segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A Sombra do Vampiro - A estranha carreira do astro de Nosferatu


Seu nome em alemão significava "Terror". Talvez por isso muitas pessoas acreditavam que se tratava de um pseudônimo - com certeza, nenhum artista escolhido para interpretar papéis tão terríveis poderia ter um nome tão sugestivo. Seria muita coincidência! Mas no fim das contas, não era um simples pseudônimo. Alguns então acharam que o homem não era sequer um ator, mas um morto-vivo, idêntico àquele que ele interpretava em filme. Um vampiro!

A lenda persiste há décadas e já deu origem a muitas teses, livros, monografias e até um filme chamado "A Sombra do Vampiro", dirigido pelo alemão E. Elias Merhige. Nele é postulado que o homem por detrás da incrível performance do macabro Conde Orlock, no filme seminal de horror Nosferatu (1922), não seria um ator, mas um vampiro de carne e osso. A postura, a imagem conjurada, a maneira como o ator escolheu interpretar a criatura, tudo aquilo era estranho e convincente demais.

Os próprios colegas e a equipe de produção não sabiam o que pensar do sujeito chamado Max Schreck, o homem que encarnou o primeiro vampiro nas telas do cinema. Ele era estranho, introspectivo, soturno, quieto... não se misturava aos demais, só falava com o diretor usando aquele tom gutural. Não tirava a maquiagem monstruosa e preferia usá-la sempre que estava no set. Não comia com os demais, não comemorava com eles, sequer bebia água e não se relacionava com ninguém fora de cena.


Nascido Friedrich Gustav Max Schreck em 6 de setembro de 1879 na região de Friedenau próximo de Berlin, Alemanha, pouco se sabe a respeito de seus primeiros anos. Os detalhes de sua infância e adolescência são desconhecidos. Há boatos de que ele seria um órfão, abandonado na porta de um teatro de variedades. Para ganhar comida começou a atuar no palco muito jovem. Teria trabalhado nos estranhos espetáculos de Grand Guinol, em que eram encenadas cenas de torturas, horrores e puro terror. Seu papel era de ajudante do torturador, aquele que estendia a ele os bisturis, serras e machados usados para cometer as maiores atrocidades.

Com esse começo humilde, poucos poderiam imaginar que ele se tornaria um ator de respeito. Schreck foi escalado para um papel menor numa peça apresentada no famoso Teatro Municipal de Berlin, onde chamou a atenção de críticos. Era o ano de 1902 e ele havia acabado de completar 22 anos, emergindo como um nome importante na dramaturgia da Alemanha. Não foi nos palcos, entretanto, que ele conquistaria fama, mas em uma nova mídia que estava surgindo no período, o cinema.

Antes Schreck se juntou a uma companhia de prestígio pertencente a Max Reinhardt um dos empresários mais conhecidos no país, responsável pela carreira de estrelas em ascensão. Um dos métodos da companhia de Reinhardt era filmar as performances e depois estudar a postura dos atores. Isso ajudou a familiariza-lo com as câmeras, deixando-o à vontade para atuar diante delas. No começo do século XX, o Cinema Alemão despontava como um dos mais respeitados do mundo. O movimento do Expressionismo estava em seu auge e precisava de talentos como aquele.


Sua estréia no cinema foi com o filme Tambores na Noite, produção do aclamado dramaturgo Bertolt Brecht. Dali ele foi escalado para um papel importante em "Der Richter von Zalamea". O ator magro, muito alto e com olhar expressivo era perfeito para o cinema mudo. Logo ele se tornou uma estrela.

Essas primeiras experiências na tela acabariam por atrair a atenção de um dos mais conhecidos diretores do período, F.W. Murnau, pioneiro do Cinema Expressionista. Murnau estava trabalhando em uma ambiciosa adaptação não oficial da novela de Bram Stoker, Dracula. Faltava no entanto um ator capaz de interpretar o personagem principal da maneira que Murnau desejava: um vampiro convincente. Na visão de Murnau, o Conde não seria um aristocrata ou uma alma nobre, mas um monstro assassino, uma besta que havia abandonado sua natureza humana e abraçado as paixões pelo sangue, pela morte e pelo horror. 

Mas haviam problemas ao adaptar a novela. A viúva de Bram Stoker não estava satisfeita com o roteiro dos alemães e moveu uma ação contra Murnau proibindo-o usar a história de seu falecido marido. A solução foi fazer mudanças drásticas na história, transformando o protagonista Dracula em Orlock, uma criatura das sombras que dificilmente conseguiria se misturar às pessoas sem despertar nelas pavor pela sua aparência grotesca.  

Murnau tinha dificuldade em encontrar o ator ideal para o papel, mas seus problemas terminaram quando ele se deparou com Max Schreck em uma entrevista. Após uma breve conversa, ele ofereceu o papel, mas a princípio o ator demonstrou dúvida: "Se vou fazer esse papel, eu quero liberdade para atuar da maneira que eu achar mais correta", teria dito ao grande diretor. No fim, ele acabou concordando com os termos, acreditando que Schreck seria a melhor opção de protagonista. Schreck exigiu total imersão no papel e estabeleceu uma série de regras que deveriam ser seguidas à risca. Ele seria chamado exclusivamente de Orlock dentro e fora de cena, apareceria apenas maquiado, não iria se relacionar com os colegas atores e sequer quis ser apresentado à eles. 


Seu método era excêntrico para dizer o mínimo! 

O "vampiro" se esgueirava pelos cantos do set de produção, procurando as sombras e ficava ali parado por longos minutos sem dizer uma palavra. Encarava os colegas com uma expressão curiosa como se estivesse analisando seu comportamento e como se tudo aquilo fosse incomum aos seus olhos de vampiro. Quando era chamado para uma cena, assumia a interpretação sem errar uma linha, mas também improvisava, incluindo palavras estranhas que afirmava pertencer ao seu passado. Em dado momento, quando um produtor o chamou de Max, ele se voltou para ele e ameaçou morder sua mão. Em outra ocasião teria capturado um gato preto e brincado com ele, ameaçando mordê-lo para extrair seu sangue, como um vampiro faria. Os assistentes de produção começaram a ficar assustados com aquilo. Alguns não queriam ficar sozinhos com ele. Murnau achava tudo aquilo muito interessante para o filme, a produção estava carregada com uma autêntica aura de medo. 

Outra condição era que ninguém soubesse sua identidade real. Quando atores perguntavam qual era seu nome e ele respondia sem vacilar: Orlock. "Eles me encontraram e me trouxeram aqui para contar minha história" concluía com sua voz monocórdia. Esse método estranho de incorporar o personagem começou a afetar os demais atores em cena que queriam saber quem era o sujeito. Murnau acabou aderindo, afirmando que Orlock era de fato um vampiro, convidado a participar do filme e contar sua história. Ele receberia sangue como pagamento e precisava ter sua privacidade respeitada.


A produção de Nosferatu foi concluída nos lendários estúdios da UFA com uma equipe reduzida de profissionais envolvidos. Alguns atores teriam afirmado estar aliviados com a conclusão das filmagens. Não precisavam mais contracenar com aquele sujeito estranho de aparência cadavérica.

O final das filmagens contudo não significava que a produção chegaria ao público. Nosferatu enfrentou uma tentativa de censura movida por uma Corte Alemã e correu risco de ter as cópias confiscadas e destruídas em face da ação legal movida pela Família Stoker. Murnau conseguiu preservar as cópias e as escondeu em um cofre por algum tempo, ao menos até a situação se acalmar. 

Por conta disso, o filme só chegaria ao público décadas mais tarde quando seria saudado como uma obra de arte e verdadeiro clássico da sétima arte.

Mas o que aconteceu com o estranho Max Schreck?

Ele pediu que seu nome fosse desvinculado de Nosferatu para continuar construindo a mística sobre o personagem principal. Por algum tempo, ninguém sabia quem era o sujeito atrás da maquiagem, e alguns se perguntavam se aquilo era realmente maquiagem ou a face verdadeira de um vampiro que aceitou aparecer no filme. O rumor foi alimentado pelos produtores e todos que trabalharam nas filmagens. Seu nome só foi descoberto após sua morte quando passou a ser associado a Nosferatu.


Ao contrário do que muitos imaginam, Max não se aposentou após seu papel mais marcante. Ele trabalhou em várias outras produções, inclusive com Murnau em 1924, adaptando obras de Brecht em comédias e dramas. Sua carreira sobreviveu até mesmo à introdução do cinema falado, com ele aparecendo em filmes ao longo dos anos 1930.

