quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Vampirismo 101 - Os Mitos e Lendas sobre os mortos vivos

Estudiosos há muitos séculos discutem o mito e o conhecimento que se tem a respeito do vampirismo. Em alguns momentos o propósito é explorar as raízes de nossos medos e de nossas crenças, em outros observar sem preconceito as crenças da antiguidade. Há muitos fatos a respeito do vampirismo.

Por definição o vampiro é um morto-vivo que sobrevive drenando o sangue, a juventude ou a força vital de suas vítimas. O mito do vampirismo pode ser encontrado em inúmeras culturas ao redor do mundo. Para os leigos, o vampiro do Leste Europeu é os mais familiar, em virtude do enorme sucesso do romance Drácula, escrito pelo irlandês Bram Stoker em 1897.

Os vampiros da história e do folclore, se diferem bastante entre si e muitas vezes não se encaixam no estereótipo consagrado pela ficção de romances e filmes. O Drácula de Stoker é um exemplo bem modelado do mito romeno, trazido para os dias atuais. Contudo de modo algum esse modelo se refere a todos os vampiros. Há vampiros bem diferentes ao redor do mundo e os documentos sobre eles são bastante fartos.

Na Europa, o mito é estudado há séculos, e comumente associado a bruxaria e adoração ao diabo. Segundo essas lendas há várias maneiras de um indivíduo morrer e retornar como um vampiro. Exemplos incluem ter sido escomungado, ter sofrido uma morte violenta e inexplicável, ser assassinado em noite de lua cheia, ser um praticante de feitiçaria, adorar o demônio, ser enterrado em local não consagrado, ter sido um lobisomem em vida ou - o mais conhecido - ter sido mordido por um vampiro. Se esses meios de se tornar um vampiro fossem levados em consideração, o mundo estaria superpovoado dessas criaturas.


Para evitar que um indivíduo retorne como vampiro, algumas medidas podiam ser tomadas. De acordo com algumas crenças enterrar o suposto vampiro de bruços no caixão faria com que ele cavasse na direção contrária à superfície, assim evitando dele escapar da sepultura. Da mesma forma, algumas crenças levavam os supersticiosos a amarrar os cadáveres ou depositá-los em caixões de metal, tudo com o objetivo de impedir o vampiro de voltar. Alguns rumores no passado afirmavam que vampiros eram compelidos a desatar nós, por isso cadáveres suspeitos eram enterrados com intermináveis tramas repletas de laços.

Uma imagem bastante conhecida e evocada é a de um crânio com um bloco de pedra enfiado boca, uma forma de exorcizar um vampiro após ser enterrado. Em toda Europa foram descobertos restos humanos sepultados em cemitérios que receberam esse tratamento, o que confirma ser a crença em vampiros mais difundida entre os antigos do que se imaginava.
 
A maneira mais drástica, e segundo alguns, eficaz de eliminar o perigo do vampirismo era decapitar ou desmembrar o cadáver. Afinal como um vampiro andaria por aí em pedaços? Remover cabeças era uma das atribuições de coveiros em áreas rurais da França na Idade Média. Outra forma de se livrar do problema era queimar o cadáver até restar apenas cinzas. Finalmente um suposto vampiro poderia ser eliminado com uma afiada estaca de madeira trespassando seu coração.

Esses métodos não eram de modo algum incomuns na Europa medieval. O temor do sobrenatural por vezes superava a tristeza dos amigos e dos próprios parentes do falecido. Garantir a segurança e o descanso eterno era preferível à ter de lidar com uma visita noturna indesejável.

Encontrar um vampiro não era nada fácil. O primeiro sinal da ação de vampiros segundo o senso comum medieval eram epidemias misteriosas que matavam pessoas da noite para o dia. Em tais casos a culpa era reputada a um vampiro, jamais a micro-organismos nocivos ou a condições de vida insalubres.


Na eminência de uma praga de vampirismo cemitérios eram vasculhados em busca de evidências. Lápides viradas, buracos escavados ou solo remexido eram sinais clássicos da presença de mortos vivos. Por vezes esses indícios eram suficientes para fazer com que parte da população deixasse suas casas e fugisse assustada, carregando consigo boatos sobre a existência de mortos vivos.

Destruir um vampiro era um desafio que apenas os mais intrépidos indivíduos eram capazes de realizar. Alguns heróis dotados de notáveis habilidades ganhavam a vida, durante a Idade Média até a Renascença, viajando de cidade em cidade lidando com vampiros. Alguns eram responsáveis por plantar os indícios que encontravam, mas haviam aqueles que se dedicavam realmente a esse serviço.

O método para despachar vampiros dependia muito da região em que se vivia. Em algumas áreas da Europa Oriental o vampiro podia ser morto com um tiro certeiro no coração. Alguns faziam a ressalva de que a bala deveria ser de prata. Muitas lendas afirmavam que uma estaca afiada no coração podia destruir o morto-vivo de uma vez por todas. Logo surgiram variantes dessa crença, algumas afirmando que apenas alguns tipos de madeira eram verdadeiramente eficazes e que um vampiro assim ferido não morria, apenas ficava paralizado. Para completar o serviço, o vampiro estacado tinha de ser decapitado. Para alguns ele então se transformava em cinzas. Logo falou-se a respeito da maneira mais correta de se livrar dessas cinzas e então nasceu a crença de que as cinzas tinham de ser dispersas na água de um rio, desde que é claro fosse um rio de água corrente.

