Amamos e precisamos do conceito de monstruosidade porque é
uma reafirmação da ordem que todos almejamos como seres humanos...
e permitam-me ainda sugerir que não é a aberração
física ou mental em si que nos horroriza,
mas sim a falta de ordem que essas aberrações parecem implicar...
Stephen King
Dança Macabra
Com impressionantes 480 páginas ciclópicas, divididas em dois volumes — à saber, Vol. 1, Monstros do Muthos, e Vol. 2, Divindades do Mythos — a segunda edição do Malleus Monstrorum, da Editora Chaosium, é um banquete colorido para os olhos e um compêndio contendo os seres, monstros e divindades lovecraftianas adaptadas para a sétima edição do RPG Chamado de Cthulhu. Ao contrário de muitos livros desse tipo, o Malleus não é apenas um livro de referência para os Guardiões (Narradores de CdC). Por razões que exploraremos a seguir, este é um livro que todos os jogadores podem ler e desfrutar.
Esse é um livro extenso, assunto não falta, para essa resenha não se tornar muito grande e cansativa decidi me concentrar nos temas centrais dos dois volumes. Irei abordar os detalhes essenciais e os tópicos que compõem o livro sem dedicar muito tempo a esse ou aquele monstro especificamente. Me parece mais produtivo falar do livro de forma mais geral, sem me deter à respeito de criaturas específicas. Além disso, vou traçar um paralelo entre essa edição e a anterior, apontando as diferenças principais.
Então, sirva-se de um bom conhaque, puxe uma cadeira perto da lareira e vamos examinar juntos este tomo blasfemo de conhecimento arcano.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Talvez o primeiro e verdadeiro Manual de Monstros tenha surgido nas sombras do final do século XV na Europa deixando a Era Medieval. Para deixar claro, não estamos falando aqui dos famosos "bestiários" ou "bestiarum vocabulum" que são muito mais antigos, remontando aos tempos de Aristóteles. Estes eram catálogos de animais, criaturas e toda sorte de "seres fantásticos". O Manual de que estamos falando se difere pois oferece instruções detalhadas à respeito da arte de descobrir, reconhecer, expor, rastrear e por fim exterminar monstros.
A dúbia honra de criar esse tipo de livro, caro leitor, provavelmente repousa num indivíduo infame da história mundial, o clérigo católico Heinrich Kramer. Antes de abordarmos Kramer, vamos nos deter um pouco na palavra "monstro". A palavra vem do latim monstrum, que indica um horror indescritível. Monstrum alude a uma deformidade ou característica malformada, grotesca, fora do normal, além do tolerado e do aceito. O termo nos torna conscientes do grau de pavor que esses seres invocam com a sua mera existência.
Para Heinrich Kramer, o maior dos monstrum era a bruxa, que ele apontava como aliada do Diabo e portanto inimiga de Deus. Em 1487, esse sujeito escreveu o primeiro grande manual sobre monstros, o Malleus Maleficarum. Embora este volume de devaneios febris e divagações misóginas não tenha dado início aos julgamentos de bruxas, o Malleus com certeza acelerou as coisas. "O Martelo das Feiticeiras" se assemelha a um romance de terror moderno e, como uma típica obra desse gênero, procura explorar os medos mais profundos do leitor. Kramer reuniu em sua obra todos os elementos que poderiam chocar e deixar as pessoas aterrorizadas, isso antes de oferecer uma reviravolta: ele fornecia métodos de lidar com esse horror permitindo ao leitor devidamente informado reagir e dar cabo das bruxas.
Não é por acaso que o livro tem o título "Martelo". A função dele era literalmente martelar o mal, condená-lo e expurgá-lo de uma vez por todas. À despeito desse livro pérfido ter sido utilizado para disseminar injustiças e condenar inocentes, ele foi um inesperado sucesso. Tornou-se o livro de referência dos Inquisidores, de juízes e de caçadores que utilizaram seu conteúdo para seus fins diabólicos.
Quando o Malleus Malleficarum enfim foi aposentado como um documento arcaico, ele já havia produzido imensurável sofrimento. Talvez isso se deva ao fato do livro ser tão convincente em seus propósitos medonhos.
Cinco séculos se passaram e quando o autor Scott David Aniolowski decidiu escrever um compêndio descrevendo os maiores horrores dos Mythos de Cthulhu para o RPG Chamado de Cthulhu, o título "Malleus Monstrorum", serviu como uma luva.