Após fazer um retorno triunfal aos palcos no papel do Grande Inquisidor na montagem de Don Carlos, Schreck foi levado ao hospital sentindo fortes dores no peito. Ele morreu na manhã seguinte, em fevereiro de 1936, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Foi enterrado em uma sepultura não identificada no cemitério Wilmersdorfer em Berlin.

As pessoas próximas a Max Schreck sempre o consideravam um sujeito estranho e seus contemporâneos o tinham como um excêntrico. Seu senso de humor era ácido e negro ao extremo, chegando ao ponto de fazer brincadeira com temas controversos apenas com o intuito de chocar os ouvintes. Gostava de pregar peças nas quais fingia estar morto e numa ocasião uma ambulância teria sido chamada às pressas para ajudá-lo. Ele foi casado com a atriz Fanny Normann, mas não chegou a ter filhos.

Apesar de sua extensa carreira, Schreck seria sempre lembrado como o sinistro Conde Orlock, especialmente fora de seu país natal postumamente. Seu nome se tornou sinônimo de cinema de horror, algo que ele de fato merecia. Foi ele quem nos deu um dos primeiros monstros do cinema e fez incontáveis pessoas perderem o sono, tudo isso sem dizer uma palavra, simplesmente recorrendo a expressões e olhares. 

Ele pode não ter sido um vampiro de verdade como muitos acreditavam, mas seu legado como Nosferatu e os rumores que seu papel despertou construíram uma lenda que permanece até hoje. 


quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A Caçada a Serpente de Gloucester - O Monstro Marinho que assustou a Costa Leste dos EUA


Pouco mais de 200 anos atrás, a cidade pesqueira de Gloucester, Massachusetts, na costa leste dos Estados Unidos, foi atormentada por uma onda de avistamentos de um insidioso monstro marinho. 

Isso ocorreu ao longo de dois anos e deixou uma marca na historia da cidade e entre os homens do mar que lá viviam. O monstro foi visto repetidas vezes causando estranhamento, apreensão e finalmente terror entre os habitantes locais. Eventualmente, os testemunhos cessaram, e o mistério do que era essa criatura permaneceu sem solução. Atualmente, temos algumas ferramentas à nossa disposição que podem ajudar a identificar o que era essa estranha criatura marinha ou ao menos lançar suposições sobre sua origem.

Glossy, como passou a ser conhecida, foi vista pela primeira vez em março de 1817 por duas mulheres que estavam em terra firme. Elas viram uma longa linha de corcovas se movendo pelo Porto de Gloucester a cerca de 200 metros mar adentro. A criatura era grande, mas não era uma baleia, visto que possuía um corpo sinuoso e longilíneo. Movia-se por baixo da linha d'água de forma elegante vindo à superfície de quando em quando. As duas ficaram apavoradas, correram para chamar marujos, mas quando eles voltaram com elas, a criatura havia desaparecido sob as ondas.

Nem uma semana depois surgiu um segundo relato. A criatura foi vista por uma embarcação de passageiros cuja tripulação teve uma visão privilegiada dela. Vinte e oito pessoas afirmaram ter avistado a criatura de uma distancia não maior do que 70 metros. Os relatos a descreveram como uma espécie de serpente marinha de grande comprimento e dotada de uma linha de de corcovas dorsais. Uma testemunha descreveu-o como "uma corda grossa, dotada de espinhos dorsais e com uma enorme cauda de baleia". Os tripulantes à bordo deixaram claro que não era nada que eles já tivessem visto anteriormente e mesmo os marujos mais experientes se mostraram chocados. Os testemunhos mencionaram 10 corcovas, mas alguns chegaram a contar até 32. Conforme Glossy se movia pela água, as testemunhas afirmaram que ele parecia ondular verticalmente, como um golfinho, em vez de lateralmente, como um peixe. O comprimento de Glossy, a julgar pelas corcovas, foi calculado como algo entre 12 e 36 metros. 


O avistamento causou sensação e artigos foram publicados nos jornais de Boston e de Nova York, estampando com letras garrafais a existência de uma Serpente Marinha no litoral da Nova Inglaterra. Algumas semanas depois, um pesqueiro chamado Mary Elizabeth relatou o avistamento da mesma criatura a cerca de 70 milhas náuticas da costa na direção de Nantucket. O relato é notável pois os pescadores conseguiram ver a criatura de uma distância que lhes permitiu descrevê-la em detalhes: sua cabeça era como a de uma cobra gigante, com olhos redondos com órbitas vítreas de um amarelo pálido e íris alongada negra. Sua cabeça estaria a mais de 2 metros fora da água, erguendo-se desafiadora para o barco de pesca que passou triscando o seu costado na lateral do monstro. Um detalhe notável foi a descrição de uma espécie de chifre pontiagudo despontando na frente de sua cabeça. Sua cor era cinza pálida, branca ou ainda num tom azulado, com escamas que reduziam ao sol. Um dos marinheiros arremessou contra a besta um arpão, mas este simplesmente resvalou em suas escamas sem produzir qualquer ferimento visível.

A experiência da tripulação do Mary Elizabeth chamou a atenção uma vez que seu capitão era um certo Elisha Berek, um experiente lobo do mar, respeitado em Gloucester e tratado como um homem sério e que jamais inventaria uma história tão bizarra. Berek deixou claro o que havia visto e reconheceu que o oceano ainda tinha segredos que mesmo ele, com mais de 25 anos de experiência naval, desconhecia. 

Os jornais de Boston estipularam uma recompensa de 3 mil dólares (o equivalente hoje a 100 mil dólares) para qualquer pessoa que conseguisse matar a criatura e recuperar sua carcaça. A proposta atraiu vários pescadores, baleeiros e arpoadores de toda parte do litoral que convergiram para Gloucester interessados em reclamar a grande recompensa oferecida.   

A criatura, entretanto parece ter se ressentido da súbita exposição e desapareceu misteriosamente frustrando os homens do mar que esquadrinhavam a costa em busca de qualquer sinal do monstro. O recém formado Museu de Vida Marinha de Nova York insistia que a criatura misteriosa deveria ser uma baleia ou qualquer outra espécie de cetáceo desconhecido. Mesmo assim, as buscas prosseguiram, atraindo cada vez mais pessoas para o Porto de Gloucester.


Até esse momento é interessante dizer que a criatura não havia causado danos a embarcações ou marinheiros, mantendo-se apenas como uma curiosidade enigmática. Isso mudaria com a tragédia ocorrida com a tripulação do Hispania, um baleeiro de pequeno porte. Ironicamente a tripulação não estava em busca da criatura quando deixou o porto do Gloucester em meados de junho. Seu objetivo era o abate de baleias azuis que eram atraídas pelas correntes frias da área. Eles teriam avistado a Serpente Marinha por acaso nas imediações de Cape Ann, a uma distância considerável no sentido sul.

O Hispania empreendeu uma perseguição ao monstro, segundo os marujos. Eles dispararam armas de fogo e arremessaram arpões manuais, mas não conseguiram ferir a besta que se afastou deles seguindo para águas mais fundas. A perseguição durou quase 50 minutos, até que o Hispania a perdeu de vista. O capitão ordenou que dois botes à remo fossem descidos para que pudessem aumentar a área de busca. O plano se provou um desastre.

Enquanto realizavam a busca, a tripulação de um dos botes percebeu a movimentação de uma forma grande que se aproximou velozmente. Eles não tiveram a chance de sequer lutar, a criatura rompeu a superfície abalroando o bote com força fazendo os tripulantes caírem na água gelada. Os homens gritaram e tentaram nadar, mas logo um a um foi puxado pela criatura. O único sobrevivente a ser tirado da água foi um pescador chamado John Hudson que afirmou ter visto seus companheiros, um a um, sendo devorados pela fera. O monstro em seguida escapou deixando um saldo de cinco homens desaparecidos.  

Ao retornarem para Gloucester, os marinheiros do Hispania contaram sua sensacional aventura. Hudson se tornou uma celebridade instantânea, concedendo entrevistas e sendo considerado uma espécie de herói pelos outros marujos. Ele perdeu a conta de quantas bebidas os homens do mar pagaram para ouvir sua narrativa heroica.


