sexta-feira, 30 de maio de 2025

Dicionário dos Mythos de Cthulhu - Letra E de "Elemental, Teoria"

 

ELEMENTAL, teoria

Ao longo das eras, incontáveis teóricos e pesquisadores dos Mythos de Cthulhu se debruçaram sobre a natureza dos Deuses, divindades e criaturas que compõem essa mitologia. Uma das curiosidades sobre estes seres envolve a classificação deles em sistemas compreensíveis capazes de separá-los em categorias. De todas classificações existentes poucas são mais polêmicas e controversas do que a que liga cada um dos Grandes Antigos aos quatro elementos.

A infame Teoria Elemental apareceu pela primeira vez nos trabalhos do Conde d'Erlete, um nobre ocultista francês do século XVII que escreveu sobre o Mythos e que supostamente fez uma transição se tornando um carniçal. Posteriormente a mesma teoria foi defendida pelo Professor Shrewsbury que expandiu os conceitos açambarcando elementos da Filosofia Medieval

A Classificação enquadra certas deidades nos quatro elementos da seguinte maneira: 

Ar - Hastur, Itaqua, Lloigor e Zhar

Terra - Tsathogua, Cyaegha e Nyogtha 

Fogo - Cthugha e Aphoom Zhah

Água - Cthulhu, Dagon, Ghatanathoa, Hydra e Zoth-Ommog

A Teoria possui defensores entre místicos e feiticeiros, sobretudo aqueles com inclinação para a Philosophica Alquimica que enxerga alguns deuses e seres do Mythos como forças Elementais extremamente poderosas, por vezes até mesmo o simulacro do próprio conceito Elemental. Nessa crença Cthulhu seria o mais poderoso dos Elementares da Água, o mesmo ocorrendo com Cthugha, Ithaqua e Tsathogua potentados máximos do Fogo, Ar e Terra respectivamente. 

Embora a teoria pareça funcionar à primeira vista, ela acaba perdendo coerência quando examinada com cuidado. Seus detratores, em especial os sábios árabes, afirmam que a Teoria encontra falhas graves. Por exemplo, se Cthulhu é de fato o mais poderoso dos Elementares da Água, por qual razão ele estaria aprisionado sob o oceano, onde a água bloqueia suas emanações psíquicas? 

Há também questionamentos sobre os Deuses Exteriores gozarem de igual classificação, o que encontra ainda mais controvérsia. Nesse contexto Nyarlathotep e Shub-Niggurath seriam divindades do Elemento Terra, Yog-Sothoth do Fogo, enquanto Azathoth seria uma força ligada ao Ar. Mas como Deuses que transcendem a noção de Tempo e Espaço, seriam passíveis de uma classificação terrena? Para solucionar essa questão, alguns filósofos classificam os Deuses Exteriores como Elementares do Éter, um elemento ausente em nossa esfera e que engloba o espaço exterior. Contudo essa tentativa de classificação exclusiva esbarra inegavelmente em ainda mais controvérsia.

Em resumo, a Teoria Elemental parece se aplicar em alguns casos, especialmente quanto aos Encantamentos Vach-Viraj dos seres da terra, mas em outros aspectos fracassa enormemente colocando em dúvidas sua eficiência. Uma vez que Abdul Al-Hazred jamais se referiu a essa teoria em seu célebre Necronomicon, embora tenha usado os Djins (espíritos elementais) alegoricamente, os feiticeiros árabes renegam essa classificação como absurdo.

A cosmologia do Mythos e suas classificações são um tema recorrente.

 
O documento de Shrewsbury editado em 1910 trata da Teoria Elemental

O Grande Cthulhu, o Elemental da Água

Cthugha, o Elemental do Fogo

Ithaqua, o Elemental do Ar

Tsathogua, o Elemental da Terra

BÔNUS: 

ENCANTAMENTO VACH-VIRAJ

O Encantamento Vach-Viraj é um canto usado para afastar os Grandes Antigos, em especial aqueles que segundo a Teoria Elemental tem uma ligação estreita com o Elemento Terra. O cântico foi primeiro mencionado no Sutra indiano conhecido como Mussi Viraj, escrito provavelmente no século II, mas que possivelmente é ainda mais antigo.

O encantamento parecia se dedicar a afastar o Grande Antigo Nyoghtha, uma força identificada com o Elemento Terra, mas também se mostrava parcialmente eficaz contra Cyaegha e a raça subterrânea dos ctônicos. O encantamento escrito em Senzar também usa uma base fonética de Sânscrito e supostamente idiomas mortos ou da Terra dos Sonhos. A grande dificuldade das palavras e a necessidade delas serem proferidas perfeitamente talvez seja um dos maiores problemas aos que pretendem usar o encantamento. Uma única sílaba errada coloca todo o encantamento à perder.

Acredita-se que o Vach-Viraj quando proferido de traz para frente, pode conjurar os mesmos Elementais da Terra que ele normalmente dispersaria. Já foi sugerido por alguns estudiosos, que Vach-Viraj é um dos nomes secretos de Azathoth o que explicaria sua hegemonia sobre os demais espíritos pois o Sultão Demoníaco é uma força do Caos Primordial.

Nem todos os feiticeiros concordam com o Vach-Viraj como sendo um encantamento voltado para os Elementos, afinal ele não parece ser efetivo contra Tsathogua tratado como o Elementar Principal da Terra. As Crias Disformes de Tsathogua, no entanto, parecem ser afetadas pelo encantamento sendo repelidas pelas palavras contidas na cantilena.

A cantinela Vach-Viraj é um feitiço extremamente difícil de realizar pela sua complexidade

    

   


        

domingo, 25 de maio de 2025

Pegadas Divinas - Misteriosos sinais dos Deuses vindos das Estrelas

 
Ilhas Marquesas.

O próprio nome evoca uma aura palpável de mistério e exotismo. As Marquesas são um grupo de ilhas vulcânicas remotas localizadas na Polinésia Francesa, no sul do Oceano Pacífico. A maior ilha do arquipélago é Nuku Hiva, onde está localizado o centro administrativo de toda região. Para se ter ideia do quão distante essas ilhas estão localizadas na imensidão do Pacífico sul, a costa continental mais próxima é o México a mais de 4800 quilômetros de distância. Ou seja, é uma vasta área de vazio marinho.

Como a maioria das ilhas da Polinésia, as Marquesas são marcadas por montanhas íngremes e florestas densas, verdadeiras selvas instransponíveis que se estendem do litoral até o interior. Escondidas nessas selvas, encontram-se centenas de esculturas de pedra misteriosas e surreais chamadas "Tiki", cujo real significado permanece desconhecido. A grande maioria dessas esculturas rústicas estão espalhadas pela ilha de Hiva Oa, seguida por Nuku Hiva. Os Tiki foram esculpidos em rocha vulcânica vermelha enquanto alguns outros foram feitos em rocha basáltica. São peças únicas que denotam as tradições e costumes tribais dos povos locais. 

Os tiki talvez sejam uma das expressões culturais mais misteriosas de que se tem noticia. Muitos especulam o que eles poderiam representar, mas nenhuma das interpretações explica toda a estranheza associada a essas peças. Elas são, para todos os efeitos incompreensíveis.

Na mitologia polinésia, Tiki é o nome do primeiro homem criado pelos deuses, enquanto em uma variação da lenda, Tiki é o nome do filho do Deus primitivo Rangi que segundo os mitos ancestrais criou o primeiro ser humano misturando seu próprio sangue com argila. Mas as esculturas não são imagens do Deus já que há muitas variações entre elas, o que indica que os tikis representam diferentes seres "humanoides", e não uma pessoa ou divindade específica.



Outra suposição é que essas esculturas poderiam ser de ancestrais deificados, ou seja pessoas cuja importância os alçou a condição de semideuses veneráveis. Esse é um costume relativamente comum em sociedades tribais que rendem adoração a indivíduos importantes. Contudo, isso também parece pouco provável, pois essas estátuas não têm nenhuma semelhança com a aparência típica dos povos nativos das Ilhas Marquesas. Por que diabos os Te Enana – como o povo Marquesano é conhecido – retratariam seus ancestrais de uma maneira tão diversa: com olhos  grandes, nariz achatado e largo, boca larga e sorridente, mãos espalmadas e um corpo baixo e atarracado, frequentemente mostrado em uma posição meio agachada com mãos pousadas sobre o estômago?

Muitos deles tem feições bizarras, claramente inumanas, uma mistura estranha de homens e anfíbios ou de algo ainda mais estranho e incompreensível. Para tentar entender o que os tiki representam precisamos estudar suas características principais. Mas isso não é tarefa simples.

Atualmente perto de 90% dos nativos das Ilhas Marquesas se converteram ao cristianismo, tendo abandonado as crenças e costumes religiosos de seus ancestrais. Alguns deles se lembram vagamente através de histórias contadas pelos seus antepassados que os tikis costumavam ter nomes específicos e lendas associadas a eles.