Matar vampiros como se pode ver era algo complicado e não é à toa que a presença de um exterminador especializado se fazia necessária.


O fogo sempre foi uma arma importante contra os mortos-vivos, uma forma de queimar etapas (desculpe o trocadilho!) e transformar a criatura direto em cinzas. Na Idade Média, cremar cadáveres era visto com maus olhos pela Igreja Católica, tratava-se de um costume pagão afinal de contas, mas algumas autoridades faziam vista grossa para a prática, desde que o vampiro fosse eliminado e todos ficassem felizes.

Objetos sagrados (água benta, crucifixos, rosários e hóstias consagradas) também passaram a fazer parte do arsenal dos caçadores de vampiros medievais. O toque do vampiro em um objeto consagrado tinha um efeito fulminante: cruzes deixavam cicatrizes e água benta queimava como ácido. Talvez essa tenha sido uma contribuição da Igreja interessada em participar da erradicação desse mau. Regalia consagrada podia afinal de contas ser vendida para os supersticiosos.

A crença de que alho poderia afugentar vampiros é comum no mito grego do vampirismo. O alho sempre teve qualidades terapeuticas purificadoras. No mito grego, vampirismo é uma doença, portanto um remédio natural poderia eliminá-la. Rosas também seriam capazes de eliminar vampiros ou ao menos detectá-los pois na sua presença as flores perdem o viço e murcham rapidamente.

A luz do sol foi um acréscimo victoriano ao mito. Vampiros até então podiam andar incólumes à luz do sol, embora estivessem no pico de suas capacidades apenas à noite. O dia exauria suas capacidades sobrenaturais deixando-os enfraquecidos. O sol se converteu numa arma apenas a partir de Drácula.

Vampiros segundo o mito consagrado possuem uma vasta gama de poderes. Além da óbvia vantagem da imortalidade, muitos vampiros eram capazes de alterar sua aparência física transformando-se em animais. Cães, gatos, lobos, morcegos e ratos são os exemplos mais comuns, mas há lendas de vampiros adotando a forma de aves de rapina, tigres e até mesmo ursos. Vampiros também seriam capazes de controlar animais despertando neles selvageria e devoção. No mito corrente, vampiros possuem legiões de animais selvagens ao seu dispor, como "as crianças da noite" de Drácula.


A transformação em outros objetos e em névoa também faz parte do mito. Vampiros que se tornam árvores são comuns no mito nos países baixos. A transformação em névoa está presente na Europa Central.

Assim como alguns vampiros exercem controle sobre animais, há lendas que descrevem mortos vivos capazes de impor sua vontade à seres humanos. Eles podiam assim influenciar o comportamento das pessoas forçando-as a atos contra sua natureza, o que vinha a calhar como desculpa diante de flagrantes de lascívia. "O Vampiro me obrigou a fazer!" poderia ser uma boa desculpa para eximir uma dama de uma conduta imprópria.

Vampiros com força e rapidez sobre-humana são incrivelmente comuns no folclore mundial. Essas criaturas teriam capacidades físicas ampliadas pelo dom sobrenatural. Vampiros seriam capazes de enfrentar vários homens ao mesmo tempo com as mãos nuas. Ferir um vampiro, segundo o mito, sempre foi complicado, esses seres não podiam ser machucados visto que já estavam mortos, assim como seus órgãos, carne e sangue, portanto nada disso parecia fazer falta com exceção do coração e da cabeça. O mito na Pérsia fala de mortos vivos trespassados por espadas e com ferimentos mortais em todo o copo, não obstante, lutando e matando movidos pela sede de sangue.

Ao contrário dos vampiros atuais que são vistos como criaturas charmosas e fascinantes, os vampiros do passado eram terríveis e assustadores. Não havia nada de atraente em mortos vivos muito mais próximos de bestas sanguinárias do que de nobres vindos de terras exóticas. Vampiros eram retratados como seres imundos, cruéis e imorais. Desejar ser mordido por um deles é algo muito recente em nossa sociedade.


Estudiosos tem uma série de explicações a respeito da histeria que varreu a Europa durante a Idade Média até o Renascimento. Alguns afirmam que o crescimento de casos de vampirismo nessa época está ligado diretamente a epidemias de doenças como a tuberculose e cólera. Essas doenças além de agir rapidamente faziam com que as vítimas parecessem ter a vida drenada de seus corpos.

Para alguns pesquisadores, a falta de conhecimento médico também levava a conclusões erradas e a enterros prematuros. Alguns desses indivíduos, enterrados enquanto em choque ou em coma, acabavam se recuperando e escapando de suas sepulturas, apenas para serem vistos vagando uma vez mais. O resultado direto disso poderia ser uma turba supersticiosa disposta a linchar o "morto vivo".

Vampiros povoam o inconsciente coletivo há séculos e continuam fascinando e aterrorizando. O mito se reinventa de tempos em tempos, ganhando fôlego e mostrando uma vitalidade que o torna virtualmente imortal.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Perseguindo Sombras - Os 100 anos e o legado imortal de Nosferatu


Para muitos fãs de horror, o filme Nosferatu de Robert Eggers é o filme mais esperado do ano, talvez, até mesmo da década até aqui. Ele teve uma história conturbada com muitos trancos e barrancos ao longo do caminho antes de finalmente chegar às telas após quase uma década em produção. 