Mas não demorou muito para a história levantar uma série de dúvidas que colocava toda narrativa sob suspeita. De fato cinco marujos do Hispania haviam desaparecido em alto mar, contudo havia enormes incongruências na história contada pelos que haviam participado da caçada. Alguns homens chegaram a afirmar que não podiam garantir que se tratava de uma Serpente Marinha e achavam mais provável que fosse um grupo de orcas. A narrativa de John Hudson, o único sobrevivente do bote naufragado, que teria "visto a fera cara a cara", adicionava ainda mais dúvidas à história. O marinheiro, dado a exageros sobretudo depois de beber, descreveu a criatura de uma maneira pitoresca: era dotada de uma cabeça semelhante a de um cavalo com uma longa crina. A fera meneava sua cabeça se agitando violentamente, produzindo um som de guincho, relinchar ou ainda o grito potente de uma baleia arpoada.

Embora Hudson e a tripulação tenham recebido grande atenção, não demorou muito até que a maioria das pessoas colocasse a história inteira em dúvida. Vários barcos seguiram para Cape Ann em busca de Glossy e encontraram os destroços do bote e dois cadáveres boiando. Os experientes homens do mar cogitaram que aquilo parecia condizente com o ataque de orcas. A informação foi corroborada quando um grupo desses animais foi avistado e abatido por caçadores. A história dos homens do Hispania começou a cair em contradição, sendo que o próprio John Hudson acabou sendo apunhalado numa taverna depois de uma acalorada discussão. Poucos instantes antes ele havia sido chamado de mentiroso por um marujo local.

Um novo avistamento ocorreria em meados de setembro com um cargueiro de bandeira espanhola cruzando com a criatura em mar aberto a cerca de 300 milhas náuticas de Gloucester. Os tripulantes  descreveram o monstro como uma Serpente Marinha semelhante àquela vista pelas primeiras testemunhas. Eles não tentaram perseguir ou confrontar a criatura, não sabiam do que se tratava e julgaram mais seguro simplesmente observar o monstro se afastar e sumir no horizonte. Houve pelo menos mais uma dúzia de relatos até meados de 1819. Glossy permaneceu sem ser capturado ou identificado. Aos poucos a história foi perdendo interesse por parte da imprensa até ser esquecida fora da área de Gloucester. 

Mas o que seria essa misteriosa criatura e o que as muitas pessoas que afirmavam tê-la encontrado realmente viram? Teria sido uma espécie de alucinação, já que é complicado assumir que todas testemunhas simplesmente resolveram inventar a história?


O biólogo marinho Joe Nickell abordou o mistério e publicou sua teoria para Glossy em uma edição de 2019 da revista Skeptical Inquirer. Nickell se concentrou no "chifre" de quatro pés, também descrito por outra testemunha como uma "ponta ou lança" projetando-se de suas mandíbulas. Considerando todos os relatos que discutiam o comportamento e a aparência da criatura, Nickell concluiu que uma boa suposição é que as pessoas viram um grupo de narvais com presas que, às vezes, se alinhavam para formar uma longa fileira de corcovas. Embora os narvais - que são baleias de médio porte, vivam apenas nas águas árticas do Canadá, Groenlândia e Rússia não é impossível que haja casos isolados de narvais chegando a região da Nova Inglaterra. 

Nickell também oferece outras explicações possíveis: 

"Se fosse necessário atribuir a Glossy uma espécie de criatura marinha conhecida, há candidatos até mais plausíveis do que um cardume de narvais. Se decidíssemos que o "chifre" era a característica mais distintiva, provavelmente deveríamos supor se tratar de um peixe-espada ou peixe serra. A costa leste dos Estados Unidos é de fato famosa pela pesca esportiva de peixe-espada; eles são encontrados ao longo de toda sua extensão. Todos os peixes-espada se alimentam perto da superfície, então ver seu aguilhão cutucando acima da água não seria algo incomum", escreveu o biólogo marinho em seu artigo.

Mas ao sugerir essa explicação cotidiana para o mistério da Serpente de Gloucester, criamos um novo problema. Se fosse realmente algo que pode ser visto a qualquer momento, por que tantas pessoas ofereceram relatos de um monstro apenas entre 1817 a 1819?

Além disso, seria de se supor que marinheiros familiarizados com essas águas fossem capazes de reconhecer um peixe-espada ou peixe-serra sem tratá-lo como algo desconhecido. Contudo, é possível que em se tratando de um animal de grande porte, este pudesse causar confusão ou até ser confundido por pescadores veteranos. 

"É raro, mas sabemos de exemplares de peixe-serra que podem chegar a 7,5 metros de comprimento. Não é impossível que estes animais se reúnam em grupo, o que pode causar a confusão à distância e fazer parecer se tratar de um único e enorme animal.


É possível que um grupo de animais de tamanho extraordinário tenha aparecido nas águas de Gloucester entre 1817 a 1819, algo tão fora do normal que confundiu muitas pessoas e ganhou status de lenda duradoura. Um evento registrado no ano de 1994 atestou que um grupo de peixes-serra com mais de 7 metros foi avistado nas imediações de Gloucester. O grupo em questão era composto de cinco indivíduos sendo que o menor deles não tinha menos do que seis metros de comprimento. Talvez tenha sido algo semelhante ao que os marinheiros viram em 1817. 

Como explicações mundanas não geram manchetes e menos ainda vendem jornais, ninguém queria saber de peixes-serras e sim de uma serpente marinha misteriosa. Isso gerou dois anos de relatos sensacionalistas e manchetes de jornais sobre um monstro na costa da Nova Inglaterra. 

Há ainda a questão da conformidade social na qual certas crenças podem se espalhar rapidamente por uma comunidade, mesmo entre aqueles que não testemunharam nada fora do normal. Pessoas que ouviram falar sobre Glossy podem ter sido impactadas pela mesma narrativa e passaram a acreditar nela piamente. Casos de testemunhas oculares sempre são acompanhados pela observação prévia de outras pessoas reforçando a narrativa. O fenômeno é conhecido pela psicologia como Pareidolia uma espécie de confirmação combinada de indivíduos que acreditam ter visto a mesma coisa e assumem ter compartilhado de algo notável. Esses eventos são bem comprovados e exatamente o que esperamos no caso de animais ou criaturas sobrenaturais como este.

Verdade ou mentira, simples rumor ou monstro real, ninguém, mesmo hoje, é capaz de dizer com certeza o que aconteceu. A Lenda da Serpente Marinha de Gloucester se espalhou e continuou a ser contada ao longo do tempo. Dizem que Hermann Melville procurou saber à respeito dela para escrever seu famoso romance náutico - Moby Dick. 

É certo que as pessoas em Gloucester continuarão a lembrar dessa lenda, afinal, eles sabem que os mares oferecem histórias que às vezes são difícies de serem explicadas. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

O Homem mais Procurado do Mundo - A vida e as muitas mortes do assassino em série Bela Kiss


Na Hungria, no início da década de 1900, Bela Kiss de 32 anos, mudou-se para uma casa alugada em Cinkota, uma pacata cidadezinha nos arredores de Budapeste.

Kiss era um homem simpático que logo ganhou a admiração de todos. Seus vizinhos imediatamente o viram como um sujeito amigável, o tratavam como alguém de respeito, um cidadão acima de qualquer suspeita. As mulheres o achavam bastante bonito, com cabelos loiros brilhantes e olhos de um azul que parecia se iluminar quando demonstrava interesse. Seu grande bigode, cuidadosamente aparado parecia másculo e severo, mas Bela era gentil e muitos descreviam sua voz como cativante. 

Ele ganhava a vida como funileiro, uma profissão importante na época. Um funileiro era uma espécie de artesão em ferro que realizava conserto e serviços em objetos de metal, ofício que lhe garantia um salário regular. Para todos os efeitos ele tinha uma vida tranquila e com algumas regalias. 

Kiss também se destacava pela sua notável inteligência. Não apenas havia aprendido sozinho seu trabalho como se mostrou um artesão admirado pela habilidade. Clientes vinham de todo canto, inclusive da capital, trazer algum objeto para ele reformar. Mas Bela não se destacava apenas pela sua profissão, ele também era famoso por ser um leitor voraz. De fato ele devotava seus momentos de folga para a leitura que era sua atividade favorita. Ele tinha orgulho da vasta coleção de livros sobre os mais variados temas. Kiss era um conhecedor de arte, literatura e história antiga. Era capaz de dissertar à respeito de estilos de arte clássica, de falar sobre as vertentes do modernismo, fazer crítica sobre romances e tecer comentários à respeito da política internacional. Alguns amigos vinham até sua oficina apenas para conversar e ele os recebia sempre com um sorriso, satisfeito em trocar ideias sobre os últimos acontecimentos na Europa.