Uma lenda persistente é que os tiki representam os povos originais que vieram de terras distantes e que ofereceram aos antigos Te Enana o conhecimento que lhes permitiu se fixar nas ilhas. Eles teriam ensinado entre outras coisas como plantar, como colher e como construir em condições adversas. 

E de onde teriam vindo os Tiki? Bem, veremos isso mais adiante...



Durante o Projeto de Arte Rupestre Marquesana, de 1984 a 1989, oitenta e quatro tikis foram catalogados em todo o arquipélago, e muitos outros foram encontrados desde então. Contudo, inúmeras esculturas encontram-se em museus e coleções particulares espalhadas por todo o mundo. Visitantes tem levado essas peças ao longo dos últimos séculos desde o início da colonização e é impossível saber quantas foram subtraídas e se poderiam conceder indícios sobre a origem e razão para terem sido construídas. 

O que se sabe é que essas esculturas foram feitas pelo povo marquesano, a maioria por volta do séxulo XIII, até meados do século XIV. Sidsel Millerstrom, da Universidade da Califórnia, que foi o arqueólogo-chefe do Projeto de Arte Rupestre Marquesana, publicou um artigo na Encyclopaedia of Historiography, descrevendo as descobertas de seu estudo. Ele diz:

Os tikis eram geralmente colocados em santuários ao ar livre chamados me'ae. Os primeiros exploradores escreveram que, durante certas cerimônias, o tiki era cingido com tecidos ou roupas de casca de árvore e oferendas de comida eram colocadas em frente à estátua. Millerstrom observou que a cabeça do tiki é grande demais – tipicamente um terço ou mais da altura do corpo – e repousa sobre ombros quadrados, sem um pescoço distinto. A equipe também descobriu que "a maioria das estátuas mede entre 50 cm e 100 cm, embora existam algumas com quase 1,80 m de altura. Considerando que os tikis eram deificados e venerados pelos nativos das Marquesas, é de se perguntar por que a maioria deles foi construída como entidades anãs, variando em altura entre 45 cm e 1 metro. Será que esses seres misteriosos eram, na verdade, anões com poderes mágicos, que interagiram com os nativos no passado?

A maioria dos tikis é retratada com um chapéu ou um capacete justo. Eles têm sobrancelhas distintas e arqueadas, e olhos redondos, grandes e esbugalhados, circundados por uma borda elevada de 1,5 cm de largura. Ao observar atentamente essas esculturas, os especialistas verificaram que a "borda elevada" ao redor dos olhos esbugalhados representa a armação de óculos ou máscaras. É possível ver claramente que as duas lentes estão conectadas por uma ponte que passa sobre o nariz. Além disso, em uma vista lateral de alguns tikis, é possível ver a haste dos óculos conectando as lentes às orelhas. Em algumas esculturas, pode-se distinguir o contorno de uma pupila circular no centro dos olhos esbugalhados. Os tikis geralmente têm um nariz largo e achatado e uma boca longa, frequentemente com um sorriso.

Alguns deles portam estranhos equipamentos, como caixas quadradas, triângulos ou bastões longos terminando em três pontas. Em resumo, os tikis parecem ser esculturas de seres humanoides anões, com cabeças enormes e olhos grandes, redondos e esbugalhados, que normalmente usam chapéu ou capacete, além de ter óculos de proteção grandes e redondos.



Muitos entusiastas do fenômeno OVNI sabem que a maioria dos primeiros avistamentos relatavam seres humanoides de baixa estatura, vestidos com um traje brilhante e justo, usando capacete e óculos de proteção. O primeiro incidente envolvendo pequenos humanoides com cabeças bulbosas e olhos enormes foi relatado na noite de 21 de agosto de 1955, por uma família de fazendeiros em Hopkinsville, no Kentucky. Eles não apenas viram um OVNI pousar, mas também tiveram interações com várias criaturas humanoides. O primeiro relato à respeito os descrevia nos seguintes termos:

"Com cerca de um metro e meio de altura, tinham uma cabeça enorme... quase perfeitamente redonda, [seus] braços estendidos quase até o chão, [suas] mãos tinham garras... e [seus] olhos enormes brilhavam com uma luz amarelada." O corpo emitia um brilho sinistro à luz da lua nova — como se fosse feito de "metal prateado". 

Descrições de seres humanoides semelhantes em conexão com avistamentos de OVNIs são similares no mundo todo. Durante a onda de OVNIs na Itália, dezenas de humanoides anões foram relatados em todo país. Em um dos casos bem documentados, pesquisado pelo ufólogo, Dr. Roberto Pinotti e publicado na revista Flying Saucer Review em 1979, o Sr. Faralli viu um OVNI pousar em frente ao seu carro, de onde dois seres humanoides anões emergiram.

"Eles tinham cerca de 1,00 a 1,10 metros de altura. Usavam "macacões" prateados... capacetes grandes, e uma parte desses capacetes era transparentes. As partes frontais dos capacetes tinham o que parecia ser duas protuberâncias cilíndricas delgadas, como molas ou estruturas helicoidais semelhantes. A pele das criaturas parecia verde e, embora seus rostos fossem até certo ponto humanos, eram magros, com bochechas ossudas e arqueadas, narizes regulares e bocas finas e sem lábios. O Sr. Faralli não conseguia ver seus olhos e ouvidos, pois estavam escondidos em uma zona sombreada."

No livro "Sky People: Untold Stories Of Alien Encounters in Mesoamerica", a autora Ardy Sixhiller documentou as interações de muitos povos da Mesoamérica que relataram encontros com alienígenas. Uma testemunha maia iucateque relatou ter visto seis seres humanoides anões dentro de uma floresta. "Eles usavam uniformes brilhantes e suas cabeças eram grandes demais para seus corpos", disse ela. Em uma vila perto de Uxmal, Ardy conversou com um ancião maia chamado Choc, que relatou ter interagido com dois seres humanoides. "Eles eram baixos e usavam trajes estranhos. Estes eram colados à pele, brilhantes e lustrosos", disse o velho. Ele não conseguiu ver nenhuma boca ou orelhas. "Suas cabeças estavam cobertas. Eles cobriam os olhos com óculos estranhos, redondos e pretos."

É notável a partir dessas descrições como os tikis das Ilhas Marquesas apresentam forte semelhança com os seres humanoides anões relatados em numerosos Incidentes com OVNIs. As pequenas estruturas corporais, cabeças enormes, olhos grandes, capacetes e óculos de proteção – tudo isso coincide. Além disso, apenas a cabeça dos tiki foram intrincadamente esculpidas com detalhes, enquanto o resto do corpo foi apenas delineado de forma grosseira. Isso poderia ocorrer porque os trajes corporais, não permitiam que o povo das Marquesas tivesse uma boa visão do restante do corpo.

Seria possível que os tikis, que o povo das Ilhas Marquesas, e das ilhas polinésias em geral, costumavam venerar, fossem seres "alienígenas" não humanos que visitaram esse lugar séculos atrás? Há menções notáveis a navios celestes e barcos flutuantes entre os mitos da região. Seriam estes os OVNIs ou simplesmente "orbes" de luz flutuado pelo céu. 

De acordo com alguns relatos, seres humanoides anões poderiam se transformar em um orbe de luz e assim voar. Uma das esculturas tiki em Hiva Ova é chamada de "Tiki Voador" e mostra um tiki na horizontal, suspenso em uma rocha, como se estivesse voando. Não haveria razão para o povo marquesano esculpir uma estátua como esta, a menos que acreditasse que o Tiki em questão fosse capaz de voar.


Uma questão central é por que os marquesanos adoravam esses visitantes estranhos? 

Que tipo de presente eles traziam para as pessoas adorarem esses seres de aparência incomum, que tinham aproximadamente metade do tamanho dos nativos? Parece que os tikis eram considerados pelos marquesanos e pelo povo das ilhas polinésias como os protetores de lugares sagrados. Eles mantinham as más influências longe de santuários, casas e aldeias. Esta é a razão pela qual tantas dessas esculturas humanoides foram feitas pelo povo. Figuras e rostos de tikis também foram esculpidos em uma variedade de ferramentas e implementos usados ​​na vida cotidiana, como ornamentos, tigelas, batedores de comida, proas de canoa, remos, varas de cumeeira, etc. As pessoas usavam amuletos tiki para afastar o mau-olhado.

Outro motivo importante pelo qual os povos das ilhas polinésias rezavam aos tikis era pela fertilidade. Homens e mulheres inférteis pediam aos tiki que lhes desse a graça de terem filhos, enquanto os agricultores ofereciam comida e adoração para garantir colheitas abundantes. Esta é possivelmente a razão pela qual muitos tikis eram retratados com genitais masculinos proeminentes, indicando seu papel como deuses da fertilidade.

Uma tradição particular das Ilhas Cook nos dá uma indicação sobre o local de origem dos tikis.

