Eles vieram pela liberdade do Novo Mundo. Vieram pela riqueza do clima e pela beleza das ilhas. Eles vieram pelo saque dos grandes navios transportando lingotes de prata roubada das Américas e levada para a metrópole espanhola. Às vezes, eles recebiam permissão para atacar e roubar navios. Em outras, eles eram perseguidos pelos mares como criminosos comuns e quando pegos, enforcados até o último homem. Era uma vida de ação, emoção e aventura!
Então veio o Flagelo.
Os corpos de marinheiros mortos começaram a levantar e andar, fantasmas daqueles expulsos de seus lares ancestrais, esqueletos cobertos de alga e limo marinho, zumbis apodrecidos e monstruosidades nascidas nas profundezas. Esses horrores visitaram as cidades e vilarejos trazendo consigo loucura, morte e deixando um rastro de destruição. Os sobreviventes fortificaram as muralhas, fecharam os portos e municiaram os canhões. A batalha pela sobrevivência contra as hordas de mortos vivos foi feroz.
No fim, restaram os fortes, os bravos e aqueles que estavam dispostos a qualquer coisa para sobreviver.
Em meio a esse pesadelo, a mais estranha descoberta foi feita! As cinzas desses cadáveres inquietos, quando queimadas e moídas criavam uma substância rara. Uma vez consumida, ela podia debilitar e destruir corpo e mente, tornando seu utilizador um escravo do vício, mas havia um outro lado. Ela também permitia alcançar milagres inenarráveis: era possível despertar sentidos adormecidos, obter poderes inimagináveis e até mesmo se tornar consciente do universo. Eles chamaram isso de ASH (cinza), uma droga vendida por uma fortuna e que estabeleceu seu próprio mercado negro, causando discórdia e conflito em toda a região.
A fonte mais notória de ASH é a Cidade murada de Nassau. Nas ruínas da outrora orgulhosa capital de New Providence, agora existe um gueto de madeira e tendas de lona que abriga os Irmãos da Costa - piratas, rebeldes, ladrões e vagabundos. Eles são aqueles que sobreviveram ao Flagelo e que aprenderam a conviver com ele. Eles não são heróis, são a pior escória que já navegou os sete mares.
Após o Flagelo o contato com o velho mundo ficou comprometido. Não existe rota segura para a Europa ainda que alguns façam a arriscada travessia. Lord Hamilton, governador da colônia britânica da Jamaica, passou a empregar tripulações piratas para proteger os interesses ingleses. Mas há grande rivalidade e facções cujos agendas colidem de forma violenta. A poderosa Companhia das Índias Ocidentais mantém seus grandes mercantes singrando os mares, escoltados por navios cheios de canhões e mercenários. As Índias Francesas caíram na indolência e na incompetência, dominada por sindicatos criminosos cruéis e cultistas vis. Já o Vice-Reino da Nova Espanha, com capital em La Habana, enriqueceu com o transporte de prata e ash, mas treme sob o olhar atento dos fanáticos da Inquisição. Cada nação dirige seus olhos ávidos e estende sua mão cobiçosa para espremer até a última moeda do novo mundo.
Nas tavernas há boatos sobre cidades perdidas de ouro engolidas pela selva. Lendas sobre mapas que levam até tesouros ocultos e riqueza jamais sonhada. Os ambiciosos arriscam suas vidas em expedições à Península de Yucatán e a Flórida; mergulham nas florestas escuras repletas de doenças, nativos hostis e horrores desconhecidos. Buscam por templos em ruína repletos de jóias que comprariam a alma de mil homens. Por vezes alguém fica rico alimentando o sonho, mas a grande maioria jamais retorna.
Em todo canto, em cada viela e beco sórdido, cultistas espreitam, adorando seus deuses imundos, os Grandes Antigos, conforme descrito nas páginas terríveis do Necronomicon. Eles saúdam seu tenebroso Profeta - O Deus Afogado. A cada Solstício conduzem festivais e orgias para celebrar o Flagelo ansiando para que "O Fim dos Dias" chegue de uma vez. Quando as bestas das profundezas virão ao mundo dos homens para arrastá-los até o Abismo. E quem é capaz de dizer que esse dia não está cada vez mais próximo?
Bem-vindo, marujo, ao Caribe Sombrio!
O Caribe Sombrio é o cenário de Pirate Borg. Publicado pela Limithron por intermédio da Free League após uma campanha bem-sucedida no Kickstarter, a ambientação é baseado em Mörk Borg, o RPG sueco estilo Old School Renaissance. Mörk Borg é notório por seu estilo e layout Artpunk, com cores vibrantes e arte bizarra que cria uma identidade própria.