Sem nenhuma escolaridade formal, era notável como Bela conseguia cativar a todos, sendo capaz de discutir praticamente qualquer assunto com as pessoas mais inteligentes e instruídas da cidade. Ademais falava alemão, russo, checo e latim, além de entender o básico de grego e búlgaro. Os idiomas, se gabava de ter aprendido quando prestou o serviço militar e foi secretário de um General. Bela teria se destacado recebendo inclusive condecorações no serviço militar.

Ele também tinha fama de ser um bon-vivant com propensão a dar festas. Em mais de uma ocasião convidou amigos e conhecidos para festejar nas tavernas locais, pagando à todos refeições e bebida, o que lhe valeu a fama de ser generoso. Em resumo, todos gostavam de Bela Kiss e ele era considerado pelas mulheres o solteiro mais cobiçado da cidade.

Não particularmente ansioso para se casar, Kiss contratou a idosa Sra. Jakubec, como governanta para realizar as tarefas domésticas que uma esposa normalmente faria. Cinkota tinha uma escolha limitada de companheiras, então Kiss manteve um apartamento em Budapeste e publicou anúncios românticos em jornais de lá. As mulheres se correspondiam com Kiss que recebia muitas cartas. As fofocas na cidade davam conta de que ao longo dos anos um fluxo constante de mulheres de Budapeste passavam curtos períodos de tempo na casa de Kiss em Cinkota, mas ninguém na cidade, nem mesmo a Sra. Jakubec, foi apresentado a essas jovens que iam e vinham tão rapidamente.

Ele tinha 37 anos quando a Guerra Mundial eclodiu em 1914 e os reservistas húngaros foram convocados para defender o país. Bela não estava especialmente ansioso para retornar ao serviço militar, mas acabou se apresentando e foi reintegrado ao Exército nacional. Bela deixou sua casa fechada e oito meses de aluguel pagos em avançado. Ele esperava retornar em breve e continuar seguindo com seu trabalho como funileiro, retomando sua vida normal. Talvez por conta disso ninguém jamais poderia imaginar o horror que seria revelado cerca de dois anos após a sua partida.

Tudo começou de uma maneira bem simples. Certo dia o detetive-chefe Charles Nagy da polícia de Budapeste, recebeu uma ligação alarmante. Era o dia 16 de julho de 1916 e a pessoa do outro lado da linha se apresentou como morador de Cinkota. O tom era de afobação e ele parecia não falar coisa com coisa. 

Ele acreditava ter descoberto evidências de um assassinato ocorrido em sua propriedade.

O sujeito explicou que era o proprietário de uma casa na rua Kossuth que havia sido alugada a um soldado chamado Bela Kiss. O inquilino havia partido para a guerra e o contrato havia expirado.  Rumores mencionavam que ele se tornou prisioneiro de guerra ou até que possivelmente havia sido morto em batalha. De qualquer forma, não era provável que ele retornasse logo já que a guerra se arrastava.  

O proprietário foi até a casa para ver que reparos seriam necessários caso ele viesse a alugá-la novamente. No pátio nos fundos da casa se deparou com algo inusitado: vários tambores grandes de metal. Aquilo era esquisito pois o inquilino havia deixado aquelas coisas misteriosas sem mencionar o que seriam. Imaginando que poderia ser combustível estocado, o senhorio perfurou um dos tambores fazendo escorrer de dentro dele uma água escura de fedor nauseante. Um funcionário da farmácia ao lado disse que o cheiro era inconfundível e decretou se tratar de decomposição humana. 

O proprietário implorou ao Detetive Nagy que viesse com urgência já que haviam dezenas de tambores semelhantes e ele tinha um péssimo pressentimento sobre o que acontecia ali. Nagy reuniu dois de seus melhores detetives e correu para a pacata cidadezinha de Cinkota. Quando chegaram à casa da rua Kossuth, o proprietário e alguns vizinhos já aguardavam com olhares preocupados. A idosa Sra. Jakubec, que havia prometido proteger os pertences de seu patrão, ficou furiosa e gritou para os policiais deixarem a propriedade em paz.

Nagy a tranquilizou se responsabilizando por qualquer dano produzido. Ele então abriu um dos tambores de metal lacrado com solda. Isso confirmou as piores suspeitas do proprietário e dos moradores locais. Dentro havia o corpo nu de uma jovem morena com longos cabelos escuros. Também dentro do tambor de metal estava a corda com a qual ela havia sido amarrada. O fedor era tamanho que a vizinhança inteira se perguntava o que havia acontecido na casa do funileiro.

Ao ser questionada, a Sra. Jakubec ficou perplexa com o conteúdo das grandes latas de metal que Bela Kiss estocava em seu quintal.  Os poucos que haviam visto os tambores presumiram que se tratava de gasolina ou diesel estocada. Quando os detetives examinaram os outros tambores de metal, descobriram que cada um continha o corpo de uma mulher nua. Todas elas foram vítimas de abuso e estrangulamento, finalmente haviam sido mergulhadas em uma solução de álcool que as preservava.

Depois que os detetives isolaram a cena do crime um agente funerário foi chamado para recolher os cadáveres. A polícia também conduziu uma busca na casa de Kiss e nos arredores, encontrando mais corpos que haviam sido enterrados no terreno. Cada vítima, mesmo aquelas que foram enterradas, havia sido preservada com álcool. Os corpos ainda eram reconhecíveis e podiam ser identificados se tivessem alguns nomes com os quais trabalhar. O número de vítimas chegava a 15.

Diante do maior caso de sua carreira o Detetive Charles Nagy notificou imediatamente os militares que Bela Kiss, se ainda estivesse no front, tinha de ser preso como assassino. Em seguida, ele interrogou a governanta aterrorizada. Nagy acreditava que Kiss poderia ter um cúmplice, por isso notificou as autoridades postais e telegráficas das redondezas que deveriam reter quaisquer mensagens destinadas a Bela Kiss. A notícia da grande descoberta estava se espalhando rapidamente por Cinkota e logo chegaria aos jornais de Budapeste. Nagy queria ter certeza de que nenhum cúmplice receberia um aviso.

Vários fatos tornaram a investigação mais difícil do que o normal. Os nomes húngaros Bela e Kiss eram extremamente comuns no país. Era provável que houvesse muitos homens no exército chamados Bela Kiss de modo que a prisão do indivíduo correto seria complicada por fatores alheios a sua vontade. 

Nagy então se concentrou na identidade das vítimas que poderia ajudar a entender como aquelas mortes aconteceram. As pistas nos cadáveres eram escassas já que as vítimas estavam nuas e sem identificação. Contudo, dentro da casa que a senhora Jakubec manteve imaculada, a polícia encontro uma única porta trancada. "Essa é a sala particular do patrão", disse a criada ao detetive Nagy. "Ele me disse para nunca entrar e nunca deixar ninguém entrar". A Sra. Jakubec enfiou a mão no avental e tirou uma chave antiga que abriu a porta trancada a dois anos. Nagy percebeu imediatamente que a sala estava repleta de estantes cheias de livros e a única mobília era uma grande escrivaninha e uma cadeira confortável.

Os livros eram escritos em vários idiomas e versavam sobre os mais variados assuntos. No entanto, chamou a atenção de todos a quantidade enorme de livros versando sobe ocultismo, magia negra, feitiçaria e temas similares. Bela Kiss parecia alguém muito interessado no tema e dedicado ao que se convencionou chamar de Ciências Esotéricas. Os livros eram antigos, alguns manuscritos contendo todo tipo de conhecimento estranho.  

Numa gaveta trancada na escrivaninha a polícia encontrou um enorme volume de correspondência entre Kiss e várias mulheres. Também encontraram um álbum com fotos de mais de cem mulheres com as quais ele teria se correspondido ao longo de vários anos. Nagy começou a se preocupar com a possibilidade de o número de vítimas ser maior do que o de cadáveres descobertos na casa. As cartas foram arquivadas em pacotes para que a correspondência fosse separada por ano. As mulheres escreviam em resposta a anúncios publicados na seção de Correio Sentimental nos maiores jornais de Budapeste. Todas queriam casamento e achavam Bela Kiss um bom partido. Mais tarde foi revelado que Kiss havia recebido 174 propostas de casamento. A 70 dessas mulheres, ele ofereceu casamento e manteve correspondência regular com elas. Outra coisa ficou bastante clara, Bela Kiss estava enganando mulheres pegando empréstimos delas e enriquecendo. Algumas das cartas datavam de 1903.