O título "Martelo das Monstruosidades" descreve muito bem o papel que os monstros desempenham nos RPGs em geral. Os monstros são os pregos salientes, e é tarefa dos personagens martelá-los. Essa é uma tradição desde os primeiros tempos de nosso amado hobby. Oferecer monstros e criaturas, antagonistas e desafios para serem enfrentados e (com sorte) derrotados. Embora quando se trata de martelar monstros em Chamado de Cthulhu, a coisa envolva muito mais loucura, sofrimento e horror do que na maioria dos outros RPG, ele ainda se resume a personagens encontrando, enfrentando e livrando o mundo de monstros.
Esse é portanto um livro para os Investigadores conhecerem seu inimigo e poderem enfrentá-lo.
UMA QUESTÃO DE MONSTROS E COMO DESCREVÊ-LOS
Cabe saber que esta não é a primeira versão do Malleus Monstruorum.
De fato, já houve uma edição anterior do Livro de Monstros de Chamado de Cthulhu, um compêndio que listava os Horrores do Mythos e que tinha o mesmo título. Parte de seu charme residia na direção de arte e nas ilustrações que afastando-se das abordagens usuais, mostrava impressões das criaturas capturadas em xilogravuras, esculturas, pôsteres de época, etc. O livro jamais mostrava os monstros, mas sim as impressões que as pessoas tinham sobre eles. Isso é "bom Lovecraft", pois o autor entendia perfeitamente que o mistério e estranheza são essenciais para construir o medo. A segunda edição, busca acentuar esse mesmo princípio: revelar e ocultar ao mesmo tempo.
O primeiro capítulo do Volume 1 oferece ferramentas ao Guardião sobre como descrever os monstros de uma forma que o elemento desconhecido seja preservado a todo momento. O ponto central é fornecer elementos para que se possa descrever as criaturas indo além do aspecto visual. Recorrer aos demais sentidos é uma excelente sacada: qual o cheiro que emana de um monstro? Qual a textura de sua pele? Quais os sons e ruídos que ele produz? Até mesmo qual o gosto que se sente ao chegar perto o bastante dele? Tudo isso ajuda a construir uma descrição que vai muito além de mostrar uma imagem do monstro e dizer "essa é a criatura que vocês encontram".
Lovecraft levou o monstruoso a um novo patamar. No Mythos, o monstro não é tanto uma aberração assustadora, mas a evidência de que nosso próprio conceito de Ordem Racional é falso. O homem não é capaz de suportar esses conceitos e sua mente não foi feita para entender a amplitude disso. Por isso o contato com esses seres resulta em insanidade. Para mim, essa é uma das melhores explicações de porque os personagens enlouquecem em Chamado de Cthulhu
O Malleus Monstrorum está muito ciente disso, e essa consciência está presente em todas as páginas.
Se o primeiro volume trata de descrever os monstros, o segundo se concentrar em catalogar os Deuses em categorias específicas.
O primeiro capítulo do Volume 2 explica a separação entre as diferentes divindades e sua posição na complexa hierarquia do Mythos. Temos portanto os Deuses Exteriores no topo dessa pirâmide, seguidos pelos Grandes Antigos e Deuses Ancestrais, Deuses Menores, as Entidades Únicas e é claro, os Avatares.
O livro faz um bom trabalho explicando a cosmologia e como esses seres de incomensurável poder se manifestam e são compreendidos pela humanidade, além do papel dos cultos que oferecem a eles sua devoção. Estabelecer os estranhos vínculos que unem simples mortais e Divindades é uma tarefa complexa, mas tudo é feito à contento.
O material é compreensivo, bem escrito e nunca monótono, ainda que tenha menos uso prático na comparação com o primeiro capítulo do outro volume.
Ambos os livros oferecem um guia de referência passo a passo para construção de seres dos Mythos - Projetando os Mythos. De raças menores serviçais até mesmo Deuses Exteriores, o guia permite construir os conceitos e definir parâmetros para a criação dos seus próprios seres. É interessante essa liberdade criativa, algo bem no esquema do Círculo Lovecraftiano que era um grupo aberto a todos que quisessem participar e dar sua contribuição.
MONSTROS PARA TODOS OS LADOS
É inegável, contudo, que a parte mais importante e aquela que chama mais a atenção dos leitores é a dedicada a individualizar os monstros. Nada como encontrar suas criaturas favoritas e conhecer detalhes saborosos a respeito deles.