Sem dúvida, há muito em jogo e esse é um legado difícil de seguir dada a importância das obras que o antecederam, mas se o burburinho pré-lançamento servir como indicativo, o filme deve exceder as expectativas monumentais ao seu redor.

A história de Nosferatu remonta a mais de cem anos e é um dos maiores e mais consistentes legados de terror no cinema. Ostensivamente ele reconta a trama clássica de Drácula, mas com fundamentos muito mais sinistros do que a maioria das histórias "oficiais" do vampiro mais famoso de todos os tempos. Nosferatu em todas as suas formas se inclina para as ideias de peste, desespero e ocultismo com imagens que estão entre as mais perturbadoras de todo gênero Terror. 

Vamos falar um pouco de cada uma dessas encarnações do terrível Conde Orlock nas telas:

Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror (1922)

Embora o filme original tenha sido atribuído ao brilhante diretor alemão F.W. Murnau, a verdadeira força motriz por trás de Nosferatu: Eine Symphonie des Gauens foi seu produtor/diretor de arte Albin Grau. A grande historiadora do cinema expressionista alemão Lotte H. Eisner descreveu Grau como um "espiritualista ardente", mas hoje podemos muito bem chamá-lo de ocultista devoto. Ele viu imediatamente o potencial cinematográfico de Drácula de Bram Stoker, mas não tinha, nem ele e nem sua pequena produtora, a Prana-Film recursos suficientes para adquirir os direitos sobre o romance. Sendo assim, ele, junto com o roteirista Henrik Galeen, elaborou um roteiro que eles acreditaram poderia escapar despercebido do olhar atento da viúva de Stoker, Florance. 

O roteiro alterou os nomes e os locais do romance, mantendo sua estrutura básica. Jonathan Harker se tornou Hutter, Mina se tornou Ellen, Van Helsing se tornou Professor Bulwer, Renfield se tornou Knock e Drácula se tornou Conde Orlok. A ação principal foi traduzida da Inglaterra para a cidade de Wisborg, Alemanha. Na verdade, todo o romance complicado é simplificado para três cenários principais: o Castelo na Transilvânia onde Orlok vivia, o navio que o leva até Wisborg e a pequena cidade alemã em si. São três ambientes distintos que reúnem o início, meio e fim da trama.

O que dá a Nosferatu seu caráter singular são os muitos desvios do material de origem. Embora as raízes da história original ainda sejam identificáveis, ela ganha um caráter diverso pelas referências visuais únicas. Isso é percebido mais claramente no visual macabro do Conde Orlok, uma aparência única e diferente do idealizado por Bran Stoker em seu romance. É bem provável que a forma tétrica do conde tenha sido projetada por Grau, como implícito em seus desenhos de pré-produção. Seu vampiro não tem nada de charmoso, belo ou atraente - pelo cntrário, ele é monstruoso até a última fibra de seu ser. Grau muito acertadamente escolheu destacar as características físicas do ator Max Schreck usando maquiagem e próteses, dando destaque a sua cabeça calva e concedendo a ele dentes afiados localizados centralmente em sua boca. O resultado final é assustador, o vampiro ganhou uma aparência única de morcego ou rato que ressaltou os temas de peste do filme. 

Assim como no remake de Egger, o Nosferatu de Murnau estava a apenas quatro anos do auge de uma pandemia global que ceifou milhões em todo o mundo. As pessoas ainda se recuperavam de suas perdas e  filme ganhava dimensão ao acessar esse drama recente. Justa ou injustamente, o rato serviu como símbolo da peste por séculos, graças ao seu papel na disseminação da peste bubônica por toda a Europa medieval. Em retrospectiva, a praga de ratos também pode ser interpretada como uma indicação do clima político e social da Alemanha sob a República de Weimar, que governou a nação do fim da Primeira Guerra Mundial até 1933, como sendo solo fértil para ideias pestilentas se consolidarem. Isso, é claro, se concretizou na ascensão de Hitler e do partido nazista, apenas onze anos após o lançamento de Nosferatu.

Hoje, o filme é corretamente considerado uma obra-prima e F.W. Murnau, em grande parte por causa de Nosferatu, foi declarado por Lotte Eisner como "o maior diretor de cinema que os alemães já conheceram". A direção de Murnau, juntamente com a brilhante cinematografia de Fritz Arno Wagner, infundiu Nosferatu com algumas das imagens mais inesquecíveis de toda a história do cinema. O surgimento de Orlok de seu caixão a bordo do navio, sua sombra subindo a escada para o quarto de Ellen (Greta Schröder) antes de se estender pela porta da câmara, Orlok agarrado às molduras das janelas de sua casa abandonada. Tudo isso foi tão inovador e surpreendente que marcou um novo e vibrante estilo de filmagem. Não é de se admirar que o filme tenha capturado a imaginação de cinéfilos e cineastas por mais de um século, e é um atestado de sua importância que ele continue tão relevante.  