A polícia se perguntava como era possível que Kiss pudesse se corresponder com tantas mulheres e trazer muitas delas para sua casa sem que ninguém suspeitasse de suas intenções. Era impossível que ninguém soubesse de alguma coisa.

Nagy suspeitava da Sra. Jakubec, já que ela era criada na casa há mais de uma década. Quando Nagy a interrogou, ela se mostrou aterrorizada com a possibilidade de ser acusada de participação nos crimes, ainda assim tentava defendê-lo à todo custo: "Ele era um homem muito bom. Todos gostavam muito dele na cidade. Ele era gentil com todos; não machucaria ninguém! Tenho certeza de que isso é um erro – ele não pode ter matado aquelas mulheres!"

A criada admitiu ter visto muitas moças entrando e saindo da casa vindo visitar Bela Kiss ao longo dos anos, mas alegou não saber seus nomes. "Eu quase nunca disse uma palavra a eles. Eu era apenas a criada e passava as noites em minha própria casa. O que Bela fazia com essas senhoras não era da minha conta. Eram todas senhoras da cidade, não camponesas como eu. Vinham num dia e depois iam embora."

Nagy e seus colegas questionaram os vizinhos de Kiss na cidade e os que o conheciam. Todos gostavam dele e não achavam incomum um solteiro bonito e amável receber a visita de várias mulheres. Os homens casados ​​da cidade o invejavam, as mulheres o admiravam. Quem poderia imaginar o que acontecia na casa? Quem poderia dizer que atos tão horríveis aconteciam ali, bem perto deles?

O detetive contatou os departamentos de polícia de todos os lugares onde encontrou uma mulher que havia se correspondido com Bela Kiss. Eventualmente, ele teve certeza de entender a técnica usada pelo assassino para atrair suas vítimas. Ele colocava anúncios nos jornais, buscando informações sobre os recursos financeiros da mulher. Quando recebia resposta ele a visitava, descobria sobre sua família e amigos. Ele se concentrava nas mulheres que não tinham parentes próximos e que não fariam falta se desaparecessem. Com o tempo as seduzia e conquistava sua confiança.

A maioria das cartas indicava que as mulheres lhe davam dinheiro, joias e às vezes tudo o que tinham, tamanha a habilidade dele em inventar histórias e razões absurdas para que elas o fizessem. Bela também dizia ser uma espécie de místico, bruxo ou vidente que auxiliava as mulheres oferecendo a elas meios de conquistarem o que desejavam. O homem era na verdade um charlatão, um falsário e um sedutor. Se ele achasse que havia algum risco de envolvimento da polícia, imediatamente providenciava um encontro no qual as eliminava. Dessa maneira ele aparentemente havia atraído dezenas de mulheres até sua casa ou até lugares onde poderia matá-las. Bela era um mestre no uso do garrote, aparentemente ele aperfeiçoou o método lendo e buscando informações em revistas policiais do período. Um auto de data, ele se gabava de ser capaz de matar com rapidez para não fazer a vítima sofrer demasiadamente: "Ao pegar de jeito, não há escape", escreveu ele. 

Analisando as cartas, a polícia obteve indícios de que Kiss havia assassinado pelo menos 30 mulheres, ainda que nem todos os corpos tivessem sido encontrados. As autoridades acreditavam que o número de vítimas poderia ser ainda maior, já que várias mulheres que lhe escreveram ao longo dos anos não foram localizadas e simplesmente sumiram em pleno ar.

Em 4 de outubro de 1916, a polícia recebeu uma mensagem de um hospital sérvio alegando que um soldado chamado Bela Kiss havia morrido de tifo em 1915. Foi seguido por outra mensagem que dizia que Kiss estava vivo e era um paciente no mesmo hospital. O detetive viajou imediatamente para o local, que estava então em mãos húngaras. "Acho que pegamos seu homem", informou o comandante militar pelo telégrafo. Nagy estava tomado pela excitação. Ele chegou ao hospital ao anoitecer, mas quando foi levado à enfermaria onde o criminoso estava se recuperando, ficou em choque. O homem na cama estava morto - enforcado, mas não era Bela Kiss. De alguma forma, ele foi avisado de que a polícia estava à caminho, matou um enfermeiro e colocou seu cadáver na cama.

As autoridades decidiram que toda a Hungria deveria saber sobre o Monstro de Cinkota e mandou imprimir milhares de cartazes com a foto de Bela Kiss. Dicas choveram de todas as partes do país. Seguiram-se muitos avistamentos em lugares díspares ao redor do mundo. Alguém alegou ter visto o serial killer andando por uma rua de Budapeste em 1919. Cinco anos depois, em 1920, um membro da Legião Estrangeira Francesa foi a uma delegacia de polícia para denunciar um colega legionário que ele acreditava ser Kiss. ​​O homem, que assumiu o nome Hoffman (um pseudônimo que Kiss usava) era famoso por usar o garrote de maneira letal. A polícia foi até a unidade para interrogar Hoffman apenas para descobrir que ele havia desertado dias antes.

Um soldado húngaro alegou que Bela Kiss foi preso na Romênia por enganar mulheres. Outro disse que ele morreu de febre amarela na Turquia. Com a notícia se espalhando, não demorou até Bela Kiss se converter no homem mais procurado da Europa. Nos anos 1920 até meados da década de 1930 ele foi procurado em vários países e considerado o inimigo público número. Cartazes com sua foto e descrição estiveram nas principais delegacias de polícia no continente. Ele foi o primeiro criminoso a ter seu nome incluído na Lista dos mais procurados da Interpol quando esta foi criada em 1923. De fato, uma das justificativas para a criação da Polícia sem Fronteiras na Europa foi capturar criminosos como Bela Kiss.

As informações sobre Kiss chegaram ao Novo Mundo. Um detetive de Nova York chamado Henry Oswald tinha certeza de ter prendido Bela Kiss em 1932. Ele usava outro nome e tinha alterado sua aparência, contudo ele não tinha dúvidas de que se tratava do fugitivo. Oswald tinha o apelido de "Olho de Lince" por sua memória extraordinária para rostos. Após ser liberado, ele acabou sumindo uma vez mais. O relatório fez muitos se convencerem de que Kiss, com quase 70 anos estaria morando em Nova York. Em 1936, novos rumores surgiram de que ele trabalhava como zelador num prédio de apartamentos. A polícia foi ao prédio para entrevistar o suspeito mas ele havia fugido e não deixou nenhuma informação.

Aos poucos ele foi deixando de ser notícia, desaparecendo para sempre e se tornando uma espécie de lenda. Muitos fatos sobre Bela Kiss jamais serão conhecidos, nem mesmo seu destino final. Ele se converteu em um verdadeiro mito, maior que a sua própria vida.

Uma questão importante é se Kiss parou de matar depois de encontrar um novo esconderijo e assumir outra identidade. Embora nenhum crime tenha sido atribuído diretamente a ele fora da Hungria, é pouco provável que um serial killer tenha parado repentinamente de matar. Bela Kiss aprimorou suas técnicas de sedução e assassinato ao longo de anos e aquilo se tornou parte de sua vida. Talvez ele tenha tentado se misturar com a população e ter uma vida normal, esquecendo seu passado, mas quando comparamos seus feitos com o de outros criminosos é difícil acreditar que ele tenha simplesmente desistido de seu modus operandi.

A verdade é que Bela Kiss, o Monstro Assassino e um dos homens mais procurados do mundo conseguiu ludibriar todos os seus perseguidores e jamais foi apanhado.    

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Os Outros Árabes Loucos III - Feiticeiros do Mythos no Oriente Médio

O terceiro e último artigo sobre os outros feiticeiros do Oriente Médio além do celebre Abdul Al-Hazred, o árabe louco original.

UMAR BIN-YAKTHOOB


Umar Ibn-Yakthoob, conhecido em alguns círculos apenas como Velho Yakthoob teve a dúbia honra de ser o primeiro Mestre de Abdul Al-Hazred no início de seu treinamento místico. Pouco se sabe à respeito de sua vida pregressa, mas o autor do Necronomicom creditava a seu mentor parte de seu interesse pela feitiçaria, chegando a referenciá-lo como o professor que instilou em sua alma o desejo pelo aprendizado das artes negras.