Cada volume oferece uma listagem extensa de criaturas, o primeiro se concentrando nas raças e espécies menores, enquanto o segundo tratando exclusivamente das Divindades mais poderosas.
Praticamente TODAS as criaturas principais que compõem os Mythos de Cthulhu são analisadas, o que inclui criaturas já visitadas no Livro Básico e em suplementos. Mas ao invés de uma simples repetição, essas criaturas recebem uma cobertura maior e são esmiuçadas em detalhes. Os seres mais importantes possuem 3 ou 4 páginas de texto, mas em média, cada entrada tem ao menos uma página de extensão. É interessante encontrar criaturas obscuras ou pouco conhecidas, além de monstros que foram criados especificamente para alguma aventura ou suplemento do RPG. Isso expande consideravelmente o leque de possíveis adversários em Chamado de Cthulhu e fornece um surtimento gigante de inimigos.
As entradas dispostas em ordem alfabética seguem sempre a mesma estrutura com um pequeno texto - geralmente extraído do conto onde a criatura apareceu pela primeira vez, seguido de uma lista de nomes alternativos pelo qual ela é conhecida, detalhes gerais a respeito de cada ser, como operam os cultos devotos a ela e como se dá a manifestação de tais seres quando trazidos para nossa realidade. O trabalho de pesquisa é impecável, os autores se esmeram na tarefa de buscar criaturas pouco conhecidas e adaptá-las ao jogo dentro das regras da sétima edição. Achei esse trabalho sensacional.
Como se trata de um jogo, as estatísticas das criaturas são fornecidas conforme o padrão estabelecido do Livro Básico de Chamado de Cthulhu, com atributos, habilidades, ataques e demais informações para que as criaturas possam ser usadas da maneira mais fácil pelo Guardião. Os blocos de estatísticas são bastante simples e funcionais, permitindo uma consulta rápida mesmo durante o jogo.
Mas não são apenas os Mythos que recebem esse tratamento. O Malleus Monstrorum possui um capítulo dedicado a Monstros do Folclore e outro a Bestas. Esses dois capítulos são um excelente acréscimo, sobretudo para Guardiões que desejam se valer de desafios mais mundanos e utilizá-los em seus cenários.
A lista de criaturas do Folclore inclui velhos conhecidos como vampiros, lobisomens e zumbis, mas trás acréscimos muito bem vindos na forma de golens, plantas carnívoras, Pé Grande e até mesmo o infame Diabo de Jersey. Esses seres, junto com os fantasmas e assombrações fornecem um rol perfeito de criaturas arrepiantes que não possuem ligação com os Mythos, mas nem por isso são menos assustadoras.
Por vezes, mudar o panorama e oferecer um mistério mais "pé no chão" é ótimo para quebras a continuidade de uma campanha. Além do que, para atrair iniciantes por vezes pode ser mais acessível um cenário envolvendo um Vampiro com sede de sangue ou uma horda de zumbis do que um horror vindo das estrelas e cuja motivação é completamente inumana.
O capítulo dedicado às bestas e animais é igualmente interessante. Nele o Guardião vai achar uma menagerie de animais grandes e pequenos para qualquer ambiente ou situação que julgar necessária. De feras como leões e tigres, passando por lobos, ursos e rinocerontes, até serpentes venenosas, tubarões famintos e insetos peçonhentos, os perigos do mundo animal se multiplicam oferecendo risco e excitação na medida certa. Embora esse capítulo seja mais aconselhável para cenários PULP, ele pode ser incorporado facilmente a qualquer estilo de cenário. Eu gosto de usar animais selvagens como pano de fundo nos meus cenários, é bem interessante para conceder um colorido às histórias.
UMA LEITURA ABRANGENTE
Um dos aspectos mais interessantes do Malles Monstrorum é que ele vai muito além de ser um mero Livro de Monstros com Estatísticas das criaturas.
A quantidade de ideias e sementes para cenários que podem ser extraídas dos textos é surpreendente. Cada entrada contendo o histórico do monstro fornece uma visão única da criatura e permite ao Narrador entender um pouco melhor como ela pode ser encaixada em um mistério.