Em Rarotonga, o Tiki é o guardião da entrada de Avaiki, o submundo. Oferendas eram feitas a ele como presentes para a alma de alguém que estava morrendo... A entrada de Avaiki (o submundo) é chamada de "Abismo de Tiki". Um outro mundo acessível apenas através de uma longa jornada empreendida pelo céu em uma embarcação astral. Isso levanta algumas possibilidades interessantes. Se o tiki guarda a entrada para esse mundo, é provável que os próprios tiki habitem um algum lugar inacessível. E se o tiki recebe oferendas pela alma que parte, talvez ele também atue como um guia que conduz as alma para o além. O papel do guia em muitas culturas é geralmente desempenhado por seres místicos conhecedores de grandes mistérios e segredos. 

Além disso eles seriam os que promoveram a civilização e proporcionaram os meios para domar um meio ambiente volátil. Isso faz sentido quando verificamos como as Ilhas Marquesa são hostis a fixação de seres humanos. De fato, é difícil haver local mais complexo para se estabelecer do que esse recanto inóspito do Pacifico. A comida é escassa, bem como árvores frutíferas e fontes de água potável. Não se sabe sequer como os primeiros habitantes chegaram às Marquesas dado o seu isolamento geográfico extremo. Dentre as poucas lendas conservadas pelos nativos, há uma que afirma que seus antepassados foram trazidos para as Marquesas pelos deuses. Esta jornada fantástica teria sido realizada usando navios que cruzavam o céu e que viajavam através de uma longa noite pontilhada por milhares de estrelas.

A razão para trazer os primeiros habitantes para essa ilha remota é obscura, contudo os mitos afirmam que eles foram deixados lá para aguardar o retorno dos Deuses. Teria sido este uma espécie de teste para averiguar a capacidade daqueles indivíduos de triunfar sobre um ambiente insalubre? Poderia isso representar ele um tipo de experimento?

Essa lenda encontra eco em outras culturas tão distantes quanto diversas.



Na Ilha de Jeju, no extremo sul da Coreia, encontramos dezenas de estranhas estátuas humanoides, popularmente conhecidas como "dol hareubang" – um termo coreano que significa "avô de pedra". A Ilha de Jeju é uma ilha vulcânica e as estátuas foram, em sua maioria, esculpidas em basalto poroso. Não se sabe ao certo quando a construção dessas esculturas se iniciou, ou quem as influenciou. O que realmente impressiona é sua semelhança com os tikis das Ilhas Marquesas.

Os dol hareubangs usam um chapéu característico, têm olhos grandes e esbugalhados sem pupilas marcadas, um nariz largo e achatado e uma boca fina e larga, com um sorriso ou um olhar de desaprovação. Não possuem pescoço distinto e suas mãos estão inevitavelmente colocadas sobre o estômago, uma sobre a outra. Assim como os tikis, os traços faciais dos dol hareubangs são intrincadamente esculpidos, mas o restante do corpo carece de detalhes. As semelhanças estruturais com os tikis são facilmente perceptíveis e deixam poucas dúvidas de que essas esculturas representam o mesmo tipo de entidades sobrenaturais que os tikis.

As conexões com os tikis são ainda mais enfatizadas pelo fato de os dol hareubangs serem tradicionalmente considerados os deuses da proteção e da fertilidade. 

Eles são considerados deuses que oferecem proteção e fertilidade e eram colocados do lado de fora dos portões para proteção contra demônios que viajam entre realidades... Os dol hareubangs produzidos entre 1763 e 1765 ficavam do lado de fora dos portões da fortaleza da cidade de Jeju como divindades guardiãs... As estátuas às vezes são vendidas como fontes de fertilidade, e pequenas réplicas são dadas a mulheres com problemas de fertilidade.

As estátuas de dol hareubang eram às vezes colocadas em pares do lado de fora de vilas e espaços públicos, e em alguns lugares fileiras delas eram erguidas para dar a impressão de um exército de espíritos protetores zelando pela área. É difícil não notar a semelhança notável entre uma fileira de dol hareubangs e as enigmáticas estátuas "moai" das Ilhas de Páscoa ou Rapa Nui, a maioria das quais foram dispostas em uma longa linha ao longo do litoral da ilha

Assim como os tiki das Ilhas Marquesas, os Moai foram esculpidos em tufo vulcânico (cinza solidificada) e colocados em plataformas cerimoniais de pedra chamadas "ahu", erguidas ao longo do perímetro da ilha. Os moais estão voltados para o interior, em direção às aldeias e assentamentos do povo Rapa Nui, como se os protegessem. Jacob Roggeveen, o primeiro visitante europeu da Ilha de Páscoa em 1772, registrou em seu diário de bordo que os nativos oravam a esses deuses.

A julgar pela aparência, o povo não possuía armas; embora, como observei, recorressem, em caso de necessidade, aos seus deuses ou ídolos, erguidos em grande número ao longo da costa marítima, diante dos quais se prostravam e invocavam. Esses ídolos eram todos esculpidos em pedra, com a forma de um homem, orelhas longas e uma coroa na cabeça, todos feitos com maestria: o que nos deixou bastante surpresos. Um espaço livre era reservado ao redor desses objetos de adoração, colocando pedras a uma distância de vinte ou trinta passos.

Embora os moais sejam muito maiores que os tiki — a altura média dessas estátuas colossais é de cerca de 4 metros, com a mais alta chegando a impressionantes 10 metros — suas características correspondem em grande parte às dos tiki e dol hareubangs. Os moais têm uma cabeça descomunal em comparação ao corpo e, embora a cabeça seja esculpida de forma muito intrincada, o restante do corpo carece de qualquer tipo de detalhe. Suas mãos são colocadas logo abaixo do estômago, ao longo das cristas dos quadris, encontrando-se na tanga, o que pode ter sido uma postura que significava proteção ou fertilidade.



Antigamente, a maioria dos moais era coroada com um chapéu chamado "pukao", mas estes caíram ou se desintegraram com o tempo. Os pukao eram feitos de cinza vulcânica vermelho-clara e pesavam até 10 toneladas! O formato dos chapéus é semelhante ao dos dol hareubangs. Os moais também têm órbitas oculares profundas e ovais esculpidas em seus rostos, e descobertas recentes indicam que essas órbitas costumavam ser preenchidas com olhos de coral, com uma pupila feita de cinza vermelha. Os olhos provavelmente eram removíveis e fixados durante cerimônias especiais. O nariz longo, largo e achatado dos moais, e seus lábios finos e salientes, não são muito diferentes dos tiki ou dos dol hareubangs.

No geral, os moais das Ilhas de Páscoa parecem pertencer à mesma categoria de anões mágicos venerados na Ilha de Jeju e nas Ilhas Marquesas. Embora os moais sejam muito maiores do que os tikis ou dol hareubangs, isso não prejudica nosso argumento, pois os humanos têm uma tendência inata a construir esculturas maiores de seus Reis e Deuses.

A propósito, todos os três lugares discutidos nesse artigo são coincidentemente ilhas vulcânicas.

Nas Ilhas de Páscoa, Rano Raraku é uma cratera vulcânica que forneceu as pedras das quais 95% dos moais foram esculpidos. O interior da cratera contém um dos três lagos de água doce da ilha. A pedreira em Rano Raraku possui várias estátuas incompletas, das quais uma tem quase 21 metros de altura – quase o dobro do tamanho de qualquer moai já concluído. O mais intrigante é que, do lado de fora da pedreira, espalhados ao longo das encostas há um grande número de moais enterrados até os ombros. As estátuas foram enterradas intencionalmente, visto que as intrincadas esculturas em seus corpos não sofreram erosão. Esses moais não possuíam o pukao e suas órbitas oculares não eram escavadas, o que significa que não eram objetos de adoração ou veneração pelos ilhéus.

A questão é: por que um número tão grande de moais foi meticulosamente esculpido e intencionalmente enterrado ao longo das encostas da cratera? Qual era o propósito deles?



A suposição dos especialistas é que esta cratera vulcânica pode ter sido considerada como um local sagrado no qual os deuses costumavam surgir para se encontrar com os ilhéus. Como tal, esta cratera pode ter sido considerada a "morada dos deuses". Os moais foram esculpidos e enterrados ao longo das encostas para atuar como protetores deste local sagrado, para que os nativos não tentassem escalar a cratera ou profanar a área de qualquer forma. Isso também explicaria por que esses moais não tinham o pukao e as órbitas oculares, pois esses moais não eram destinados à adoração pelos aldeões, ao contrário daqueles que eram erguidos sobre os ahu ao longo da costa.

Mas também há lugares na América do Sul onde tipos semelhantes de estátuas podem ser encontrados.