De certa forma, é quase um milagre que ele continue existindo. Depois que Florence Stoker soube do filme, ela imediatamente processou Grau e Prana-Film. O juiz do caso ordenou que todas as cópias do filme fossem destruídas. Há inclusive a lenda de que um procurador da viúva acabou se ferindo gravemente ao atear fogo em um rolo de filme para garantir sua destruição. Muitas cópias acabaram sendo destruídas, mas grupos clandestinos protegeram cópias que acabaram sendo contrabandeadas para fora do país. Alguns cineastas e proprietários de salas de cinema perceberam a genialidade da obra e tomaram para si a missão de preservá-la. Por muitos anos, ter uma cópia de Nosferatu podeia ser algo perigoso, já que a lei ordenara pesadas multas para quem tivesse a fita em seu poder, ou pior, a exibisse.

Nas décadas de 1930 e 1940, cópias surgiram e desapareceram. No decorrer da Segunda Guerra, algumas apareceram em Londres e foram destruídas, sobretudo por conta do sentimento anti-alemão causado pelo conflito. Contudo alguns bravos cineastas tomaram para si o dever de proteger algumas cópias e graças a eles Nosferatu pôde ser salvo. Surpreendentemente cópias originais aparecem até hoje, em coleções particulares, acervos de filmes ou até em velhos porões de cinemas desativados. Por vezes esses tesouros ocultos da sétima arte trazem cenas adicionais, imagens ou mesmo trechos em melhores condições que acabam sendo incorporados ao filme. Isso concedeu a obra um caráter de morte e renascimento bastante condizente com o tema abordado. 

Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979)

No final dos anos 1970, o diretor Werner Herzog produziu e dirigiu dois filmes consecutivos que eram tentativas de se conectar com o melhor da herança cinematográfica alemã. O primeiro deles foi Nosferatu, o segundo, Woyzeck que começaria a ser filmado apenas cinco dias após Nosferatu ser concluído. Herzog descreveu a experiência como uma forma de se conectar com seus avôs cinematográficos. Ele frequentemente descreveu sua geração de cineastas alemães, que inclui principalmente Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders e ele mesmo, como uma geração sem pais porque eles tinham comprado a cultura nazista ou fugido do país por causa dela. "Como a primeira geração real do pós-guerra, éramos órfãos sem pais com quem aprender"; Herzog contou aos seus biógrafos: "Não tínhamos professores ou mentores ativos, pessoas cujos passos seguir. Isso significava que eram os avôs — Lang, Murnau, Pabst e outros — que se tornaram nossos pontos de referência."

Herzog foi atraído por Nosferatu por várias razões, não menos importante entre elas, seu sentimento de que o filme de Murnau era "o melhor filme alemão de todos os tempos". Ele buscou conexão com seus antepassados ​​criando sua própria versão dele, que ele nunca pensou como um remake. "Ele segue seu próprio caminho com seu próprio espírito e se mantém em seus próprios pés como uma nova versão", disse mais tarde à respeito do filme.

E, de fato, o filme é genuinamente único em comparação ao seu antecessor. Embora ainda incorpore alguns de seus aspectos marcantes, ele consegue certo grau de independência. Quando Herzog decidiu fazer sua versão de Nosferatu, Drácula já havia caído em domínio público há muito tempo. Ele dispensou as armadilhas do filme original que tinha a intenção de velar, ainda que superficialmente, as origens de Nosferatu no romance de Bram Stoker e escolheu chamá-lo de Conde Drácula em vez de Orlok, Hutter mais uma vez se tornou Jonathan Harker (Bruno Ganz), agora casado com Lucy (Isabella Adjani), e Roland Topor interpretou Renfield (e um dos Renfields mais bizarros e hilários da história) em vez de Knock. Os locais, no entanto, mantiveram a semelhança com o filme de Murnau, assim como o visual do vampiro, a ênfase na praga simbolizada por hordas de ratos e a centralidade de Lucy como aquela que detém o poder de destruir o mal que invadiu sua cidade natal.

Os elementos singulares que tornam esse filme algo mais do que mera repetição do original são muitos, mas os mais notáveis ​​têm a ver com o vampiro, a protagonista e a maneira como os locais são capturados no filme. O filme marcou a segunda de cinco colaborações de Herzog com o lendariamente volátil e imprevisível protagonista Klaus Kinski. Herzog o descreveu essa como a sua experiência de trabalho mais agradável. "Durante quase toda a filmagem, Klaus estava feliz e à vontade consigo mesmo e com o mundo, embora ele fizesse birra talvez a cada dois dias." 

Esta foi uma melhoria marcante em relação ao relacionamento deles em Aguirre: a Cólera de Deus (1972), que acabou sendo um mero prenúncio do furacão que estava reservado para eles em Fitzcarraldo (1982). Em Nosferatu, Herzog e Kinski buscaram "humanizar" o vampiro, dando a ele "uma angústia existencial real" que o sugador de sangue sem alma de Schreck não tinha. “Eu queria dotá-lo de sofrimento humano, com um verdadeiro anseio por amor e, mais importante, a única capacidade essencial dos seres humanos: a mortalidade”, disse Herzog, “Ele estava profundamente amargurado com a solidão e incapacidade de se juntar ao resto da humanidade.”

De muitas maneiras, o Nosferatu de Herzog deu origem aos vampiros com crises existenciais e questionamentos sobre o que eles haviam se tornado e como enxergavam um mundo que não era mais o deles. Essa linha dramática foi posteriormente explorada por inúmeros autores e diretores e serviu para oxigenar o mito dos vampiros concedendo a eles nuances que iam muito além do monstro morto-vivo.

