O período conhecido como Era Vitoriana se entendeu da metade do século XIX até o início do século XX e foi uma época de grandes mudanças, avanços, descobertas e progresso global.
Tudo estava em transformação, e os alicerces para o mundo atual, na forma como conhecemos hoje em dia, estavam sendo erguidos. As nações se tornavam Impérios, a Revolução Industrial estava em marcha, modernizando e permitindo avanços tecnológicos impensáveis até então. As grandes cidades se convergiam em metrópoles de concreto, vidro e cristal, com parques, monumentos e linhas de trem as conectando. A sociedade se adaptava aos novos ditames de seu tempo com inovações, direitos e conquistas marcantes. A ciência se encontrava no seu ápice, com o homem assumindo o papel de único Senhor da Criação e não mero habitante do mundo à sua volta. As fronteiras caíam e espaços vazios nos mapas finalmente eram preenchidos. Para muitos foi a Aurora de um novo e glorioso tempo.
Mas nem tudo era perfeito!
A sanha de conquista dos Impérios deu ensejo ao colonialismo e a imoral exploração dos povos nativos. Muitas nações foram tomadas, roubadas e devastadas, deixando cicatrizes que se mantém até hoje. Os movimentos sociais foram forjados por pensadores que mais tarde iriam dar ensejo a revoluções, crises e genocídio sem precedente. As inovações tecnológicas permitiram o êxodo dos campos, a expansão das cidades e o surgimento de grandes centros populacionais. Mas estas inovações também forneceram métodos mais eficazes de matar. Em uma época de grande avanço, a miséria, a doença, a guerra e a fome jamais foram erradicadas. O crime e a injustiça se tornaram comuns nas grandes cidades escurecidas pela fumaça das chaminés e cobertas pelos refugos de uma população desesperada.
A Era Vitoriana, que recebeu esse nome graças a Rainha Britânica Victoria que governava o "Império onde o Sol nunca se punha", foi um caldeirão de contrastes profundos e uma época de grandes extremos. Nela a humanidade experimentou o seu melhor, mas também foi confrontada pelo pior que dela poderia aflorar. É um período histórico perfeito para ambientações de RPG. Uma época fascinante de conhecer e interagir, repleto de dualidade e oportunidades dramáticas, não por acaso um cenário bastante popular em diversos jogos.
Chamado de Cthulhu não é exceção! Não é de hoje que nosso amado RPG de Horror Lovecraftiano estabeleceu uma espécie de ponte que liga os investigadores da Londres Vitoriana aos horrores do Mythos de Cthulhu.
Curiosamente a época clássica de Chamado, os anos 1920, estão mais próximos da Era Vitoriana do que de nós hoje em dia. Se temos atualmente um mundo que deixaria qualquer cidadão do início do século XX assombrado, por outro, eles sentiriam certa familiaridade com o fim do século XIX. A tecnologia que os separava não era tão dispare. Carros existiam, ainda que raros. Eletricidade era conhecida, mesmo que nem de longe, fosse algo corriqueiro. O abismo social era imenso, mas não muito diferente do período entre as Guerras Mundiais. Os ricos formavam uma aristocracia coberta de luxo e regalias, enquanto os pobres lutavam para sobreviver no dia a dia.
Talvez por isso, entender a Era Vitoriana seja um tanto difícil para nós. Mas se esse período possui nuances e complexidades, não se aflija, pois temos um novo livro que cobre o tema e promete esmiuçar cada detalhe e criar aquilo que pode ser considerado o manual definitivo sobre a Era Vitoriana.
A Editora Chaosium lançou suplementos sobre o período a partir da quarta edição de Chamado de Cthulhu e estes sempre foram livros muitíssimo elogiados. O título escolhido nunca mudou: CTHULHU BY GASLIGHT - em uma referência a forma de iluminação típica da época, que criava uma aura sombria de mistério nas cidades.
Era razoável supor que mais cedo ou mais tarde, uma nova edição de Cthulhu by Gaslight seria adaptada para a sétima edição, então, não é o lançamento que surpreende, mas sim o formato escolhido. A diferença mais notável está no tamanho - os livros anteriores eram consideravelmente modestos quando comparados com este livrão de quase 300 páginas. E enquanto os suplementos anteriores se limitavam a um volume único, agora, o material está dividido em duas partes: o Guia do Investigador e o Guia do Guardião.
Nesta resenha vamos nos concentrar no Guia do Investigador, enquanto aguardamos ansiosamente pela sua contraparte dedicada ao Guardião que está programada para ser lançada no primeiro trimestre de 2025.