No Templo Kalasasaya, no sítio arqueológico de Tiahuanaco, na Bolívia, foram encontradas diversas figuras esculpidas em pedra, muito semelhantes aos Moais, Tikis e dol hareubangs. Todos os monólitos representam figuras humanoides usando um chapéu característico, com olhos grandes e quadrados que lembram óculos de proteção. Suas mãos estão colocadas sobre o estômago e seguram alguns instrumentos. É bem provável que esses grandes monólitos atuassem como protetores do local sagrado. Pouco mais se sabe sobre essas figuras, visto que os povos que vivem naquela região não se lembram das crenças e costumes de seus ancestrais.

A alguns milhares de quilômetros ao norte da Bolívia fica o Parque Arqueológico de San Agustín, localizado em uma região montanhosa do sul da Colômbia. É uma das maiores necrópoles pré-históricas do mundo. Centenas de estátuas monolíticas foram encontradas aqui, esculpidas em tufo vulcânico. Algumas das estátuas são bastante grandes, chegando a 3,6 metros de altura e pesando várias toneladas. As estátuas são geralmente colocadas nas entradas de tumbas, atuando como protetoras destas. 

Essas figuras são muito semelhantes às outras estátuas espalhadas pelo Pacífico, com chapéus característicos, grandes olhos redondos ou ovais, nariz largo e achatado e lábios longos e finos, com caninos claramente visíveis em alguns casos. Suas mãos são colocadas sobre o estômago, como de costume, e em alguns casos seguram foices ou instrumentos rituais. Claramente, as mesmas ideias artísticas foram incorporadas aos monumentos religiosos e sagrados de culturas amplamente dispersas em ambos os lados do Oceano Pacífico.



A explicação oferecida pelos arqueólogos tradicionais para as estátuas bizarras das Ilhas do Pacífico é que elas representam ancestrais deificados ou antigos chefes, o que, obviamente, não faz sentido, pois essas esculturas bizarras não guardam qualquer semelhança com os povos nativos das respectivas culturas, nem explicam os poderes mágicos de proteção e fertilidade – entre muitos outros – que se diz possuírem esses seres. "Ancestrais deificados" é a solução preferida dos arqueólogos tradicionais sempre que se deparam com esculturas incomuns sobre as quais não têm a mínima ideia do que representam. A atitude é compreensível, pois não podem se dar ao luxo de levar a sério as antigas lendas e crenças dos povos locais – por mais plausíveis que sejam – por medo do ridículo ou mesmo de retaliações por parte de seus colegas.

Essas esculturas guardam forte semelhança com as representações clássicas de alienígenas que, segundo a popular Teoria dos Deuses Astronautas, tinham uma atitude benevolente em relação aos humanos no passado. Em algum momento, esses contatos pode ter cessado, e eles se converteram em matéria de mitos e lendas.

É até possível que a habilidade excepcional dos povos antigos dessas remotas ilhas do Pacífico de esculpir essas estátuas notáveis ​​e outros artefatos tenha sido adquirida com esses seres mágicos, que se dizia serem muito proficientes em trabalhos em pedra e metal. Isso além de poder explicar como os primitivos habitantes da Ilha de Páscoa eram capazes de erguer estátuas colossais pesando toneladas usando nada além de cordas e a força dos seus braços. Por muito tempo, os cientistas têm se intrigado sobre como essas estátuas foram transportadas, enquanto a história oral do povo Rapa Nui nos diz que as estátuas foram comandadas a "andar" até suas posições por algum poder divino. 

Tudo isso é muito estranho e misterioso, difícil de assimilar, quanto mais provar. Talvez as histórias orais que restaram estejam corretas e alguns visitantes de outro mundo influenciaram decisivamente a cultura desses povos, interferindo em sua existência. Se isso de fato aconteceu, não seria estranho eles serem chamados de Deuses e com o tempo passar a ser venerados como tal.

Infelizmente, tudo que nos resta ao examinar as estátuas de pedra das Marquesas e de outros cantos do mundo, são conjecturas e suposições de um passado glorioso. Um passado em que talvez homens e deuses caminharam lado a lado.

domingo, 18 de maio de 2025

Dicionário dos Mythos de Cthulhu - Letra D de Devil´s Reef

 

DEVIL´S REEF

No litoral da Nova Inglaterra, mais especificamente na costa da Baia de Innsmouth ergue-se uma estrutura natural de coral que se estende de forma longitudinal. Devil´s Reef (Coral do Diabo) pode ser visto do porto da cidade de Innsmouth quando a maré está baixa, surgindo como um relevo irregular rompendo a linha da água. 

O Capitão britânico John Smith, que desembarcou no Coral enquanto realizava a exploração de mapeamento da Costa de Massachusetts, deu a ele seu nome agourento. Ele marcou em seu mapa a posição do Coral anotando que "a estrutura sólida de cor carmesim surgia repentinamente como um tumor" na água. Ainda segundo a anotação, dois botes desceram e homens firmaram pés no coral para fazer uma exploração preliminar. Ele retornou posteriormente e definiu que o coral localizado em 42 graus, 44 Norte e 71 Oeste, media aproximadamente 7.6 quilômetros de comprimento por 3.4 quilômetros de largura. Não encontrando nenhum detalhe relevante sobre o coral, exceto a presença de cardumes de robalos negros, Smith não deu grande atenção ao lugar.

Por volta do século XIX, Devil´s Reef foi visitado repetidas vezes pelo Capitão Obed Marsh, que segundo os habitantes locais estaria procurando por tesouros escondidos nas cavernas pontilhando o coral. Lendas sobre tesouros ocultos sempre abundaram na região, bem como o avistamento de estranhos animais e supostas serpentes marinhas. Muitos consideram que as histórias foram criadas para afastar marinheiros supersticiosos longe, contudo muitas dessas lendas estavam presentes nos mitos das tribos abenaki que viviam na costa da Nova Inglaterra, Segundo suas tradições, o Coral era temido e evitado pelos nativos por ser habitado por espíritos aquáticos malignos.

Algumas histórias em Innsmouth davam conta de que os Marsh haviam encontrado numa gruta um tesouro pertencente ao corsário George Lowther, ou mesmo do infame mau feitor, o Capitão William Kidd. Essa seria a origem da misteriosa fortuna em ouro e pérolas dos Marsh. Seja como for, a grande quantidade de cavernas e grutas reveladas na maré baixa que atiça a imaginação das pessoas pois de fato constituem perfeitos esconderijos naturais.

A verdade é tenebrosa, uma vez que o intuito de Marsh ao explorar Devil´s Reef era muito mais sinistro. Foi ali que ele travou os primeiros encontros com a raça submarina dos Abissais que ele conhecia através de lendas ouvidas na Polinésia. Marsh descobriu que esses seres batráquios viviam em uma cidade abismal na costa chamada Y'ha-nthlei há incontáveis séculos. Com base nesse contato amistoso, Marsh firmou um pacto com as criaturas que lhe rendeu grande fortuna resgatada de embarcações naufragadas. Em contrapartida, ele aceitou oferecer sacrifícios e criar um tabernáculo em homenagem aos deuses dos abissais, em especial Pai Dagon, Mãe Hidra e o Grande Cthulhu. A Ordem Esotérica de Dagon foi fundada em Innsmouth sob o disfarce de ser uma Fraternidade de Marinheiros, mas na verdade era um culto devotado a esses Deuses nefastos. Durante o período de maior atividade da Ordem de Dagon, Devil´s Reef foi usado inúmeras vezes como palco para importantes rituais. É provável que vítimas capturadas tenham sido levadas até Devil´s Reef e entregues aos abissais, sacrificadas ou pior. A seita perdurou até 1928 quando foi desbaratada pelo Governo Federal.

As muitas lendas sobre Devil´s Reef mantiveram pescadores longe do coral mesmo depois do Assalto Anfíbio a Innsmouth. Depois disso a Marinha norte-americana criou um perímetro de isolamento de três milhas náuticas ao redor do coral, impondo severas multas a embarcações que ignorassem essa proibição. Expedições militares a Devil´s Reff, conduzidas pela marinha, resultaram na descoberta de itens valiosos e artefatos mágicos nas cavernas de coral. Barcos da Guarda Costeira costumam realizar patrulhas regulares no entorno do coral, tendo ordens de reportar qualquer atividade estranha percebida na área.

Mais recentemente mapas passaram a chamar a estrutura natural de Coral de Allen ao invés de Coral do Diabo como uma forma de dissociar o local de sua história diabólica.

Uma vista de Devil's Reef em maré alta quando boa parte da ilha está coberta

Fotografia de 1929, feita pela Marinha, mostrando Devil's Reef

O Coral é local de reprodução de várias espécies marinhas e suas praias intocadas são habitat de crustáceos e aves nativas da Nova Inglaterra.

Os Abissais usavam o Coral há séculos e as tribos mantinham distancia dele

Uma tela de Joshua Kiernan encontrada na Ordem Esotérica de Dagon mostra abissais e híbridos vagando pela costa tendo o Devil's Reef ao fundo.