A Lucy, de Adjani, também tem mais o que fazer do que a Ellen, de Schröder, e tem muita diligência no filme. Numa das cenas mais marcantes ela se encontra no meio da praça da cidade enquanto dezenas de caixões passam por ela nos ombros de homens que os carregam para fora da cidade. Perto dali, homens e mulheres atordoados dançam ao redor de fogueiras alimentadas pelos móveis de casas que ardem. As pessoas não precisam mais de nenhuma dessas meras posses, pois os ocupantes estão todos mortos e os ratos invadem as ruas. É uma imagem surpreendente que evoca o tema da peste, a praga disseminada e a mortalidade humana. 

Outra sequência marcante acontece no início do filme, quando Harker viaja para o Castelo Drácula a pé por paisagens impressionantes e por lugares ermos que ninguém parece ter visto em muito tempo. A sensação de isolamento é sufocante. Este é um dos maiores dons de Herzog como cineasta — ir a lugares que ninguém mais iria para nos mostrar paisagens que nunca foram vistas e posicionar sua câmera de modo que essas paisagens pareçam sobrenaturais. O filme é uma obra de beleza poética infundida com uma sensação constante e implacável de pavor.

A Sombra do Vampiro (2001)

Por mais que eu ame as versões "oficiais" de Nosferatu, e embora esta esteja fora desse reino, Sombra do Vampiro é um dos meus filmes prediletos de vampiros. A premissa do filme é bastante simples: E se o misterioso ator Max Schreck fosse realmente um vampiro? 

A trama oferece uma visão do processo da produção cinematográfica, do método usado para a produção e da natureza da própria arte em si, tudo reunido em rápidos noventa e cinco minutos. É tudo muito "rápido" e "direto ao ponto", mas não soa corrido ou apressado de forma nenhuma. Na verdade, o filme captura muito da estranheza do filme de Murnau, ao mesmo tempo em que é um drama envolvente e um filme muito, muito divertido. 

Produzido pelo astro Nicolas Cage, um entusiasta e fã assumido de vampiros, e dirigido por E. Elias Merhige, que chamou a atenção do produtor com seu filme sombrio e surreal Begotten (1989), Sombra é um casamento perfeito de cineastas e uma obra específica. Assim como Albin Grau, Merhige é fascinado pelo ocultismo e tinha um relacionamento próximo com Werner Herzog na época em que ele fez o filme. Diz a lenda que ele teria oferecido a Herzog o papel de Murnau, mas que este não aceitou apesar da insistência. Dá para imaginar como ele teria atuado, literalmente calçando os sapatos de seu ídolo, mas por outro lado não teríamos uma das grandes atuações de John Malkovich que assumiu o personagem.

Sombra do Vampiro apresenta um dos elencos mais brilhantes já reunidos para um filme desse tipo, incluindo John Malkovich como Murnau, Udo Kier como Grau, Cary Elwes como Wagner, Catherine McCormack como Greta Schröder e Eddie Izzard como Gustav von Wangenhein, que interpretou Hutter em Nosferatu. Todos têm atuações excelentes, mas Willem Dafoe como Max Schreck é nada menos que sensacional. Ele recebeu uma merecida indicação ao Oscar pela sua construção do Conde. 

O cerne do filme se concentra nos esforços que um artista (no caso o diretor) está disposto a fazer para ter sua visão concretizada, não importando os custos para si ou para qualquer outra pessoa. Os cineastas são retratados como cientistas loucos vestindo jalecos e óculos de proteção, uma necessidade na época devido aos resíduos criados pela iluminação. Murnau é regularmente chamado de "Herr Doktor" e esse tipo de Dr. Frankenstein declara repetidamente que fazer filmes é um ato de guerra. "Nossa batalha, nossa luta é criar arte. Nossa arma é o filme", ​​ele diz enquanto a equipe embarca em um trem para seu primeiro local de filmagem. Ao longo do filme a câmera é comparada a uma metralhadora. 

No final, essa versão fictícia da produção de Murnau se torna tão avassaladora que o mundo se torna o artifício e o que é filmado, a única coisa real. Sombra do Vampiro é um filme genial sobre loucura e criatividade.

É também o mais difícil de todos esses filmes de se encontrar. Apesar do elenco de estrelas, d eter sido produzido por um ícone de Hollywood e ser propriedade da Lionsgate e Universal, o filme não está disponível para streaming e permanece preso em um DVD fora de catálogo. Agora, com todo burburinho em torno de Nosferatu, nenhum filme é mais merecedor de um streaming de alta definição e lançamento físico do que esse. Para quem não assistiu, fica a dica, se conseguir colocar as mãos nele, assista.

Sombras e Influência

Vários outros filmes se apropriaram do nome de Nosferatu e o usaram para vários propósitos. 

Klaus Kinski assumiu a responsabilidade de retornar ao seu personagem vampírico, com resultados muito diferentes do filme de Herzog, em "Nosferatu em Veneza", de 1988, dirigido por Augusto Caminito e sobre o qual, quanto menos se falar, melhor. 