Se você é um fã de Chamado de Cthulhu, provavelmente já está familiarizado com a qualidade dos produtos da Chaosium Inc nos últimos anos. Visualmente o Guia do Investigador de Gaslight é um livro de capa dura, totalmente colorido, com excelente valor de produção e arte sensacional. O projeto gráfico segue a linha dos livros anteriores e a diagramação é muito eficiente. O material inclui também um mapa desdobrável de Londres em meados de 1890. Tudo é muito bem feito com o cuidado e capricho característicos dos últimos suplementos com o selo Call of Cthulhu.
Um aspecto curioso deste livro é que um de seus apêndices tem uma cópia condensada das regras básicas do sistema na 7ª edição, permitindo que este livro sirva como um manual de regras. Não tenho certeza de quantas pessoas usariam este livro de forma independente, mas é uma opção curiosa — se você estiver levando o livro para narrar em um evento ou num encontro de RPG, será um livro físico a menos que você irá precisar levar com você.
O suplemento tem um objetivo bastante ambicioso. Ele busca oferecer ao jogador todas informações necessárias para construir personagens inseridos na Era Vitoriana. A proposta é que o jogador consiga usar as informações aqui contidas não apenas em cenários de Chamado de Cthulhu, mas em qualquer ambientação que se passe no período. Isso torna Cthulhu by Gaslight uma espécie de suplemento coringa, valiosíssimo em qualquer ambientação centrada no século XIX, não necessariamente apenas as que tratam dos Mythos de Cthulhu.
Geralmente eu não gosto muito de ler e escrever resenhas que descrevem um livro capítulo por capítulo, mas acredito que nesse caso é a forma mais apropriada de expor tudo o que está contido nesse suplemento e o que o leitor encontrará ao abrir esse livro e folhear suas páginas. Então vamos a eles.
Capítulo 1: Land of Hope & Glory (Terra da Esperança e Glória) fornece uma visão geral abrangente da sociedade no final da Era Vitoriana. Inclui tópicos que cobrem temas como o sistema de classes, a dinâmica da vida urbana e rural, as principais religiões, costumes, a vida política, a importância de fatores como raça, sexo e identidade sexual. O material é de fácil compreensão e tem uma bela descrição.
O capítulo também trata de comunicações e tecnologia fornecendo informações compreensivas para que os jogadores saibam ao que os personagens podem ter acesso durante uma investigação. Isso é algo bastante útil já que uma preocupação recorrente em aventuras com temática histórica é saber se determinada coisa existia ou não no período. Também é bem vinda uma seção que cobre o funcionamento da lei e da ordem na época, com uma apreciação de como opera a polícia, o setor investigativo e as principais ramificações do crime.
Abrangendo cerca de quarenta páginas, é um capítulo que provavelmente será útil tanto para jogadores, quanto para os e narradores e não apenas os de Chamado de Cthulhu já que essas informações podem ser aproveitadas em qualquer ambientação vitoriana.
Capítulo 2: Creating Gaslight Investigators (Criando Investigadores Gaslight) é provavelmente o capítulo que contém mais crunch de regras específicas do BRP (o sistema de Chamado de Cthulhu). Nele temos as regras de construção de personagens voltadas especificamente para a criação de investigadores vitorianos. A maior parte desse material é reproduzido no Guia do Investigador de Chamado, embora obviamente haja diferenças específicas para essa época, bem como algumas novas habilidades e ocupações. O capítulo também se esforça em explicar como cada ocupação e habilidade era compreendida no período vitoriano e as diferenças para a época clássica. É interessante como as ocupações se relacionam com as classes sociais e como algumas profissões acabam sendo exclusivas para um determinado tipo de pessoa, praticamente vedando que outras ingressem nelas.
Uma seção importante diz respeito aos Antecedentes dos personagens com uma boa lista de exemplos que devem atender aos jogadores que querem dar uma dimensão mais profunda aos seus personagens. O livro também faz um aceno ao Cthulhu Pulp fornecendo uma lista de Talentos adequados para os investigadores pulp.
Finalmente temos uma pequena discussão sobre o papel de Organizações, Sociedades e Clubes de Cavalheiros, um elemento central na dinâmica social das pessoas na Era Vitoriana. Todos que "eram alguém" faziam parte de algum clube social e recebiam certos benefícios de acordo.
Capítulo 3: Money, Equipment & Weapons (Dinheiro, Equipamento e Armas) detalha todas as coisas que um Investigador do final do século XIX pode desejar comprar. Sendo um jogo de RPG, isso, é claro, inclui um imenso sortimento de armas (e estatísticas de armas). Impressiona a lista de armas de fogo que estavam disponíveis na época vitoriana, bem como as armas brancas.