Bônus:

Joshua Kiernan  

Obscuro artista nascido no final do século XIX em Conecut Port, Providence. Kiernan se notabilizou pelas pinturas à óleo de paisagens marinhas, em especial da Costa da Nova Inglaterra. Ele teria vagado pelos arredores de Massachusetts onde se encantou pelas belas paisagens litorâneas que se tornaram o foco principal de sua obra.

Em 1905, Kiernan teria visitado Innsmouth à convite da Família Marsh que comissionou a criação de telas retratando a região. Posteriormente, Kiernan foi contratado para pintar um mural no interior da Ordem Esotérica de Dagon mostrando entre outras coisas uma cena de louvor na qual figuravam os abissais, Pai Dagon e o Grande Cthulhu. O mural nunca foi concluído por ocasião do Assalto à Innsmouth de 1928.

Há boatos de que embora o artista tenha sido à princípio mantido refém em Innsmouth, posteriormente ele acabou aceitando viver no povoado se tornando habitante dele. Rumores também atestam que ele teria se unido a Ordem Esotérica após a revelação de que ele possuía sangue híbrido em suas veias. Com o tempo ele teria iniciado o processo de metamorfose em um abissal. Kiernan desapareceu após a operação federal e seu paradeiro é desconhecido.

Telas assinadas por Joshua Kiernan foram recuperadas na Sede da Ordem Esotérica de Dagon e se encontram hoje em poder da Marinha. Supostamente uma delas adorna as paredes do escritório do Diretor da Agência Delta Green.

A Nau dos Infortúnios (c. 1911), obra de Joshua Kiernan 

terça-feira, 13 de maio de 2025

A Morte como Entretenimento - O sinistro necrotério de Paris e seus macabros visitantes


Ao longo do século XIX, o necrotério da cidade Paris atraiu milhares de visitantes. Eram turistas ansiosos, consumidos por um fascínio mórbido pela morte que visitavam o lugar para satisfazer sua curiosidade macabra. Os grupos se acotovelavam nos corredores, entravam nas salas de necropsia e espiavam através de vidros. Quanto mais bizarras as circunstâncias da morte, mais as pessoas se interessavam. Cadáveres afogados pescados do Rio Sena, queimados em incêndios ou vítimas das ruas violentas de Paris eram os que atraiam mais a atenção. Ir até o necrotério era um passatempo tão popular quanto frequentar o teatro 

A função oficial do necrotério era fazer a identificação dos corpos, mas alguns seguiam para o instituto médico legal com o intuito de auxiliar a investigação policial e elucidação de crimes. A perícia médica estava dando os seus primeiros passos e era praticamente incipiente de modo que o Necrotério era tão somente um lugar para armazenar os defuntos. 

E como bom depósito de mortos, o lugar ganhou infame popularidade. As pessoas iam até lá para se chocar e experimentar emoções fortes. Os Parisienses tinham um apetite voraz para o sensacionalismo e morbidez, consumindo jornais que cobriam crimes em busca de notícias bombásticas. De fato, alguns tabloides forneciam inclusive o local em que os cadáveres seriam colocados e os horários para visitas.

Ao ler sobre um determinado crime, de preferência um especialmente sangrento, as pessoas iam ao necrotério para ter uma visão da vítima. Para nós, hoje em dia, pode parecer absurdo, mas esse era um programa familiar e uma concorrida atividade social. Gente de todas as classes sociais, idade e sexos se misturavam. Nem mesmo crianças eram poupadas do ritual medonho. 

O romancista francês do século XIX, Émile Zola, era uma das pessoas cientes do interesse popular das pessoas normais quanto ao necrotério. Ele escreveu:

"O necrotério é um espetáculo ao alcance de todos, e um deleite para os transeuntes, ricos e pobres. A porta está aberta e todos têm liberdade para entrar. Há admiradores da cena que se esforçam para não perder uma dessas performances de morte. Se as lajes não têm nada sobre elas, os visitantes saem do prédio decepcionados, sentindo-se como se tivessem sido enganados e murmurando entre dentes; mas quando estão razoavelmente ocupados, as pessoas se aglomeram diante deles e se entregam a emoções baratas; expressam horror, brincam, aplaudem ou assobiam, como no teatro, e se retiram satisfeitas, declarando o necrotério um sucesso naquele dia específico.

Os corpos geralmente eram exibidos atrás de uma janela de vidro, colocados sobre lajes de mármore inclinadas. Eles eram despidos apenas com uma tanga para proteger seu pudor. As roupas reais eram penduradas acima deles para ajudar na identificação. Água fria pingava de um cano acima de suas cabeças para retardar a decomposição. Não havia, obviamente, refrigeração. O corpo resistia assim por até três dias, após os quais era removido e, dependendo da demanda, substituído por um molde de cera ou uma fotografia.

O necrotério principal de Paris ficava localizado no porão escuro e úmido da prisão de Grand Châtelet, de onde foi transferido em 1804 para um prédio próprio no Quai du Marche, na esquina da Pont St Michel, perto do Rio Sena. Esse prédio tinha uma câmara de dissecação, uma sala de lavagem, uma sala para cadáveres identificados, uma câmara de armazenamento de corpos e a importantíssima sala de velório, que podia exibir até dez cadáveres por vez. Durante a reconstrução de Paris pelo Barão George Haussmann, o necrotério foi transferido novamente em 1864 para um prédio novo e mais espaçoso atrás da Catedral de Notre Dame. O necrotério tornou-se mais extravagante e ainda mais acessível ao público. Uma cortina foi instalada sobre a janela de vidro, que se fechava quando os corpos eram trocados, como se fecham as cortinas de um palco de teatro.

Maxime Du Camp, o escritor e fotógrafo francês, trabalhou no início de sua carreira como fotógrafo do Necrotério de Paris. Sua função era preparar os cadáveres, colocá-los em posições naturais e fotografá-los para que algum parente pudesse reconhecê-los posteriormente, se ninguém o tivesse reconhecido previamente. Ele observou divertindo-se com a situação: 

"As pessoas vem e vão pelas portas do prédio escuro. Grupos de senhoras, comerciantes ocupados, visitantes de outras cidades. Mas o que me diverte são as crianças. Elas vão lá como se fossem a uma representação teatral, chamam os cadáveres expostos de artistas; e se a sala de exposição estiver vazia, dizem: O teatro está temporariamente fechado. Que pena!"

Era comum que verdadeiras multidões se reunissem às portas do necrotério esperando uma exibição depois de ler sobre um crime no jornal. Em 1848, a morte de uma mulher grávida de 8 meses, assassinada pelos seu marido ganhou filas que dobravam a esquina. Em outra oportunidade, o cadáver de um anão, que fazia parte de um show circense, morto num acidente de picadeiro, atraiu enorme leva de curiosos. Quanto mais incomum o personagem exposto, maior o interesse das pessoas.

Um jornalista do Le Petit Journal relatou certa vez:

"Esta manhã, a multidão esperava do lado de fora do necrotério. Quando um empregado disse que não haviam cadáveres para mostrar, as pessoas vaiaram e jogaram coisas no pobre homem. Alguns gritaram: "Arranje algum!", muitos riram, outros tantos chegaram a pedir que outros corpos já identificados fossem expostos novamente para sua diversão".

Morgue de Paris

Incentivada por guias turísticos e atraída pelas fofocas locais, uma visita ao necrotério, apelidado de Le Musée de la Mort (O Museu da Morte), logo se tornou uma atração imperdível para quem visitava Paris. Há relatos de pessoas que vinham de longe para conhecer a inusitada atração. Há inclusive o relato de um visitante alemão que após visitar o lugar por sete dias consecutivos escreveu uma carta ao prefeito de Mainz pedindo que algo semelhante fosse feito por lá. 

Em seu livro "Um Inocente no Exterior" (1869), o novelista norte-americano Mark Twain escreveu sobre sua visita ao necrotério público de Paris. Depois de descrever o necrotério e as exibições macabras, ele voltou sua atenção para os outros visitantes:

"Homens e mulheres chegaram, e alguns olharam ansiosamente para dentro e pressionaram o rosto contra as grades; outros olharam descuidadamente para o corpo e se viraram com um olhar de decepção — pessoas, pensei, que viviam de fortes emoções e que frequentavam as exibições do necrotério regularmente, assim como outras pessoas vão ver espetáculos teatrais todas as noites. Quando um deles entrou e foi embora, não pude deixar de pensar: Agora, isso não lhe traz nenhuma satisfação — uma festa com alguém cuja cabeça foi decepada é do que ele precisa."

