escreveu ele.
Analisando as cartas, a polícia obteve indícios de que Kiss havia assassinado pelo menos 30 mulheres, ainda que nem todos os corpos tivessem sido encontrados. As autoridades acreditavam que o número de vítimas poderia ser ainda maior, já que várias mulheres que lhe escreveram ao longo dos anos não foram localizadas e simplesmente sumiram em pleno ar.
Em 4 de outubro de 1916, a polícia recebeu uma mensagem de um hospital sérvio alegando que um soldado chamado Bela Kiss havia morrido de tifo em 1915. Foi seguido por outra mensagem que dizia que Kiss estava vivo e era um paciente no mesmo hospital. O detetive viajou imediatamente para o local, que estava então em mãos húngaras. "Acho que pegamos seu homem", informou o comandante militar pelo telégrafo. Nagy estava tomado pela excitação. Ele chegou ao hospital ao anoitecer, mas quando foi levado à enfermaria onde o criminoso estava se recuperando, ficou em choque. O homem na cama estava morto - enforcado, mas não era Bela Kiss. De alguma forma, ele foi avisado de que a polícia estava à caminho, matou um enfermeiro e colocou seu cadáver na cama.
As autoridades decidiram que toda a Hungria deveria saber sobre o Monstro de Cinkota e mandou imprimir milhares de cartazes com a foto de Bela Kiss. Dicas choveram de todas as partes do país. Seguiram-se muitos avistamentos em lugares díspares ao redor do mundo. Alguém alegou ter visto o serial killer andando por uma rua de Budapeste em 1919. Cinco anos depois, em 1920, um membro da Legião Estrangeira Francesa foi a uma delegacia de polícia para denunciar um colega legionário que ele acreditava ser Kiss. O homem, que assumiu o nome Hoffman (um pseudônimo que Kiss usava) era famoso por usar o garrote de maneira letal. A polícia foi até a unidade para interrogar Hoffman apenas para descobrir que ele havia desertado dias antes.
Um soldado húngaro alegou que Bela Kiss foi preso na Romênia por enganar mulheres. Outro disse que ele morreu de febre amarela na Turquia. Com a notícia se espalhando, não demorou até Bela Kiss se converter no homem mais procurado da Europa. Nos anos 1920 até meados da década de 1930 ele foi procurado em vários países e considerado o inimigo público número. Cartazes com sua foto e descrição estiveram nas principais delegacias de polícia no continente. Ele foi o primeiro criminoso a ter seu nome incluído na Lista dos mais procurados da Interpol quando esta foi criada em 1923. De fato, uma das justificativas para a criação da Polícia sem Fronteiras na Europa foi capturar criminosos como Bela Kiss.
As informações sobre Kiss chegaram ao Novo Mundo. Um detetive de Nova York chamado Henry Oswald tinha certeza de ter prendido Bela Kiss em 1932. Ele usava outro nome e tinha alterado sua aparência, contudo ele não tinha dúvidas de que se tratava do fugitivo. Oswald tinha o apelido de "Olho de Lince" por sua memória extraordinária para rostos. Após ser liberado, ele acabou sumindo uma vez mais. O relatório fez muitos se convencerem de que Kiss, com quase 70 anos estaria morando em Nova York. Em 1936, novos rumores surgiram de que ele trabalhava como zelador num prédio de apartamentos. A polícia foi ao prédio para entrevistar o suspeito mas ele havia fugido e não deixou nenhuma informação.
Aos poucos ele foi deixando de ser notícia, desaparecendo para sempre e se tornando uma espécie de lenda. Muitos fatos sobre Bela Kiss jamais serão conhecidos, nem mesmo seu destino final. Ele se converteu em um verdadeiro mito, maior que a sua própria vida.
Uma questão importante é se Kiss parou de matar depois de encontrar um novo esconderijo e assumir outra identidade. Embora nenhum crime tenha sido atribuído diretamente a ele fora da Hungria, é pouco provável que um serial killer tenha parado repentinamente de matar. Bela Kiss aprimorou suas técnicas de sedução e assassinato ao longo de anos e aquilo se tornou parte de sua vida. Talvez ele tenha tentado se misturar com a população e ter uma vida normal, esquecendo seu passado, mas quando comparamos seus feitos com o de outros criminosos é difícil acreditar que ele tenha simplesmente desistido de seu modus operandi.
A verdade é que Bela Kiss, o Monstro Assassino e um dos homens mais procurados do mundo conseguiu ludibriar todos os seus perseguidores e jamais foi apanhado.
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