Supõe-se que Ibn-Yakthoob nasceu em Memphis no Egito e que pode ter sido um membro da infame Irmandade do Faraó Negro, um culto devotado a Nyarlathotep e mais especificamente ao seu avatar egípcio. Cronistas mencionam o feiticeiro como um favorito de Nitocris de quem ele teria obtido parte de sua instrução arcana. Verdade ou não, Yakthoob tinha grande influência e era tido como um dos feiticeiros mais poderosos do Egito. Em dado momento ele se retirou ou mais provavelmente, foi expulso da Irmandade por perseguir fontes de poder vedadas aos devotos do Faraó Negro. É possível que essa separação não tenha sido amistosa já que Al-Hazred afirmava que seu mentor sofria ameaças constantes de seus antigos companheiros e que temia sofrer atentados contra sua vida.

Ele se exilou no Vale de Hadoth, próximo das Colinas de Neb, possivelmente a leste da cidade de Tel el-Amarna. Com aproximadamente 50 anos ele aceitou instruir dois aprendizes o devasso Ibn-Ghazoul e o o prodigioso iemenita Abdul Al-Hazred, então com apenas 15 anos. Yakthoob ensinou aos seus dois aprendizes a base do estudo arcano, bem como a "invocar entidades malignas". 

O período de estudos de Al-Hazred com Yakthoob durou dois anos e se encerrou abruptamente quando o feiticeiro foi devorado por um demônio que ele próprio invocou. A entidade deveria ter sido controlada graças a uma poção mágica obtida na Babilônia pelos aprendizes. Contudo, Ibn-Ghazoul forneceu a seu mestre um elixir falso uma vez que gastou o dinheiro dado para comprá-lo em um bordel. A morte de seu mestre foi um choque para o jovem Al-Hazred que rompeu sua amizade com Ibn-Ghazoul depois do ocorrido. Ele prometeu que jamais tomaria para si próprio a responsabilidade de instruir discípulos após o trágico destino de seu Yakthoob. Ironicamente, o próprio Hazred teria uma morte que espelhou a de seu mestre, despedaçado por uma entidade invisível em Damasco.

O nome de Yakthoob é mencionado várias vezes nas páginas do Al-Azif, inclusive em um capítulo que narra sua horrível morte. Ele também é citado como um dos mais experientes feiticeiros na arte da invocação de entidades de planos distantes - dimensões. 

XUTHLTAN


Dos Feiticeiros do Oriente Médio que se destacaram em seu envolvimento com o Mythos de Cthulhu, talvez Xuthltan seja o mais abominável. Não se sabe muito sobre seu passado, mas supõe-se que ele tenha nascido em Gandara, no atual oeste do Paquistão, à época parte do vasto Império Persa

Há boatos de que Xuthltan se envolveu com o Culto Bestial de Carniçais que operava no submundo do Império e que gozava de enorme influência entre alguns aristocratas entediados. Ele teria partilhado dos rituais desses seres e se envolvido em atos de necrofilia e canibalismo. O contato íntimo com tais criaturas e suas práticas iniciou em seu corpo a transformação profana que eventualmente faria dele um Carniçal.

Xuthltan foi um hábil feiticeiro, supostamente um dos favoritos do infame Pai dos Carniçais, Naggoob que lhe agraciou com vários presentes e conhecimento. Em dado momento de sua vida, já quase inteiramente transformado, ele empreendeu uma jornada aos recessos de um complexo subterrâneo de onde retornou com um importante artefato, a joia mística conhecida como Fogo de Asshurbanipal. O feiticeiro deveria ter entregue o artefato ao seu benfeitor Naggoob, mas ao invés disso decidiu tomar a pedra para si próprio. 

Ele fugiu para a cidade de Kara-Shehr onde ofereceu suas habilidades ao Rei daquela terra que se impressionou com as suas proezas mágicas. Por muitos anos ele foi um conselheiro místico e vizir na corte usando uma máscara que disfarçava sua terrível aparência. Contudo, o Rei foi consumido pela cobiça que o levou a ordenar a prisão do Feiticeiro afim de se apoderar da magnífica joia. Xuthltan foi torturado na masmorra e acabou revelando a localização do Fogo de Asshurbanipal pouco antes de ser esquartejado.

Diz a lenda que em seu último fôlego o Feiticeiro lançou uma maldição sobre Kara-Shehr, seu povo e seu Rei. A cidade foi varrida pela doença, pela loucura e finalmente pela morte. Os poucos sobreviventes que escaparam dessa calamidade abandonaram a cidade que foi coberta pelas inexoráveis areias do deserto.

O FOGO DE ASSHURBANIPAL


Descrita como uma das mais formidáveis gemas de que se tem notícia, o Fogo de Asshurbanipal tem fascinado e atraído homens para sua perdição há milênios.

A origem da gema é obscurecida por lendas, mas supõe-se que ela teria sido criada por um poderoso feiticeiro da mítica Atlântida que extraiu da Terra dos Sonhos a matéria prima para sua construção. Fisicamente a pedra é uma gema do tamanho de um ovo de galinha com coloração vermelho alaranjada com raias amarelas. Ela parece emanar um brilho próprio que reflete a luminosidade criando um efeito hipnótico similar a chamas dançando. Aqueles que contemplam a joia acabam desenvolvendo um incontrolável desejo de tê-la apenas para si.

A pedra teria sido perdida milênios atrás em um complexo subterrâneo onde ficou sob os cuidados de  uma entidade diabólica devotada a ela. Quando o Feiticeiro Carniçal Xuthltan conseguiu reavê-la precisou enfrentar e derrotar esse guardião, uma notável façanha.

O artefato é obviamente mágico e possui vários poderes sobrenaturais. O maior deles diz respeito ao prolongamento da vida. Ela também poderia ser usada para estabelecer conversa com os Espíritos Flamejantes dos Efreet (possivelmente uma alegoria para as criaturas conhecidas como Vampiros de Fogo). Finalmente, concentrando-se sobre a superfície cristalina da gema um feiticeiro pode observar outros lugares, planos e dimensões, tendo um vislumbre da grandeza do universo.

Após a devastação de Kara-Shehr a pedra se perdeu uma vez mais. Ela supostamente foi enterrada com seu último detentor um Rei maldito cuja cobiça condenou sua nação. Nômades que exploraram a cidade perdida afirmavam que na tumba real havia uma múmia com uma joia de rara beleza. Ela teria sido roubada, mas repetidas vezes retornou a esse local. Nos anos 1930, um explorador americano e seu associado chegaram a relatar a descoberta do Fogo de Asshurbanipal nessa exata câmara funerária. Apesar da tentação de tomar para si o artefato, ele teria resistido e deixado a pedra naquele local.

Seu paradeiro atual é desconhecido.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

RPG do Mês - PIRATE BÖRG - Ação, Terror e Pirataria no Caribe Sombrio


Eles vieram pela liberdade do Novo Mundo. Vieram pela riqueza do clima e pela beleza das ilhas. Eles vieram pelo saque dos grandes navios transportando lingotes de prata roubada das Américas e levada para a metrópole espanhola. Às vezes, eles recebiam permissão para atacar e roubar navios. Em outras, eles eram perseguidos pelos mares como criminosos comuns e quando pegos, enforcados até o último homem. Era uma vida de ação, emoção e aventura!

Então veio o Flagelo. 

Os corpos de marinheiros mortos começaram a levantar e andar, fantasmas daqueles expulsos de seus lares ancestrais, esqueletos cobertos de alga e limo marinho, zumbis apodrecidos e monstruosidades nascidas nas profundezas. Esses horrores visitaram as cidades e vilarejos trazendo consigo loucura, morte e deixando um rastro de destruição. Os sobreviventes fortificaram as muralhas, fecharam os portos e municiaram os canhões. A batalha pela sobrevivência contra as hordas de mortos vivos foi feroz.

No fim, restaram os fortes, os bravos e aqueles que estavam dispostos a qualquer coisa para sobreviver.

Em meio a esse pesadelo, a mais estranha descoberta foi feita! As cinzas desses cadáveres inquietos, quando queimadas e moídas criavam uma substância rara. Uma vez consumida, ela podia debilitar e destruir corpo e mente, tornando seu utilizador um escravo do vício, mas havia um outro lado. Ela também permitia alcançar milagres inenarráveis: era possível despertar sentidos adormecidos, obter poderes inimagináveis e até mesmo se tornar consciente do universo. Eles chamaram isso de ASH (cinza), uma droga vendida por uma fortuna e que estabeleceu seu próprio mercado negro, causando discórdia e conflito em toda a região. 