Pirate Borg tem uma apresentação menos agressiva com cores e layout mais suaves, mas isso não significa que esse seja um livro convencional. Ele é inegavelmente um derivado à altura do selo BÖRG transbordando com violência, bizarrice e muito gore. É algo que você não espera encontrar num cenário limpinho de D&D ou Pathfinder. Aqui tudo é sujo, doentio e brutal.
Como todos os produtos BORG, espere encontrar muitas tabelas aleatórias e rolamentos para definir características dos personagens. Em Pirate Borg, no entanto isso é levado ao extremo! Quase tudo depende do que os dados (e o destino) ditarem. O livro é recheado de tabelas de informações e listas que são úteis para familiarizar o leitor com o clima caótico do jogo.
Um elemento que Pirate Borg compartilha com Mörk Borg é que ambos são RPGs apocalípticos em que o mundo está escorregando na direção de um fim inevitável. A desgraça paira no futuro de todos, não como uma possibilidade, mas como uma certeza. Os habitantes do Caribe Sombrio sabem que tudo está chegando ao fim. Há uma sensação de destruição iminente e desesperança que permeia tudo e todos. O que se pode fazer é viver intensamente antes que tudo acabe. É claro, o Narrador é livre para escolher o que quer usar da ambientação e ignorar o que não agrada, mas a atmosfera é sempre pessimista.
Em Pirate Borg, os Personagens Jogadores são membros de uma tripulação, aventurando-se pelo Caribe Sombrio em busca de fama, riqueza ou algo mais soturno. Cada personagem é definido por uma lista de Habilidades, Classe, equipamento e um delicioso atributo chamado Sorte dos Diabos. As cinco Habilidades são Força, Agilidade, Presença, Resistência e Espírito, cada uma classificada entre "-3" e "+3". Para fazer um rolamento se usa o d20 e se soma o valor da Habilidade, o número alvo geralmente é 12, mas pode variar para mais ou menos. A mecânica é simples, um requisito essencial nesse tipo de narrativa Old School.
Existem seis Classes básicas e mais duas classes opcionais. Cada uma fornece ajustes para Habilidades, Pontos de Vida e Sorte dos Diabos inicial.
O Bruto é um lutador corpo a corpo furioso que obtém uma arma confiável como uma "Âncora de Bronze" ou "Arpão de Chifre". Ele é mestre nessa arma e causa com ela enorme dano e devastação. O Rapscallion é um patife furtivo e cruel, que utiliza um baralho de cartas de onde extrai suas habilidades. Ele começa com uma única especialidade, como por exemplo "Ladrão" ou "Bastardo Furtivo", mas vai acumulando especializações únicas que o tornam um canalha único. Já o "Bucaneiro" é um atirador de elite e caçador de tesouros, além de um rastreador habilidoso. Suas façanhas estão ligadas ao uso de armas de fogo, explosivos e pólvora negra. O Swashbuckler é um lutador impetuoso, que também pode ser um esgrimista e líder tático. Sua língua ferina corta tanto quanto a lâmina de sua espada e suas provocações causam ferimentos profundos. O Zelota é uma espécie de sacerdote com orações de Cura, Maldição e Proteção Sagrada, que são aprendidas aleatoriamente e podem ser lançadas várias vezes ao dia. Ele é a contraparte do Feiticeiro que extrai poder de espíritos sobrenaturais e fantasmas para conjurar magias como Possessão Espiritual, Clarividência e Ressuscitar os Mortos.
As classes opcionais ficam a critério do mestre aceitar o não. A Alma Assombrada é um fantasma, um condutor para espíritos inquietos ou mesmo um zumbi ou esqueleto que reteve sua consciência apesar da morte. Cada modalidade de tormento fornece um benefício e uma penalidade. Por exemplo, espíritos inquietos se comunicam constantemente com o condutor para conceder um Ritual Arcano aleatório que deve ser conjurado antes do amanhecer do dia seguinte ou o condutor sofre dano. Mas isso não é tudo! Ainda é possível personificar uma criatura incomum do Caribe Sombrio, seja uma sereia, um Tritão, um mutante aquático ou um animal com inteligência humana. Embora sejam classes opcionais, elas estão mais para Raças ou Espécies do que realmente ocupações.
Há uma questão de desbalanceamento flagrante aqui, mas o jogo não parece se importar muito com isso! Algumas classes são muito mais poderosas que outras, alguns poderes são bem mais úteis e com efeitos muito maiores. Se você não gosta disso, a atitude do jogo é dizer "azar o seu"! Cabe salientar que essa não é uma ambientação para os aficionados do combo, já que muito do que seu personagem será capaz de fazer será proveniente do que o dado decidiu num rolamento aleatório. Então relaxe e deixe as coisas correrem...