Mimesis: Nosferatu (2018) vê um professor do ensino médio, Professor Kinski (Joseph Scott Anthony), montando uma produção teatral de Drácula fortemente influenciada pelo filme de Murnau e estrelando um aluno obcecado por vampiros chamado Michael Morbius (Connor Alexander) no papel principal. O filme contém uma série de easter eggs relacionados a vampiros, incluindo vários nomes inspirados em Fright Night, Salem’s Lot e até mesmo Twilight. Ele também apresenta várias aparições breves de Lance Henriksen como um mentor enigmático criando um culto de vampiros no molde do Conde Orlok de Max Shreck. 

Também lançado nesse mesmo ano, após um longo período de gestação, temos "Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror" estrelando Doug Jones no papel do vampiro. O filme, financiado por uma campanha do Kickstarter, é mais ou menos um remake cena por cena do filme de Murnau com atores modernos inseridos em recriações geradas por computador dos locais e cenários usados ​​no original. Curioso sem dúvida, embora talvez desnecessário.

Talvez ainda mais prevalentes tenham sido os muitos filmes que prestam homenagem ou refletem a influência de Nosferatu para criar vários efeitos — do assustador ao cômico. Em 1979, o mesmo ano do filme de Herzog, a produção televisiva de Tobe Hooper, "Salem's Lot" baseado na obra de Stephen King apresentou Kurt Barlow, uma criatura claramente modelada a partir do Orlok de Max Schreck. Curiosamente o personagem tem muito pouca semelhança com o personagem descrito no livro de King. 

Outras homenagens incluem Ben Fransham como Petyr no filme de mesmo nome lançado em 2014 e uma vez mais Doug Jones como o Barão Afanas na versão televisiva de "O Que Fazemos nas Sombras" (2019). No ano passado, Javier Botet interpretou o vampiro cinza, careca e com orelhas de morcego com grande efeito em "A Última Viagem do Deméter", pelo qual o personagem é creditado como Drácula/Nosferatu. 

O alcance de Nosferatu pode ser encontrado ao longo da história do cinema em personagens tão diversos quanto as formas animalescas dos vampiros em A Hora do Espanto (1985) e The Lost Boys (1987) a várias encarnações do Conde de Gary Oldman em Drácula de Bram Stoker (1992) a Marlow de Danny Huston em 30 Dias de Noite.

Parece provável que a nova versão do filme de Eggers fique ombro a ombro com o longo e imponente legado de Nosferatu. Parece que os fãs de terror estão famintos por uma releitura da versão clássica do mito do vampiro que seja genuinamente perturbadora, até mesmo, ouso dizer, assustadora. Provavelmente, e digo por mim mesmo, talvez seja o momento do vampiro clássico reclamar o status de MONSTRO uma vez mais, e se libertar da figura de criatura amargurada que o acompanha nas últimas décadas. O vampiro surgiu como um horror incompreensível, uma força nefasta de morte e esquecimento, que existe (não vive) para tornara  vida dos mortais um tormento. É para isso que ele foi criado, é para isso que precisa voltar.

Com as inúmeras variações do personagem ao longo dos anos, é revigorante retornar ao básico do porquê essas criaturas invadem nossos sonhos e nossos medos em primeiro lugar. De porque são tão fascinantes e por que o asco que deviam causar se converte em fascínio?

Há uma qualidade primitiva em Nosferatu que é encontrada além das virtudes de Drácula, ele é a fera inumana que não tem romance ou remorso, simplesmente ataca nossos medos mais profundos, sombrios e potentes em busca de sangue.

E é esse o vampiro de que sentimos saudade!

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A Sombra do Vampiro - A estranha carreira do astro de Nosferatu


Seu nome em alemão significava "Terror". Talvez por isso muitas pessoas acreditavam que se tratava de um pseudônimo - com certeza, nenhum artista escolhido para interpretar papéis tão terríveis poderia ter um nome tão sugestivo. Seria muita coincidência! Mas no fim das contas, não era um simples pseudônimo. Alguns então acharam que o homem não era sequer um ator, mas um morto-vivo, idêntico àquele que ele interpretava em filme. Um vampiro!

A lenda persiste há décadas e já deu origem a muitas teses, livros, monografias e até um filme chamado "A Sombra do Vampiro", dirigido pelo alemão E. Elias Merhige. Nele é postulado que o homem por detrás da incrível performance do macabro Conde Orlock, no filme seminal de horror Nosferatu (1922), não seria um ator, mas um vampiro de carne e osso. A postura, a imagem conjurada, a maneira como o ator escolheu interpretar a criatura, tudo aquilo era estranho e convincente demais.

Os próprios colegas e a equipe de produção não sabiam o que pensar do sujeito chamado Max Schreck, o homem que encarnou o primeiro vampiro nas telas do cinema. Ele era estranho, introspectivo, soturno, quieto... não se misturava aos demais, só falava com o diretor usando aquele tom gutural. Não tirava a maquiagem monstruosa e preferia usá-la sempre que estava no set. Não comia com os demais, não comemorava com eles, sequer bebia água e não se relacionava com ninguém fora de cena.


Nascido Friedrich Gustav Max Schreck em 6 de setembro de 1879 na região de Friedenau próximo de Berlin, Alemanha, pouco se sabe a respeito de seus primeiros anos. Os detalhes de sua infância e adolescência são desconhecidos. Há boatos de que ele seria um órfão, abandonado na porta de um teatro de variedades. Para ganhar comida começou a atuar no palco muito jovem. Teria trabalhado nos estranhos espetáculos de Grand Guinol, em que eram encenadas cenas de torturas, horrores e puro terror. Seu papel era de ajudante do torturador, aquele que estendia a ele os bisturis, serras e machados usados para cometer as maiores atrocidades.