A fonte mais notória de ASH é a Cidade murada de Nassau. Nas ruínas da outrora orgulhosa capital de New Providence, agora existe um gueto de madeira e tendas de lona que abriga os Irmãos da Costa - piratas, rebeldes, ladrões e vagabundos. Eles são aqueles que sobreviveram ao Flagelo e que aprenderam a conviver com ele. Eles não são heróis, são a pior escória que já navegou os sete mares. 

Após o Flagelo o contato com o velho mundo ficou comprometido. Não existe rota segura para a Europa ainda que alguns façam a arriscada travessia. Lord Hamilton, governador da colônia britânica da Jamaica, passou a empregar tripulações piratas para proteger os interesses ingleses. Mas há grande rivalidade e facções cujos agendas colidem de forma violenta. A poderosa Companhia das Índias Ocidentais mantém seus grandes mercantes singrando os mares, escoltados por navios cheios de canhões e mercenários. As Índias Francesas caíram na indolência e na incompetência, dominada por sindicatos criminosos cruéis e cultistas vis. Já o Vice-Reino da Nova Espanha, com capital em La Habana, enriqueceu com o transporte de prata e ash, mas treme sob o olhar atento dos fanáticos da Inquisição. Cada nação dirige seus olhos ávidos e estende sua mão cobiçosa para espremer até a última moeda do novo mundo.

Nas tavernas há boatos sobre cidades perdidas de ouro engolidas pela selva. Lendas sobre mapas que levam até tesouros ocultos e riqueza jamais sonhada. Os ambiciosos arriscam suas vidas em expedições à Península de Yucatán e a Flórida; mergulham nas florestas escuras repletas de doenças, nativos hostis e horrores desconhecidos. Buscam por templos em ruína repletos de jóias que comprariam a alma de mil homens. Por vezes alguém fica rico alimentando o sonho, mas a grande maioria jamais retorna. 

Em todo canto, em cada viela e beco sórdido, cultistas espreitam, adorando seus deuses imundos, os Grandes Antigos, conforme descrito nas páginas terríveis do Necronomicon. Eles saúdam seu tenebroso Profeta - O Deus Afogado. A cada Solstício conduzem festivais e orgias para celebrar o Flagelo ansiando para que "O Fim dos Dias" chegue de uma vez. Quando as bestas das profundezas virão ao mundo dos homens para arrastá-los até o Abismo. E quem é capaz de dizer que esse dia não está cada vez mais próximo? 

Bem-vindo, marujo, ao Caribe Sombrio!

O Caribe Sombrio é o cenário de Pirate Borg. Publicado pela Limithron por intermédio da Free League após uma campanha bem-sucedida no Kickstarter, a ambientação é baseado em Mörk Borg, o RPG sueco estilo Old School Renaissance. Mörk Borg é notório por seu estilo e layout Artpunk, com cores vibrantes e arte bizarra que cria uma identidade própria. 

Pirate Borg tem uma apresentação menos agressiva com cores e layout mais suaves, mas isso não significa que esse seja um livro convencional. Ele é inegavelmente um derivado à altura do selo BÖRG transbordando com violência, bizarrice e muito gore. É algo que você não espera encontrar num cenário limpinho de D&D ou Pathfinder. Aqui tudo é sujo, doentio e brutal.

Como todos os produtos BORG, espere encontrar muitas tabelas aleatórias e rolamentos para definir características dos personagens. Em Pirate Borg, no entanto isso é levado ao extremo! Quase tudo depende do que os dados (e o destino) ditarem. O livro é recheado de tabelas de informações e listas que são úteis para familiarizar o leitor com o clima caótico do jogo.

Um elemento que Pirate Borg compartilha com Mörk Borg é que ambos são RPGs apocalípticos em que o mundo está escorregando na direção de um fim inevitável. A desgraça paira no futuro de todos, não como uma possibilidade, mas como uma certeza. Os habitantes do Caribe Sombrio sabem que tudo está chegando ao fim. Há uma sensação de destruição iminente e desesperança que permeia tudo e todos. O que se pode fazer é viver intensamente antes que tudo acabe. É claro, o Narrador é livre para escolher o que quer usar da ambientação e ignorar o que não agrada, mas a atmosfera é sempre pessimista.

Em Pirate Borg, os Personagens Jogadores são membros de uma tripulação, aventurando-se pelo Caribe Sombrio em busca de fama, riqueza ou algo mais soturno. Cada personagem é definido por uma lista de Habilidades, Classe, equipamento e um delicioso atributo chamado Sorte dos Diabos. As cinco Habilidades são Força, Agilidade, Presença, Resistência e Espírito, cada uma classificada entre "-3" e "+3". Para fazer um rolamento se usa o d20 e se soma o valor da Habilidade, o número alvo geralmente é 12, mas pode variar para mais ou menos. A mecânica é simples, um requisito essencial nesse tipo de narrativa Old School.

Existem seis Classes básicas e mais duas classes opcionais. Cada uma fornece ajustes para Habilidades, Pontos de Vida e Sorte dos Diabos inicial. 

O Bruto é um lutador corpo a corpo furioso que obtém uma arma confiável como uma "Âncora de Bronze" ou "Arpão de Chifre". Ele é mestre nessa arma e causa com ela enorme dano e devastação. O Rapscallion é um patife furtivo e cruel, que utiliza um baralho de cartas de onde extrai suas habilidades. Ele começa com uma única especialidade, como por exemplo "Ladrão" ou "Bastardo Furtivo", mas vai acumulando especializações únicas que o tornam um canalha único. Já o "Bucaneiro" é um atirador de elite e caçador de tesouros, além de um rastreador habilidoso. Suas façanhas estão ligadas ao uso de armas de fogo, explosivos e pólvora negra. O Swashbuckler é um lutador impetuoso, que também pode ser um esgrimista e líder tático. Sua língua ferina corta tanto quanto a lâmina de sua espada e suas provocações causam ferimentos profundos. O Zelota é uma espécie de sacerdote com orações de Cura, Maldição e Proteção Sagrada, que são aprendidas aleatoriamente e podem ser lançadas várias vezes ao dia. Ele é a contraparte do Feiticeiro que extrai poder de espíritos sobrenaturais e fantasmas para conjurar magias como Possessão Espiritual, Clarividência e Ressuscitar os Mortos.

As classes opcionais ficam a critério do mestre aceitar o não. A Alma Assombrada é um fantasma, um condutor para espíritos inquietos ou mesmo um zumbi ou esqueleto que reteve sua consciência apesar da morte. Cada modalidade de tormento fornece um benefício e uma penalidade. Por exemplo, espíritos inquietos se comunicam constantemente com o condutor para conceder um Ritual Arcano aleatório que deve ser conjurado antes do amanhecer do dia seguinte ou o condutor sofre dano. Mas isso não é tudo! Ainda é possível personificar uma criatura incomum do Caribe Sombrio, seja uma sereia, um Tritão, um mutante aquático ou um animal com inteligência humana. Embora sejam classes opcionais, elas estão mais para Raças ou Espécies do que realmente ocupações. 

Há uma questão de desbalanceamento flagrante aqui, mas o jogo não parece se importar muito com isso! Algumas classes são muito mais poderosas que outras, alguns poderes são bem mais úteis e com efeitos muito maiores. Se você não gosta disso, a atitude do jogo é dizer "azar o seu"! Cabe salientar que essa não é uma ambientação para os aficionados do combo, já que muito do que seu personagem será capaz de fazer será proveniente do que o dado decidiu num rolamento aleatório. Então relaxe e deixe as coisas correrem...

Para criar um personagem, um jogador rola o valor de suas Habilidades, adiciona os modificadores de classe, sorteia o equipamento e a Sorte dos Diabos inicial. O equipamento inclui arma, roupa e um chapéu que define o estilo do personagem. Tabelas adicionais fornecem antecedentes, defeitos, marcas físicas, idiossincrasias, incidentes prévios, condições infelizes e coisas importantes que seu personagem possui. O narrador pode exigir rolamentos nestas tabelas ou permitir que o grupo escolha o que achar mais interessante. O ideal, no entanto é que as tabelas sejam usadas para construir o personagem de maneira mais aleatória possível. Isso é um atrativo extra dentro de Pirate Borg, o fato de nunca saber no que vai resultar seus rolamentos.