A listas incluem ainda veículos casuais, com todo tipo de carruagens, carroças e coches usados pelas pessoas que desejavam se mover de uma ponta para outra das cidades. Há informações sobre automóveis primitivos, balões e claro, trens, bem como o custo do transporte. Temos também uma lista criteriosa de equipamentos e objetos que podem ser adquiridos pelos seus investigadores.
Sendo um livro muito voltado para a Grã-Bretanha, ele naturalmente oferece uma visão geral da estonteante e complexa variedade de moedas que se pode encontrar circulando no país. Realmente são muitas as moedas, nomes e taxas de conversão. Os autores fizeram uma bela pesquisa do assunto.
Capítulo 4: Victorian Exploration (Exploração Vitoriana) oferece uma pletora de detalhes sobre como atuavam e eram organizadas as famosas expedições de descoberta. O capítulo faz todo sentido uma vez que a Era Vitoriana foi uma época em que as últimas fronteiras do mundo estavam sendo vasculhadas por aventureiros e exploradores cujos nomes se tornaram lendários.
O capítulo fornece informações sobre as principais expedições ativas, quem eram os personagens principais, assim como uma longa cronologia de expedições ano à ano cobrindo de 1870 a 1900. É impressionante a quantidade de expedições que esquadrinharam o mundo e ajudaram a definir a geografia do globo.
Capítulo 5: Science, Pseudoscience and the Occult (Ciência, pseudociência e o oculto) abrange o funcionamento da Ciência Médica (ópio para fins medicinais ou recreativos), saúde mental e instituições de saúde no período o que sempre é útil já que muitas aventuras terminam em manicômios.
Há uma apreciação de algumas das chamadas ciências marginais com uma descrição de como era o funcionamento e as bases de coisas bizarras como Mesmerismo, Eletroterapia, Frenologia e Eugenia. Sendo uma época de muita experimentação, a Era Vitoriana encontrou sua parcela de médicos loucos.
Uma vez que estamos no universo de Chamado de Cthulhu temos uma fartura de tradições, misticismo e superstições ligadas às crenças dos vitorianos. O livro dispensa especial atenção às tradições milenares tipicamente britânicas com druidismo e paganismo, mas também há espaço para contar como a secreta fraternidade da Maçonaria e os eméritos Rosacruzes que deixaram marcas na sociedade européia.
Como não poderia deixar de ser, atenção especial é dada à Ordem Hermética da Aurora Dourada (Golden Dawn) que sem dúvida foi a mais influente Sociedade Mística do período. Uma espécie de instituição de ensino para aprimoramento místico, a Golden Dawn era uma ordem filosófica que visava o aperfeiçoamento místico - grosso modo, uma Escola de Magia moderna. Os membros mais ilustres são apresentados através de uma biografia que é claro, inclui o infame Aleister Crowley.
O capítulo também oferece uma visão sobre o Espiritualismo que estava muito em voga na época, a crença em Fantasmas e as confusas doutrinas da Teosofia da renomada Madame Blavatsky. Essa é uma seção muito interessante que se encaixa perfeitamente na proposta de Cthulhu, mas que pode ser aproveitada para outros tantos RPG que exploram o misticismo.
O livro evita fornecer novos feitiços, tomos esotéricos e parafernália mágica, mas imagino que o Guia do Guardião deva cobrir cada um desses elementos. É um tanto quanto frustrante a ausência desses itens, mas compreendo que eles devem estar presentes no outro volume.
Capítulo 6: Victorian London (Londres Vitoriana) serve como referência à cidade em si com uma riqueza de detalhes que cobre os principais aspectos da maior e mais imponente metrópole da Era Vitoriana. Londres, a Capital do Império Britânico, é o cenário ideal para uma campanha de Cthulhu by Gaslight, não apenas pelas referências e pela riqueza de opções, mas porque quando se fala do período Vitoriano uma das primeiras coisas que vem à mente são as ruas cobertas de fog do East End Londrino.
O capítulo fornece um panorama completo do que os investigadores encontrarão ao explorar a cidade - da gloriosa Westminster aos distritos miseráveis repletos de crime e perversidade. Londres oferece uma infinidade de possibilidades e o capítulo reforça alguns aspectos situando o Guardião nessa grande paisagem urbana.
O Guia da Cidade é um trabalho incrível de pesquisa, com detalhes e imagens belíssimas que são incrivelmente evocativas. O capítulo também oferece informações sobre transporte público, bairros, atrações, monumentos, museus, instituições, clubes, etc. É um capítulo bastante extenso e repleto de informações úteis para os Investigadores. Se um deles precisar fazer pesquisas numa biblioteca, encontrar um pub em busca de testemunhas ou contratar informantes, esse capítulo fornecerá tudo isso e muito mais.