Com esse começo humilde, poucos poderiam imaginar que ele se tornaria um ator de respeito. Schreck foi escalado para um papel menor numa peça apresentada no famoso Teatro Municipal de Berlin, onde chamou a atenção de críticos. Era o ano de 1902 e ele havia acabado de completar 22 anos, emergindo como um nome importante na dramaturgia da Alemanha. Não foi nos palcos, entretanto, que ele conquistaria fama, mas em uma nova mídia que estava surgindo no período, o cinema.

Antes Schreck se juntou a uma companhia de prestígio pertencente a Max Reinhardt um dos empresários mais conhecidos no país, responsável pela carreira de estrelas em ascensão. Um dos métodos da companhia de Reinhardt era filmar as performances e depois estudar a postura dos atores. Isso ajudou a familiariza-lo com as câmeras, deixando-o à vontade para atuar diante delas. No começo do século XX, o Cinema Alemão despontava como um dos mais respeitados do mundo. O movimento do Expressionismo estava em seu auge e precisava de talentos como aquele.


Sua estréia no cinema foi com o filme Tambores na Noite, produção do aclamado dramaturgo Bertolt Brecht. Dali ele foi escalado para um papel importante em "Der Richter von Zalamea". O ator magro, muito alto e com olhar expressivo era perfeito para o cinema mudo. Logo ele se tornou uma estrela.

Essas primeiras experiências na tela acabariam por atrair a atenção de um dos mais conhecidos diretores do período, F.W. Murnau, pioneiro do Cinema Expressionista. Murnau estava trabalhando em uma ambiciosa adaptação não oficial da novela de Bram Stoker, Dracula. Faltava no entanto um ator capaz de interpretar o personagem principal da maneira que Murnau desejava: um vampiro convincente. Na visão de Murnau, o Conde não seria um aristocrata ou uma alma nobre, mas um monstro assassino, uma besta que havia abandonado sua natureza humana e abraçado as paixões pelo sangue, pela morte e pelo horror. 

Mas haviam problemas ao adaptar a novela. A viúva de Bram Stoker não estava satisfeita com o roteiro dos alemães e moveu uma ação contra Murnau proibindo-o usar a história de seu falecido marido. A solução foi fazer mudanças drásticas na história, transformando o protagonista Dracula em Orlock, uma criatura das sombras que dificilmente conseguiria se misturar às pessoas sem despertar nelas pavor pela sua aparência grotesca.  

Murnau tinha dificuldade em encontrar o ator ideal para o papel, mas seus problemas terminaram quando ele se deparou com Max Schreck em uma entrevista. Após uma breve conversa, ele ofereceu o papel, mas a princípio o ator demonstrou dúvida: "Se vou fazer esse papel, eu quero liberdade para atuar da maneira que eu achar mais correta", teria dito ao grande diretor. No fim, ele acabou concordando com os termos, acreditando que Schreck seria a melhor opção de protagonista. Schreck exigiu total imersão no papel e estabeleceu uma série de regras que deveriam ser seguidas à risca. Ele seria chamado exclusivamente de Orlock dentro e fora de cena, apareceria apenas maquiado, não iria se relacionar com os colegas atores e sequer quis ser apresentado à eles. 


Seu método era excêntrico para dizer o mínimo! 

O "vampiro" se esgueirava pelos cantos do set de produção, procurando as sombras e ficava ali parado por longos minutos sem dizer uma palavra. Encarava os colegas com uma expressão curiosa como se estivesse analisando seu comportamento e como se tudo aquilo fosse incomum aos seus olhos de vampiro. Quando era chamado para uma cena, assumia a interpretação sem errar uma linha, mas também improvisava, incluindo palavras estranhas que afirmava pertencer ao seu passado. Em dado momento, quando um produtor o chamou de Max, ele se voltou para ele e ameaçou morder sua mão. Em outra ocasião teria capturado um gato preto e brincado com ele, ameaçando mordê-lo para extrair seu sangue, como um vampiro faria. Os assistentes de produção começaram a ficar assustados com aquilo. Alguns não queriam ficar sozinhos com ele. Murnau achava tudo aquilo muito interessante para o filme, a produção estava carregada com uma autêntica aura de medo. 

Outra condição era que ninguém soubesse sua identidade real. Quando atores perguntavam qual era seu nome e ele respondia sem vacilar: Orlock. "Eles me encontraram e me trouxeram aqui para contar minha história" concluía com sua voz monocórdia. Esse método estranho de incorporar o personagem começou a afetar os demais atores em cena que queriam saber quem era o sujeito. Murnau acabou aderindo, afirmando que Orlock era de fato um vampiro, convidado a participar do filme e contar sua história. Ele receberia sangue como pagamento e precisava ter sua privacidade respeitada.


A produção de Nosferatu foi concluída nos lendários estúdios da UFA com uma equipe reduzida de profissionais envolvidos. Alguns atores teriam afirmado estar aliviados com a conclusão das filmagens. Não precisavam mais contracenar com aquele sujeito estranho de aparência cadavérica.