Entre uma e outra criatura apresentada, há caixas de texto contendo pormenores sobre tecnologia, feitiçaria e tomos esotéricos que se referem a esses seres. É preciso mencionar também os trechos que compõem as anotações do Diário de Sir Hansen Poplan, uma espécie de estudioso e pesquisador do Mythos que deixou notas de rodapé sobre diferentes tópicos que ajudam a completar os textos.
Eu mencionei que esse é um livro interessante tanto para Guardiões (Mestres) quanto Investigadores (Jogadores) pois o conteúdo não é exaustivo sobre o tema. Um dos grandes truques desse tomo é que o Narrador tem plena liberdade para usar o que quiser, descartar tudo que não gostar ou considerar sua própria interpretação das criaturas. No que tange a esses seres não existe uma verdade definitiva e eles sempre serão um mistério insondável.
Mesmo para aqueles que não jogam Chamado de Cthulhu, mas que tem apresso pelas criações da Mitologia Lovecraftiana, esse livro é um deleite. Encontrar detalhes sobre os monstros que figuram em contos e novelas de horror é algo bastante curioso.
ARTE E ACABAMENTO
Como mencionado anteriormente, os dois Volumes que compõem o Malleus Monstrorum são totalmente coloridos e encerrados em capa dura. Além disso os volumes ficam acondicionados em um estojo rígido de papel cartonado. Eu adoraria que a imagem do Estojo fosse diferente das capas, mas eles optaram por usar as mesmas.
A fonte, o layout e o estilo geral estão em conformidade ao padrão dos demais produtos da 7ª edição de Chamado de Cthulhu. A edição, a clareza da prosa e a facilidade de uso que marca todo o selo Cthulhu são evidentes aqui. Os índices são perfeitos e facilitam demais a leitura e a busca por uma entrada em especial. O trio de autores realmente conseguiu algo notável quanto ao layout desse materialç.
Não posso deixar também de falar da arte.
Loic Muzy claramente tem um talento singular, e suas imagens são de cair o queixo. Ele tem um talento notável para desenhar os horrores do Mythos e conceder a eles uma personalidade única. Alternando desenhos simples, com ilustrações elaboradas de página inteira até grandes pranchas de duas páginas, a arte dele jamais decepciona. Esse artista tem um olho clínico para encontrar detalhes bizarros e explorar formas incomuns fazendo com que sua exposição de aberrações lovecraftianas resulte num meio termo entre o fascinante e o perturbador.
Um detalhe digno de nota é que a arte do Malleus Monstrorum é perfeitamente homogênea. O mesmo artista foi responsável por todos os desenhos, de modo que a qualidade e estilo se mostram constantes. Se eu tivesse que fazer alguma reclamação seria quanto ao fato de que nem todos os monstros tenham arte própria, mas creio que essa foi uma opção para não sobrecarregar as páginas. Como sou um fã de carteirinha de Loic Muzy eu não me importaria com isso.
PENSAMENTOS FINAIS
Juntamente com o Grande Grimório de Magia do Cthulhu Mythos e o Livro Básico de Chamado de Cthulhu, o Malleus Monstrorum forma uma espécie de trindade profana dos Tomos Centrais para quem quer mergulhar de cabeça nesse RPG.
Muitas pessoas perguntam se um determinado livro é "necessário" ou "essencial", ponderando que o Livro Básico já deveria conter o necessário para formar alguém como Guardião. O que posso dizer é que o Malleus Monstrorum embora não seja imprescindível, é incrivelmente útil para todo e qualquer Guardião, seja este um iniciante ou um veterano das edições anteriores.
Não há nenhum outro livro em que os autores tenham se debruçado sobre os Horrores Lovecraftianos com tanta propriedade, autoridade e (por que não dizer?) carinho. O Malleus Monstrorum é claramente o resultado do trabalho de pessoas que adoram essa mitologia e se esmeraram em expandir seu horizonte quase ao infinito.
Este é, sem dúvida, o guia definitivo de Monstros para Chamdo de Cthulhu. Ele tem absolutamente tudo o que você poderia desejar; fidelidade a obra de H.P. Lovecraft e todos os autores que trabalharam com o conceito do Mythos ao longo das últimas décadas.
Temos aqui uma edição impecável e valores de produção de altíssimo nível. Então, realmente não há sentido em lutar contra a gravidade. Se você gosta de Chamado de Cthulhu, esse livro precisa estar na sua estante.
Existem, afinal de contas, manuais de monstros e existe o Malleus Monstrorum.
Achei estiloso.
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