Como seria de se esperar, o necrotério estava aberto sete dias por semana, praticamente o dia inteiro. Ganhar admissão não era difícil, já que havia o desejo de encontrar parentes do cadáver e entregá-lo a estes, para ganhar espaço. Espaço físico aliás era uma preocupação no Necrotério e os cadáveres tinham a tendência a cheirar mal depois de alguns dias. O prazo estabelecido para remover os corpos era de 3 dias, se ninguém reclamasse o morto, ele saía de exposição. Com sorte ganharia uma máscara mortuária ou uma fotografia póstuma que ficaria em exposição no anexo, fincada em uma parede de cortiça. Dezenas destas adornavam o lugar, ao menos até serem roubadas pelos curiosos que desejavam um souvenir.  Os infelizes não identificados eram enviados para o cemitério público e sepultados sob uma lápide comunitária onde se lia "desconhecido". Ali ficavam por 8 meses até os ossos serem mandados para os túneis sob a cidade.

Em face disso, os funcionários achavam que as longas filas eram um mal necessário para a identificação positiva. 

Haviam vários casos notáveis. Em 1876, o corpo decepado de uma mulher foi içado do Sena, aparentemente assassinada pelo amante. A descoberta causou sensação na mídia e, nos dias seguintes, entre 300.000 e 400.000 pessoas lotaram o necrotério para ver seus restos mortais. O corpo ficava deitado e ao seu lado a cabeça repousava ao lado sobre uma mesinha redonda. Em outra ocasião, a morte acidental de uma menina de 4 anos atraiu uma multidão de mais de 150.000 pessoas. Para adicionar drama à tragédia, o necrotério colocou o cadáver da criança em uma cadeira, em vez de deitá-la sobre o mármore frio e duro. Às vezes, os próprios cadáveres, ou as circunstâncias que cercaram sua morte, eram tão intrigantes que não eram necessários enfeites para capturar a imaginação das pessoas. Foi o caso de Inconnue de la Seine — a mulher desconhecida do Sena.

Na década de 1880, o corpo de uma linda jovem foi resgatado do Rio Sena. Como não havia evidências de violência contra ela, presumiu-se que ela havia tirado a própria vida. A mulher ostentava um sorriso de "Mona Lisa", e o patologista de plantão ficou tão fascinado por sua beleza que mandou fazer um molde de gesso de seu rosto. Em pouco tempo, cópias do molde da desconhecida começou a aparecer em lojas por toda Paris. Nos anos seguintes, cópias da máscara tornaram-se um item obrigatório em todas as casas boêmias da moda por toda a Europa. Os visitantes brindavam em sua homenagem. O sorriso enigmático da máscara enfeitiçou artistas, poetas e romancistas, e ao longo das décadas dezenas de poemas foram escritos e histórias inventadas para dar à jovem uma identidade. Essa máscara mortuária acabou se tornando o rosto de um manequim que até os dias atuais é usado para treinar estudantes de medicina e paramédicos em todo o mundo.

Para muitos de nós, o voyeurismo e a obsessão pela morte podem parecer uma emoção barata, comparável ao fascínio da Grã-Bretanha vitoriana pela execução pública que igualmente atraia milhares de pessoas. Neste caso, entretanto, a vítima, e não os perpetradores do crime, é quem estavam em exibição. Apesar de ser algo condenável aos nossos olhos, a percepção do período era outra. Os parisienses viam o necrotério como uma instituição cívica com um propósito, e os espectadores como indivíduos preocupados, movidos por empatia e um forte senso moral.

Para alguns visitantes era importante prestar homenagem ao morto, pagar coroas de flores e acender velas na fachada do prédio. Os cadáveres "mais populares" ganhavam favores especiais, podiam ter as custas do funeral pagas por beneméritos ou então receber uma lápide mais bonita ou mesmo a estátua de um querubim chorando sob a sepultura.  

Na virada do século XX, algumas pessoas começaram a questionar a moralidade dessas exibições apontando o caráter vulgar do que acontecia. Após uma campanha pública contra tais exibições e a mudança gradual de atitudes públicas em relação à exibição de cadáveres, preocupações com a higiene e a disseminação de doenças, o Necrotério de Paris fechou suas portas ao público em 1907. Houve, é claro, protestos dos mais devotos da atividade, tanto que fotografias clandestinas dos cadáveres alimentou um mercado negro de imagens lúgubres até mais ou menos a metade dos anos 1920.

O fascínio pelo incomum, pelo estranho e pelo mórbido sempre atraiu as pessoas ao longo da história. O interesse macabro pelo Necrotério de Paris é apenas uma amostra disso.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Dicionário do Cthulhu Mythos - C de "Confissões do Monge Louco Clithanus"

 

CONFISSÕES DO MONGE LOUCO CLITHANUS

Nome dado a um extenso tomo originalmente sem título escrito por volta do ano 400, pelo Monge britânico Clithanus.

Alegadamente Clithanus foi um estudioso de grego clássico incumbido de catalogar o acervo de uma modesta biblioteca no Monastério de Lynwold. Entre as obras presentes no acervo ele descobriu um volume carcomido do blasfemo Necronomicon em grego. Clithanus leu e traduziu várias passagens do tomo contendo informações para libertar um "abominável seguidor do Grande Cthulhu" aprisionado sob um complexo de túneis abaixo do monastério na costa noroeste da Inglaterra.

Depois de perceber o horror que havia libertado no mundo, Clithanus se arrependeu amargamente de seus atos e tentou o suicídio se lançando ao mar. Ele sobreviveu, acordando numa praia deserta, acreditando ter sido poupado por milagre. Clithanus partiu em busca de Santo Agostinho, Bispo de Hippo almejando uma maneira de reverter seus maus feitos. As circunstâncias de seu encontro com o Bispo são desconhecidas, mas supostamente ele conseguiu encontrá-lo no norte da África. Agostinho teria utilizado um símbolo em forma de estrela de cinco pontas para banir a criatura de volta para a prisão alagada de onde havia sido liberado. 

Pesquisadores acreditam que a criatura citada seria uma Cria de Cthulhu de considerável poder que habitava as ruínas de um posto avançado Xothiano no Mar do Norte. A ilha submergiu na mesma época em que R'Lyeh desceu às profundezas aprisionando seu habitante único. 

Após o notável feito de banir a criatura, Santo Agostinho enviou Clithanus para Roma com uma carta ao Papa Inocêncio I relatando o ocorrido. O Santo Padre, reconheceu o feito e ordenou que o Monge Clithanus fosse aprisionado já que dava sinais inequívocos de desequilíbrio mental.

As Confissões de Clithanus foram escritas no período de 21 anos em que o monge foi prisioneiro nas Masmorras do Vaticano. Segundo rumores, quando o Papa Inocêncio morreu, a prisão foi esvaziada e Clithanus, que havia se tornado um leproso, foi posto em liberdade. Ele planejava retornar para as Ilhas Britânicas, mas não conseguiu sequer deixar a Itália, morrendo durante sua jornada. Não se sabe a quem coube preservar as Confissões de Clithanus, a essa altura chamado de "Monge Louco", mas é fato que seus escritos sobreviveram a passagem dos séculos reemergindo no século XV.

O documento foi traduzido para o Latim e publicada em Milão no ano de 1675. Algumas poucas cópias impressas chegaram a mosteiros beneditinos que cuidaram do texto e o trataram com uma narrativa redentora. Alas da Igreja censuraram duramente o volume e realizara uma busca de destruição da maioria das cópias, excomungando qualquer indivíduo com um desses livros. Tendo em mente esse expurgo, é compreensível a raridade do título. 

Algumas poucas cópias sobreviveram à sistemática destruição empreendida pela Censura Eclesiástica. Uma cópia se encontra atualmente no Museu Britânico, outra no Museu Field de Chicago e uma terceira na Biblioteca do Seminário Union da cidade de Nova York. É possível que outras cópias tenham sobrevivido em coleções particulares ou versões apócrifas.

As Confissões do Monge Louco Clithanus oferece em suas páginas uma fórmula cabalística que permite invocar as Crias de Cthulhu. Um feitiço reverso serve para banir essas criaturas e aprisioná-las usando o mesmo método empregado por Santo Agostinho. A runa arcana necessária nesse ritual de banimento não é outra senão o infame Símbolo Ancestral e o livro explica como criá-lo e consagrá-lo. O livro também se refere às famosas Pedras Estelares de Mnar.

Entre os devaneios escritos por Clithanus encontram-se menções ao tempo em que  Grande Cthulhu e sua prole vagavam livremente pelo planeta e empreendiam guerras contra os Fungos de Yuggoth e a Raça Ancestral. Esse conhecimento foi obtido por Clithanus através de visões apocalípticas obtidas através de um transe. O Monge Louco menciona que muitos cultos se formaram entre povos primitivos que aguardam ansiosamente o triunfante retorno do Grande Cthulhu num evento marcado por um Alinhamento de Estrelas. Supostamente trechos cifrados e cálculos complexos anotados no livro afirmam que R'Lyeh iria emergir das profundezas no ano de 1928 marcando o fim da humanidade.

O Confissões de Clithanus é um livro raro e difícil de ser obtido.