Para criar um personagem, um jogador rola o valor de suas Habilidades, adiciona os modificadores de classe, sorteia o equipamento e a Sorte dos Diabos inicial. O equipamento inclui arma, roupa e um chapéu que define o estilo do personagem. Tabelas adicionais fornecem antecedentes, defeitos, marcas físicas, idiossincrasias, incidentes prévios, condições infelizes e coisas importantes que seu personagem possui. O narrador pode exigir rolamentos nestas tabelas ou permitir que o grupo escolha o que achar mais interessante. O ideal, no entanto é que as tabelas sejam usadas para construir o personagem de maneira mais aleatória possível. Isso é um atrativo extra dentro de Pirate Borg, o fato de nunca saber no que vai resultar seus rolamentos.
Mecanicamente Pirate Borg mantém tudo muito simples e fácil, como acontece com a matriz original, o Mörk Borg. O jogo flui sem grandes preocupações sobre tática e estratégia. É claro, as regras contemplam elementos para adequar o tema de pirataria o que funciona muito bem. Os testes são sempre realizados pelo jogador e o mestre raramente irá encostar nos dados, deixando os personagens atacar e se defender conforme a ação vai se desenrolando. A mecânica envolve um rolamento de d20, soma ou subtração de valores e a tentativa de chegar a um número alvo. Tudo é simples e ágil tornando os combates ligeiros e mortais.
Armaduras ajudam a diminuir o dano e permitem a sobrevivência do personagem atingido ou ferido. No entanto todas armas e proteções são passíveis de desgaste que com o tempo vai torná-las inúteis. É interessante portanto mandar consertar o equipamento entre uma aventura e outra para evitar surpresas desagradáveis. Os sucessos críticos são devastadores permitindo infligir maior dano ou contra-atacar se a defesa é especialmente bem sucedida. Vale lembrar que os Pontos de Vida são poucos e que um ataque bem sucedido pode reduzir os pontos a zero o que causa um problema físico duradouro. Se os pontos caírem a negativo o personagem está morto.
Para ajudar na sobrevivência do grupo felizmente existe a Sorte dos Diabos. Cada Classe recebe uma quantidade diferente dessa habilidade heroica. Os pontos podem ser gastos para infligir o máximo de dano possível em um ataque bem sucedido, para rolar novamente um teste em que se falhou, diminuir dificuldade, neutralizar um dano crítico sofrido ou mais corriqueiramente diminuir o dano para permitir ao seu pirata sobreviver a um ataque potencialmente mortal. A Sorte dos Diabos é a habilidade que permite aos heróis sobreviver enquanto os coadjuvantes tombam ao seu redor, mas quando ela acabar as coisas podem ficar muito feias.
Os Personagens também podem ter acesso a Rituais Arcanos estranhos e com efeitos inesperados que permitem conjurar animais espectrais, aterrorizar pessoas e fazer com que elas se afoguem com água salgada em seus pulmões. Existem Rituais Arcanos realmente desagradáveis na lista. Por exemplo, a "Marca Negra", literalmente marca o alvo para morrer, enquanto "Liberte o Kraken" invoca uma monstruosidade marinha de proporções colossais. Se um Personagem falha ao realizar um ritual precisará fazer um rolamento numa tabela de revés mágico. Nesse caso, espere um efeito adverso indesejado. Outras modalidades de magia em Pirate Borg incluem tabelas que lidam com alquimia e uma lista de Relíquias Antigas pra lá de esquisitas, como a "Concha do Abismo", que permite ao portador fazer uma pergunta a um cadáver ou "Escamas de Sereia" que, quando engolidas concedem a habilidade de respirar debaixo d'água por algumas horas.
Sendo esse um RPG de pirataria não faltam regras para navios e combate naval. Cada embarcação possui uma identidade propria, com habilidades assim como personagens. Elas tem atributos como Integridade, Casco, Velocidade, Velas, Armas Pequenas, Aríete, Tripulação e Carga. A Integridade são os Pontos de Vida do navio e da tripulação; Casco, é sua armadura; Velocidade o seu deslocamento em alto mar, Velas a capacidade de responder às condições climáticas, Armas Pequenas, o dano causado por armas leves e mosquetes; Aríete, o dano causado em uma ação de investida; e Tripulação, o número mínimo e máximo de membros que o navio pode transportar. O combate naval é conduzido em rodadas de trinta segundos, e nesse tempo, o capitão move o navio, os Personagens Jogadores realizam ações, e a Tripulação cumpre ordens como "Disparar", "Encher as Velas", "Preparar Abordagem" e assim por diante. É possível melhorar o navio com bônus proveniente de oficiais qualificados contratados para a função: Capitão, Contramestre, Feiticeiro ou Sacerdote de Convés, sao apenas algumas opções. As regras cobrem habilidade da tripulação, a moral, a carga levada, os reparos e, opcionalmente o clima. Ironicamente o que sobra em simplicidade no combate normal, tornasse meio complexo na batalha naval.