Mecanicamente Pirate Borg mantém tudo muito simples e fácil, como acontece com a matriz original, o Mörk Borg. O jogo flui sem grandes preocupações sobre tática e estratégia. É claro, as regras contemplam elementos para adequar o tema de pirataria o que funciona muito bem. Os testes são sempre realizados pelo jogador e o mestre raramente irá encostar nos dados, deixando os personagens atacar e se defender conforme a ação vai se desenrolando. A mecânica envolve um rolamento de d20, soma ou subtração de valores e a tentativa de chegar a um número alvo. Tudo é simples e ágil tornando os combates ligeiros e mortais. 

Armaduras ajudam a diminuir o dano e permitem a sobrevivência do personagem atingido ou ferido. No entanto todas armas e proteções são passíveis de desgaste que com o tempo vai torná-las inúteis. É interessante portanto mandar consertar o equipamento entre uma aventura e outra para evitar surpresas desagradáveis. Os sucessos críticos são devastadores permitindo infligir maior dano ou contra-atacar se a defesa é especialmente bem sucedida. Vale lembrar que os Pontos de Vida são poucos e que um ataque bem sucedido pode reduzir os pontos a zero o que causa um problema físico duradouro. Se os pontos caírem a negativo o personagem está morto. 

Para ajudar na sobrevivência do grupo felizmente existe a Sorte dos Diabos. Cada Classe recebe uma quantidade diferente dessa habilidade heroica. Os pontos podem ser gastos para infligir o máximo de dano possível em um ataque bem sucedido, para rolar novamente um teste em que se falhou, diminuir dificuldade, neutralizar um dano crítico sofrido ou mais corriqueiramente diminuir o dano para permitir ao seu pirata sobreviver a um ataque potencialmente mortal. A Sorte dos Diabos é a habilidade que permite aos heróis sobreviver enquanto os coadjuvantes tombam ao seu redor, mas quando ela acabar as coisas podem ficar muito feias.

Os Personagens também podem ter acesso a Rituais Arcanos estranhos e com efeitos inesperados que permitem conjurar animais espectrais, aterrorizar pessoas e fazer com que elas se afoguem com água salgada em seus pulmões. Existem Rituais Arcanos realmente desagradáveis ​​na lista. Por exemplo, a "Marca Negra", literalmente marca o alvo para morrer, enquanto "Liberte o Kraken" invoca uma monstruosidade marinha de proporções colossais. Se um Personagem falha ao realizar um ritual precisará fazer um rolamento numa tabela de revés mágico. Nesse caso, espere um efeito adverso indesejado. Outras modalidades de magia em Pirate Borg incluem tabelas que lidam com alquimia e uma lista de Relíquias Antigas pra lá de esquisitas, como a "Concha do Abismo", que permite ao portador fazer uma pergunta a um cadáver ou "Escamas de Sereia" que, quando engolidas concedem a habilidade de respirar debaixo d'água por algumas horas.

Sendo esse um RPG de pirataria não faltam regras para navios e combate naval. Cada embarcação possui uma identidade propria, com habilidades assim como personagens. Elas tem atributos como Integridade, Casco, Velocidade, Velas, Armas Pequenas, Aríete, Tripulação e Carga. A Integridade são os Pontos de Vida  do navio e da tripulação; Casco, é sua armadura; Velocidade o seu deslocamento em alto mar, Velas a capacidade de responder às condições climáticas, Armas Pequenas, o dano causado por armas leves e mosquetes; Aríete, o dano causado em uma ação de investida; e Tripulação, o número mínimo e máximo de membros que o navio pode transportar. O combate naval é conduzido em rodadas de trinta segundos, e nesse tempo, o capitão move o navio, os Personagens Jogadores realizam ações, e a Tripulação cumpre ordens como "Disparar", "Encher as Velas", "Preparar Abordagem" e assim por diante. É possível melhorar o navio com bônus proveniente de oficiais qualificados contratados para a função: Capitão, Contramestre, Feiticeiro ou Sacerdote de Convés, sao apenas algumas opções. As regras cobrem habilidade da tripulação, a moral, a carga levada, os reparos e, opcionalmente o clima. Ironicamente o que sobra em simplicidade no combate normal, tornasse meio complexo na batalha naval.

Uma seção anterior fornece uma lista de "canções de marinheiro" para elevar o moral da tripulação e ganhar benefícios condizentes. Além de tabelas para destroços e restos, encontros e eventos náuticos, há uma grande variedade de embarcações que vão de simples jangadas, botes e canoas a galeões, navios de guerra e vasos navais de linha. Somado a isso estão imensas fortalezas, navios fantasma, uma embarcação toda coberta de ossos e outra trazida das profundezas para navegar uma vez mais. A lista é bem interessante e abrangente concedendo várias opções ao narrador.

O bestiário é dividido em sessões sobre criaturas e animais típicos do Caribe Escuro. Somado a isso temos os mortos vivos que possuem um papel destacado, como os oponentes principais da ambientação. Temos esqueletos e zumbis de vários tipos específicos, fantasmas, espectros, vampiro e até Liches. Não faltam também animais mortos vivos e abominações. Os Mythos de Cthulhu estao representados na forma dos abissais, dos Shoggoth e outros seres multitentaculares.

De um modo geral, o livro fornece uma boa quantidade e qualidade de bestas e feras para serem incorporadas às aventuras, uma ótima seleção de criaturas, altamente temática e divertida.

Além de tabelas para gerar navios aleatórios, mapas de tesouros, enigmas, ilhas desconhecidas, trabalhos e missões, Pirate Borg inclui um mini cenário sandbox para os Personagens explorarem. Com o sugestivo nome "A Maldição do Pontal do Esqueleto" a história descreve uma típica ilha do Caribe Escuro, seus principais locais e NPCs importantes, ameaças e ganchos. A trama central envolve o desaparecimento da filha do governador local e uma recompensa para quem encontrá-la e devolvê-la em segurança. Mas é claro, as coisas não são tão simples pois há lugares assombrados, lendas, grupos interessados no que acontece na ilha e é claro, a tal Maldição do título. Cada localidade da Ilha, de Coral Town, ao antigo farol, passando por um castelo assombrado e o covil de uma bruxa no pântano são descritos detalhadamente para poderem ser usados. Há ainda masmorras para explorar e lugares para conhecer, o que torna "Pontal do Esqueleto" uma bela campanha introdutória. 

Fisicamente, Pirate Borg é um livro compacto e bastante completo. Ele possui uma miscelânea de tabelas e opções que podem ser deixadas ao alcance dos olhos para referencia. Como acontece em outros títulos Borg, a disposição do texto é o layout é um pouco caótico com fontes variadas e caixas de texto que lembram uma colagem. Pode levar um tempo para se familiarizar com esse estilo, mas não é nada comprometedor. Embora haja um índice, um segundo, dedicado às muitas tabelas do livro, teria sido bastante útil. Eu gostei da arte simples que casa muito bem com a ambientação. 

O livro não oferece um capítulo a respeito de conselhos para o Mestre do Jogo, ou qualquer coisa nesse sentido. Para alguns mestres menos experientes isso poderia ser útil. De toda forma, Pirate Borg é uma ambientação bastante aberta e acessível, cujo gênero será familiar para a maioria que assistiu a franquia de sucesso Piratas do Caribe. Ela não depende de prévio conhecimento historico da Era de Ouro da Pirataria embora isso possa conceder maior profundidade ao jogo. 

Pirate Borg é mais "simpático" do que Mork Borg, no sentido de que há mais espaço para ação, exploração e sucesso nas missões. Ainda que o Apocalipse esteja ali adiante, ele não paira sobre eles feito uma nuvem negra lembrando que tudo é em vão - como ocorre em Mork Borg.

Pirate Borg não é apenas fácil de jogar, mas também fácil de entender, o que o torna uma ótima opção para jogadores iniciantes. Como ambientação ele oferece suporte a tudo o que um mestre precisará para construir uma boa história de Pirataria e Horror num Caribe fantástico.

Não há previsão para seu lançamento em português, mas com o recente sucesso do Financiamento Coletivo de Mork Borg, é possível que vejamos esse livro em breve aportando em terras brasileiras. Vamos torcer, sem dúvida seria um ótimo título.