Pouco se sabe a respeito do Monge Clithanus e de sua biografia. A figura é tao obscura que sua propria existencia é contestada.

Algumas ilustrações marcam as páginas do Tomo de Clithanus 

A edição do Museu Britânico foi obtida em meados de 1880 e é uma das mais completas.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Aqui há Monstros: Resenha completa do Malleus Monstrorum para Chamado de Cthulhu


Amamos e precisamos do conceito de monstruosidade porque é 
uma reafirmação da ordem que todos almejamos como seres humanos... 
e permitam-me ainda sugerir que não é a aberração
 física ou mental em si que nos horroriza, 
mas sim a falta de ordem que essas aberrações parecem implicar...

Stephen King 
Dança Macabra

Com impressionantes 480 páginas ciclópicas, divididas em dois volumes — à saber, Vol. 1, Monstros do Muthos, e Vol. 2, Divindades do Mythos — a segunda edição do Malleus Monstrorum, da Editora Chaosium, é um banquete colorido para os olhos e um compêndio contendo os seres, monstros e divindades lovecraftianas adaptadas para a sétima edição do RPG Chamado de Cthulhu. Ao contrário de muitos livros desse tipo, o Malleus não é apenas um livro de referência para os Guardiões (Narradores de CdC). Por razões que exploraremos a seguir, este é um livro que todos os jogadores podem ler e desfrutar.

Esse é um livro extenso, assunto não falta, para essa resenha não se tornar muito grande e cansativa decidi me concentrar nos temas centrais dos dois volumes. Irei abordar os detalhes essenciais e os tópicos que compõem o livro sem dedicar muito tempo a esse ou aquele monstro especificamente. Me parece mais produtivo falar do livro de forma mais geral, sem me deter à respeito de criaturas específicas. Além disso, vou traçar um paralelo entre essa edição e a anterior, apontando as diferenças principais. 

Então, sirva-se de um bom conhaque, puxe uma cadeira perto da lareira e vamos examinar juntos este tomo blasfemo de conhecimento arcano.
UM POUCO DE HISTÓRIA

Talvez o primeiro e verdadeiro Manual de Monstros tenha surgido nas sombras do final do século XV na Europa deixando a Era Medieval. Para deixar claro, não estamos falando aqui dos famosos "bestiários" ou "bestiarum vocabulum" que são muito mais antigos, remontando aos tempos de Aristóteles. Estes eram catálogos de animais, criaturas e toda sorte de "seres fantásticos". O Manual de que estamos falando se difere pois oferece instruções detalhadas à respeito da arte de descobrir, reconhecer, expor, rastrear e por fim exterminar monstros. 

A dúbia honra de criar esse tipo de livro, caro leitor, provavelmente repousa num indivíduo infame da história mundial, o clérigo católico Heinrich Kramer. Antes de abordarmos Kramer, vamos nos deter um pouco na palavra "monstro". A palavra vem do latim monstrum, que indica um horror indescritível. Monstrum alude a uma deformidade ou característica malformada, grotesca, fora do normal, além do tolerado e do aceito. O termo nos torna conscientes do grau de pavor que esses seres invocam com a sua mera existência.
 
Para Heinrich Kramer, o maior dos monstrum era a bruxa, que ele apontava como aliada do Diabo e portanto inimiga de Deus. Em 1487, esse sujeito escreveu o primeiro grande manual sobre monstros, o Malleus Maleficarum. Embora este volume de devaneios febris e divagações misóginas não tenha dado início aos julgamentos de bruxas, o Malleus com certeza acelerou as coisas. "O Martelo das Feiticeiras" se assemelha a um romance de terror moderno e, como uma típica obra desse gênero, procura explorar os medos mais profundos do leitor. Kramer reuniu em sua obra todos os elementos que poderiam chocar e deixar as pessoas aterrorizadas, isso antes de oferecer uma reviravolta: ele fornecia métodos de lidar com esse horror permitindo ao leitor devidamente informado reagir e dar cabo das bruxas.

Não é por acaso que o livro tem o título "Martelo". A função dele era literalmente martelar o mal, condená-lo e expurgá-lo de uma vez por todas. À despeito desse livro pérfido ter sido utilizado para disseminar injustiças e condenar inocentes, ele foi um inesperado sucesso. Tornou-se o livro de referência dos Inquisidores, de juízes e de caçadores que utilizaram seu conteúdo para seus fins diabólicos.

Quando o Malleus Malleficarum enfim foi aposentado como um documento arcaico, ele já havia produzido imensurável sofrimento. Talvez isso se deva ao fato do livro ser tão convincente em seus propósitos medonhos.   

Cinco séculos se passaram e quando o autor Scott David Aniolowski decidiu escrever um compêndio descrevendo os maiores horrores dos Mythos de Cthulhu para o RPG Chamado de Cthulhu, o título "Malleus Monstrorum", serviu como uma luva.
 
O título "Martelo das Monstruosidades" descreve muito bem o papel que os monstros desempenham nos RPGs em geral. Os monstros são os pregos salientes, e é tarefa dos personagens ​​martelá-los. Essa é uma tradição desde os primeiros tempos de nosso amado hobby. Oferecer monstros e criaturas, antagonistas e desafios para serem enfrentados e (com sorte) derrotados. Embora quando se trata de martelar monstros em Chamado de Cthulhu, a coisa envolva muito mais loucura, sofrimento e horror do que na maioria dos outros RPG, ele ainda se resume a personagens encontrando, enfrentando e ​​livrando o mundo de monstros.

Esse é portanto um livro para os Investigadores conhecerem seu inimigo e poderem enfrentá-lo.

 

UMA QUESTÃO DE MONSTROS E COMO DESCREVÊ-LOS

Cabe saber que esta não é a primeira versão do Malleus Monstruorum. 

De fato, já houve uma edição anterior do Livro de Monstros de Chamado de Cthulhu, um compêndio que listava os Horrores do Mythos e que tinha o mesmo título. Parte de seu charme residia na direção de arte e nas ilustrações que afastando-se das abordagens usuais, mostrava impressões das criaturas capturadas em xilogravuras, esculturas, pôsteres de época, etc. O livro jamais mostrava os monstros, mas sim as impressões que as pessoas tinham sobre eles. Isso é "bom Lovecraft", pois o autor entendia perfeitamente que o mistério e estranheza são essenciais para construir o medo. A segunda edição, busca acentuar esse mesmo princípio: revelar e ocultar ao mesmo tempo. 

O primeiro capítulo do Volume 1 oferece ferramentas ao Guardião sobre como descrever os monstros de uma forma que o elemento desconhecido seja preservado a todo momento. O ponto central é fornecer elementos para que se possa descrever as criaturas indo além do aspecto visual. Recorrer aos demais sentidos é uma excelente sacada: qual o cheiro que emana de um monstro? Qual a textura de sua pele? Quais os sons e ruídos que ele produz? Até mesmo qual o gosto que se sente ao chegar perto o bastante dele? Tudo isso ajuda a construir uma descrição que vai muito além de mostrar uma imagem do monstro e dizer "essa é a criatura que vocês encontram".  

Lovecraft levou o monstruoso a um novo patamar. No Mythos, o monstro não é tanto uma aberração assustadora, mas a evidência de que nosso próprio conceito de Ordem Racional é falso. O homem não é capaz de suportar esses conceitos e sua mente não foi feita para entender a amplitude disso. Por isso o contato com esses seres resulta em insanidade. Para mim, essa é uma das melhores explicações de porque os personagens enlouquecem em Chamado de Cthulhu 

O Malleus Monstrorum está muito ciente disso, e essa consciência está presente em todas as páginas.

 

CATEGORIZANDO  MYTHOS DE CTHULHU

Se o primeiro volume trata de descrever os monstros, o segundo se concentrar em catalogar os Deuses em categorias específicas.

O primeiro capítulo do Volume 2 explica a separação entre as diferentes divindades e sua posição na complexa hierarquia do Mythos. Temos portanto os Deuses Exteriores no topo dessa pirâmide, seguidos pelos Grandes Antigos e Deuses Ancestrais, Deuses Menores, as Entidades Únicas e é claro, os Avatares.

O livro faz um bom trabalho explicando a cosmologia e como esses seres de incomensurável poder se manifestam e são compreendidos pela humanidade, além do papel dos cultos que oferecem a eles sua devoção. Estabelecer os estranhos vínculos que unem simples mortais e Divindades é uma tarefa complexa, mas tudo é feito à contento.

O material é compreensivo, bem escrito e nunca monótono, ainda que tenha menos uso prático na comparação com o primeiro capítulo do outro volume. 

Ambos os livros oferecem um guia de referência passo a passo para construção de seres dos Mythos - Projetando os Mythos. De raças menores serviçais até mesmo Deuses Exteriores, o guia permite construir os conceitos e definir parâmetros para a criação dos seus próprios seres. É interessante essa liberdade criativa, algo bem no esquema do Círculo Lovecraftiano que era um grupo aberto a todos que quisessem participar e dar sua contribuição.