Uma seção anterior fornece uma lista de "canções de marinheiro" para elevar o moral da tripulação e ganhar benefícios condizentes. Além de tabelas para destroços e restos, encontros e eventos náuticos, há uma grande variedade de embarcações que vão de simples jangadas, botes e canoas a galeões, navios de guerra e vasos navais de linha. Somado a isso estão imensas fortalezas, navios fantasma, uma embarcação toda coberta de ossos e outra trazida das profundezas para navegar uma vez mais. A lista é bem interessante e abrangente concedendo várias opções ao narrador.
O bestiário é dividido em sessões sobre criaturas e animais típicos do Caribe Escuro. Somado a isso temos os mortos vivos que possuem um papel destacado, como os oponentes principais da ambientação. Temos esqueletos e zumbis de vários tipos específicos, fantasmas, espectros, vampiro e até Liches. Não faltam também animais mortos vivos e abominações. Os Mythos de Cthulhu estao representados na forma dos abissais, dos Shoggoth e outros seres multitentaculares.
De um modo geral, o livro fornece uma boa quantidade e qualidade de bestas e feras para serem incorporadas às aventuras, uma ótima seleção de criaturas, altamente temática e divertida.
Além de tabelas para gerar navios aleatórios, mapas de tesouros, enigmas, ilhas desconhecidas, trabalhos e missões, Pirate Borg inclui um mini cenário sandbox para os Personagens explorarem. Com o sugestivo nome "A Maldição do Pontal do Esqueleto" a história descreve uma típica ilha do Caribe Escuro, seus principais locais e NPCs importantes, ameaças e ganchos. A trama central envolve o desaparecimento da filha do governador local e uma recompensa para quem encontrá-la e devolvê-la em segurança. Mas é claro, as coisas não são tão simples pois há lugares assombrados, lendas, grupos interessados no que acontece na ilha e é claro, a tal Maldição do título. Cada localidade da Ilha, de Coral Town, ao antigo farol, passando por um castelo assombrado e o covil de uma bruxa no pântano são descritos detalhadamente para poderem ser usados. Há ainda masmorras para explorar e lugares para conhecer, o que torna "Pontal do Esqueleto" uma bela campanha introdutória.
Fisicamente, Pirate Borg é um livro compacto e bastante completo. Ele possui uma miscelânea de tabelas e opções que podem ser deixadas ao alcance dos olhos para referencia. Como acontece em outros títulos Borg, a disposição do texto é o layout é um pouco caótico com fontes variadas e caixas de texto que lembram uma colagem. Pode levar um tempo para se familiarizar com esse estilo, mas não é nada comprometedor. Embora haja um índice, um segundo, dedicado às muitas tabelas do livro, teria sido bastante útil. Eu gostei da arte simples que casa muito bem com a ambientação.
O livro não oferece um capítulo a respeito de conselhos para o Mestre do Jogo, ou qualquer coisa nesse sentido. Para alguns mestres menos experientes isso poderia ser útil. De toda forma, Pirate Borg é uma ambientação bastante aberta e acessível, cujo gênero será familiar para a maioria que assistiu a franquia de sucesso Piratas do Caribe. Ela não depende de prévio conhecimento historico da Era de Ouro da Pirataria embora isso possa conceder maior profundidade ao jogo.
Pirate Borg é mais "simpático" do que Mork Borg, no sentido de que há mais espaço para ação, exploração e sucesso nas missões. Ainda que o Apocalipse esteja ali adiante, ele não paira sobre eles feito uma nuvem negra lembrando que tudo é em vão - como ocorre em Mork Borg.
Pirate Borg não é apenas fácil de jogar, mas também fácil de entender, o que o torna uma ótima opção para jogadores iniciantes. Como ambientação ele oferece suporte a tudo o que um mestre precisará para construir uma boa história de Pirataria e Horror num Caribe fantástico.
Não há previsão para seu lançamento em português, mas com o recente sucesso do Financiamento Coletivo de Mork Borg, é possível que vejamos esse livro em breve aportando em terras brasileiras. Vamos torcer, sem dúvida seria um ótimo título.
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