Chapter 7: Beyond London (Além de Londres) começa com uma visão geral do restante das Ilhas Britânicas, incluindo como se pode viajar até elas de trem, por estradas ou pelo mar. Escócia, Gales e Irlanda, os países que compõem a Grã-Bretanha, possuem mapas com as regiões e províncias que os integram. Essa é uma novidade interessante em relação às demais edições do Gaslight onde a maior parte do destaque ficava por conta da Inglaterra, com um foco ainda maior em Londres. O capítulo aprecia as regiões vizinhas fazendo uma bela apresentação de como era a vida no interior e nas demais cidades inglesas.
Em seguida, o capítulo cruza o Oceano Atlântico para fazer uma visita ao leste dos Estados Unidos, com a ressalva de que o Oeste nesse período é coberto pelo suplemento Down Darker Tales. Os Estados Unidos do final do século XIX figura com detalhes sobre organização, sociedade, vida urbana e política. Isso inclui uma discussão criteriosa sobre o quão racista os Estados Unidos eram nesse período. Também há uma apresentação das principais cidades da costa leste, dedicando um bom espaço para Nova York, Boston, Chicago e é claro, as cidades do Vale de Miskatonic.
A América na chamada Gilded Age raramente figura em ambientações de RPG uma vez que uma maior ênfase acaba sendo dado a expansão para o oeste. Talvez por isso esse capítulo seja tão interessante ao abrir uma possibilidade para os personagens britânicos viajarem até a América e quem sabe participarem de uma investigação.
Capítulo 8: The British Empire (O Império Britânico) é outra grande inovação bem vinda nesse suplemento. Ele nos leva em uma jornada ao redor do mundo para todos os lugares que o Império Britânico reivindica, incluindo uma visão geral das diferenças entre coisas como Colônias, Colônias da Coroa e Domínios. Houve um tempo em que o Império Britânico estava representado em todos os continentes e sua orgulhosa bandeira tremulava em todos cantos do globo. A lista dos países que fazem parte do Império inclui Canadá, Caribe, Guiana Britânica, África do Sul, Quênia, Nigéria, Afeganistão, Burma, Índia, Nova Zelândia e Austrália.
O capítulo oferece uma seção intitulada "Somos nós os vilões?" sobre o colonialismo e o legado das conquistas imperialistas que marcaram a Era Vitoriana. É claro, se você vai conquistar e dividir o mundo em fatias, é necessário ter um exército, então temos uma visão geral das forças armadas da Grã-Bretanha, com destaque para a marinha e uma discussão sobre seus aliados e adversários na Europa.
Uma excelente linha de tempo oferece uma cronologia dos principais acontecimentos entre 1870 e 1900 que permite situar suas aventuras em meio a eventos reais e acontecimentos dramáticos.
O livro fecha com dois apêndices, um fornecendo o resumo das regras básicas conforme mencionado anteriormente e o outro fornecendo recursos que podem ser úteis como inspiração para jogos situados no final da Era Vitoriana. Temos dezenas de sugestões válidas em livros, páginas da internet, filmes e séries.
Ufa! Então vamos às considerações finais.
Cthulhu by Gaslight: Investigators’ Guide é um suplemento absolutamente fantástico, possivelmente um dos melhores livros de ambientação lançados para a sétima edição de Chamado de Cthulhu. Ele fornece uma visão ampla de como era a vida nesse período e garante aos jogadores opções quase infinitas para criar seus personagens concedendo a eles características e cores únicas.
O Guia é um manual inestimável com aproximadamente 300 páginas repletas de informações e dados que ajudam a evocar a aura da Era Vitoriana. A leitura corre fluida e fácil, num ótimo trabalho gráfico que inclui arte e cartografia brilhantes.
Suponho que o "Cthulhu by Gaslight Guia do Guardião" irá focar consideravelmente mais em mistérios e segredos, monstros e cultos, criaturas e deuses do que esse primeiro volume que é muito mais voltado para a dinâmica dos jogadores. Não espere, portanto, encontrar muito a respeito do Cthulhu Mythos. Ainda assim, este livro talvez seja o guia definitivo do período, uma ferramenta imprescindível para qualquer narrador que pretende rodar uma campanha vitoriana fundamentada e correta.
O livro foi publicado pela Chaosium em Outubro de 2024 e até o momento não há nenhuma previsão dele ser traduzido em português, mas eu não ficaria surpreso se isso acontecer em breve quando o segundo volume também estiver disponível. A New Order que detém os direitos sobre o selo Chamado de Cthulhu no Brasil já deve estar de olho nesse excelente suplemento.
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