MONSTROS PARA TODOS OS LADOS

É inegável, contudo, que a parte mais importante e aquela que chama mais a atenção dos leitores é a dedicada a individualizar os monstros. Nada como encontrar suas criaturas favoritas e conhecer detalhes saborosos a respeito deles.

Cada volume oferece uma listagem extensa de criaturas, o primeiro se concentrando nas raças e espécies menores, enquanto o segundo tratando exclusivamente das Divindades mais poderosas.

Praticamente TODAS as criaturas principais que compõem os Mythos de Cthulhu são analisadas, o que inclui criaturas já visitadas no Livro Básico e em suplementos. Mas ao invés de uma simples repetição, essas criaturas recebem uma cobertura maior e são esmiuçadas em detalhes. Os seres mais importantes possuem 3 ou 4 páginas de texto, mas em média, cada entrada tem ao menos uma página de extensão. É interessante encontrar criaturas obscuras ou pouco conhecidas, além de monstros que foram criados especificamente para alguma aventura ou suplemento do RPG. Isso expande consideravelmente o leque de possíveis adversários em Chamado de Cthulhu e fornece um surtimento gigante de inimigos. 

As entradas dispostas em ordem alfabética seguem sempre a mesma estrutura com um pequeno texto - geralmente extraído do conto onde a criatura apareceu pela primeira vez, seguido de uma lista de nomes alternativos pelo qual ela é conhecida, detalhes gerais a respeito de cada ser, como operam os cultos devotos a ela e como se dá a manifestação de tais seres quando trazidos para nossa realidade. O trabalho de pesquisa é impecável, os autores se esmeram na tarefa de buscar criaturas pouco conhecidas e adaptá-las ao jogo dentro das regras da sétima edição. Achei esse trabalho sensacional. 


Como se trata de um jogo, as estatísticas das criaturas são fornecidas conforme o padrão estabelecido do Livro Básico de Chamado de Cthulhu, com atributos, habilidades, ataques e demais informações para que as criaturas possam ser usadas da maneira mais fácil pelo Guardião. Os blocos de estatísticas são bastante simples e funcionais, permitindo uma consulta rápida mesmo durante o jogo.

Mas não são apenas os Mythos que recebem esse tratamento. O Malleus Monstrorum possui um capítulo dedicado a Monstros do Folclore e outro a Bestas. Esses dois capítulos são um excelente acréscimo, sobretudo para Guardiões que desejam se valer de desafios mais mundanos e utilizá-los em seus cenários.

A lista de criaturas do Folclore inclui velhos conhecidos como vampiros, lobisomens e zumbis, mas trás acréscimos muito bem vindos na forma de golens, plantas carnívoras, Pé Grande e até mesmo o infame Diabo de Jersey. Esses seres, junto com os fantasmas e assombrações fornecem um rol perfeito de criaturas arrepiantes que não possuem ligação com os Mythos, mas nem por isso são menos assustadoras. 

Por vezes, mudar o panorama e oferecer um mistério mais "pé no chão" é ótimo para quebras a continuidade de uma campanha. Além do que, para atrair iniciantes por vezes pode ser mais acessível um cenário envolvendo um Vampiro com sede de sangue ou uma horda de zumbis do que um horror vindo das estrelas e cuja motivação é completamente inumana.

O capítulo dedicado às bestas e animais é igualmente interessante. Nele o Guardião vai achar uma menagerie de animais grandes e pequenos para qualquer ambiente ou situação que julgar necessária. De feras como leões e tigres, passando por lobos, ursos e rinocerontes, até serpentes venenosas,  tubarões famintos e insetos peçonhentos, os perigos do mundo animal se multiplicam oferecendo risco e excitação na medida certa. Embora esse capítulo seja mais aconselhável para cenários PULP, ele pode ser incorporado facilmente a qualquer estilo de cenário. Eu gosto de usar animais selvagens como pano de fundo nos meus cenários, é bem interessante para conceder um colorido às histórias. 


UMA LEITURA ABRANGENTE

Um dos aspectos mais interessantes do Malles Monstrorum é que ele vai muito além de ser um mero Livro de Monstros com Estatísticas das criaturas.

A quantidade de ideias e sementes para cenários que podem ser extraídas dos textos é surpreendente. Cada entrada contendo o histórico do monstro fornece uma visão única da criatura e permite ao Narrador entender um pouco melhor como ela pode ser encaixada em um mistério.

Entre uma e outra criatura apresentada, há caixas de texto contendo pormenores sobre tecnologia, feitiçaria e tomos esotéricos que se referem a esses seres. É preciso mencionar também os trechos que compõem as anotações do Diário de Sir Hansen Poplan, uma espécie de estudioso e pesquisador do Mythos que deixou notas de rodapé sobre diferentes tópicos que ajudam a completar os textos.

Eu mencionei que esse é um livro interessante tanto para Guardiões (Mestres) quanto Investigadores (Jogadores) pois o conteúdo não é exaustivo sobre o tema. Um dos grandes truques desse tomo é que o Narrador tem plena liberdade para usar o que quiser, descartar tudo que não gostar ou considerar sua própria interpretação das criaturas. No que tange a esses seres não existe uma verdade definitiva e eles sempre serão um mistério insondável.  

Mesmo para aqueles que não jogam Chamado de Cthulhu, mas que tem apresso pelas criações da Mitologia Lovecraftiana, esse livro é um deleite. Encontrar detalhes sobre os monstros que figuram em contos e novelas de horror é algo bastante curioso.    


ARTE E ACABAMENTO

Como mencionado anteriormente, os dois Volumes que compõem o Malleus Monstrorum são totalmente coloridos e encerrados em capa dura. Além disso os volumes ficam acondicionados em um estojo rígido de papel cartonado. Eu adoraria que a imagem do Estojo fosse diferente das capas, mas eles optaram por usar as mesmas.

A fonte, o layout e o estilo geral estão em conformidade ao padrão dos demais produtos da 7ª edição de Chamado de Cthulhu. A edição, a clareza da prosa e a facilidade de uso que marca todo o selo Cthulhu são evidentes aqui. Os índices são perfeitos e facilitam demais a leitura e a busca por uma entrada em especial. O trio de autores realmente conseguiu algo notável quanto ao layout desse materialç.

Não posso deixar também de falar da arte. 

Loic Muzy claramente tem um talento singular, e suas imagens são de cair o queixo. Ele tem um talento notável para desenhar os horrores do Mythos e conceder a eles uma personalidade única. Alternando desenhos simples, com ilustrações elaboradas de página inteira até grandes pranchas de duas páginas, a arte dele jamais decepciona. Esse artista tem um olho clínico para encontrar detalhes bizarros e explorar formas incomuns fazendo com que sua exposição de aberrações lovecraftianas resulte num meio termo entre o fascinante e o perturbador. 

Um detalhe digno de nota é que a arte do Malleus Monstrorum é perfeitamente homogênea. O mesmo artista foi responsável por todos os desenhos, de modo que a qualidade e estilo se mostram constantes. Se eu tivesse que fazer alguma reclamação seria quanto ao fato de que nem todos os monstros tenham arte própria, mas creio que essa foi uma opção para não sobrecarregar as páginas. Como sou um fã de carteirinha de Loic Muzy eu não me importaria com isso. 


PENSAMENTOS FINAIS

Juntamente com o Grande Grimório de Magia do Cthulhu Mythos e o Livro Básico de Chamado de Cthulhu, o Malleus Monstrorum forma uma espécie de trindade profana dos Tomos Centrais para quem quer mergulhar de cabeça nesse RPG.

Muitas pessoas perguntam se um determinado livro é "necessário" ou "essencial", ponderando que o Livro Básico já deveria conter o necessário para formar alguém como Guardião. O que posso dizer é que o Malleus Monstrorum embora não seja imprescindível, é incrivelmente útil para todo e qualquer Guardião, seja este um iniciante ou um veterano das edições anteriores.

Não há nenhum outro livro em que os autores tenham se debruçado sobre os Horrores Lovecraftianos com tanta propriedade, autoridade e (por que não dizer?) carinho. O Malleus Monstrorum é claramente o resultado do trabalho de pessoas que adoram essa mitologia e se esmeraram em expandir seu horizonte quase ao infinito.   

Este é, sem dúvida, o guia definitivo de Monstros para Chamdo de Cthulhu. Ele tem absolutamente tudo o que você poderia desejar; fidelidade a obra de H.P. Lovecraft e todos os autores que trabalharam com o conceito do Mythos ao longo das últimas décadas. 

Temos aqui uma edição impecável e valores de produção de altíssimo nível. Então, realmente não há sentido em lutar contra a gravidade. Se você gosta de Chamado de Cthulhu, esse livro precisa estar na sua estante. 

Existem, afinal de contas, manuais de monstros e existe o Malleus Monstrorum.