O final das filmagens contudo não significava que a produção chegaria ao público. Nosferatu enfrentou uma tentativa de censura movida por uma Corte Alemã e correu risco de ter as cópias confiscadas e destruídas em face da ação legal movida pela Família Stoker. Murnau conseguiu preservar as cópias e as escondeu em um cofre por algum tempo, ao menos até a situação se acalmar. 

Por conta disso, o filme só chegaria ao público décadas mais tarde quando seria saudado como uma obra de arte e verdadeiro clássico da sétima arte.

Mas o que aconteceu com o estranho Max Schreck?

Ele pediu que seu nome fosse desvinculado de Nosferatu para continuar construindo a mística sobre o personagem principal. Por algum tempo, ninguém sabia quem era o sujeito atrás da maquiagem, e alguns se perguntavam se aquilo era realmente maquiagem ou a face verdadeira de um vampiro que aceitou aparecer no filme. O rumor foi alimentado pelos produtores e todos que trabalharam nas filmagens. Seu nome só foi descoberto após sua morte quando passou a ser associado a Nosferatu.


Ao contrário do que muitos imaginam, Max não se aposentou após seu papel mais marcante. Ele trabalhou em várias outras produções, inclusive com Murnau em 1924, adaptando obras de Brecht em comédias e dramas. Sua carreira sobreviveu até mesmo à introdução do cinema falado, com ele aparecendo em filmes ao longo dos anos 1930.

Após fazer um retorno triunfal aos palcos no papel do Grande Inquisidor na montagem de Don Carlos, Schreck foi levado ao hospital sentindo fortes dores no peito. Ele morreu na manhã seguinte, em fevereiro de 1936, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Foi enterrado em uma sepultura não identificada no cemitério Wilmersdorfer em Berlin.

As pessoas próximas a Max Schreck sempre o consideravam um sujeito estranho e seus contemporâneos o tinham como um excêntrico. Seu senso de humor era ácido e negro ao extremo, chegando ao ponto de fazer brincadeira com temas controversos apenas com o intuito de chocar os ouvintes. Gostava de pregar peças nas quais fingia estar morto e numa ocasião uma ambulância teria sido chamada às pressas para ajudá-lo. Ele foi casado com a atriz Fanny Normann, mas não chegou a ter filhos.

Apesar de sua extensa carreira, Schreck seria sempre lembrado como o sinistro Conde Orlock, especialmente fora de seu país natal postumamente. Seu nome se tornou sinônimo de cinema de horror, algo que ele de fato merecia. Foi ele quem nos deu um dos primeiros monstros do cinema e fez incontáveis pessoas perderem o sono, tudo isso sem dizer uma palavra, simplesmente recorrendo a expressões e olhares. 

Ele pode não ter sido um vampiro de verdade como muitos acreditavam, mas seu legado como Nosferatu e os rumores que seu papel despertou construíram uma lenda que permanece até hoje. 


quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A Caçada a Serpente de Gloucester - O Monstro Marinho que assustou a Costa Leste dos EUA


Pouco mais de 200 anos atrás, a cidade pesqueira de Gloucester, Massachusetts, na costa leste dos Estados Unidos, foi atormentada por uma onda de avistamentos de um insidioso monstro marinho. 

Isso ocorreu ao longo de dois anos e deixou uma marca na historia da cidade e entre os homens do mar que lá viviam. O monstro foi visto repetidas vezes causando estranhamento, apreensão e finalmente terror entre os habitantes locais. Eventualmente, os testemunhos cessaram, e o mistério do que era essa criatura permaneceu sem solução. Atualmente, temos algumas ferramentas à nossa disposição que podem ajudar a identificar o que era essa estranha criatura marinha ou ao menos lançar suposições sobre sua origem.

Glossy, como passou a ser conhecida, foi vista pela primeira vez em março de 1817 por duas mulheres que estavam em terra firme. Elas viram uma longa linha de corcovas se movendo pelo Porto de Gloucester a cerca de 200 metros mar adentro. A criatura era grande, mas não era uma baleia, visto que possuía um corpo sinuoso e longilíneo. Movia-se por baixo da linha d'água de forma elegante vindo à superfície de quando em quando. As duas ficaram apavoradas, correram para chamar marujos, mas quando eles voltaram com elas, a criatura havia desaparecido sob as ondas.

Nem uma semana depois surgiu um segundo relato. A criatura foi vista por uma embarcação de passageiros cuja tripulação teve uma visão privilegiada dela. Vinte e oito pessoas afirmaram ter avistado a criatura de uma distancia não maior do que 70 metros. Os relatos a descreveram como uma espécie de serpente marinha de grande comprimento e dotada de uma linha de de corcovas dorsais. Uma testemunha descreveu-o como "uma corda grossa, dotada de espinhos dorsais e com uma enorme cauda de baleia". Os tripulantes à bordo deixaram claro que não era nada que eles já tivessem visto anteriormente e mesmo os marujos mais experientes se mostraram chocados. Os testemunhos mencionaram 10 corcovas, mas alguns chegaram a contar até 32. Conforme Glossy se movia pela água, as testemunhas afirmaram que ele parecia ondular verticalmente, como um golfinho, em vez de lateralmente, como um peixe. O comprimento de Glossy, a julgar pelas corcovas, foi calculado como algo entre 12 e 36 metros. 


O avistamento causou sensação e artigos foram publicados nos jornais de Boston e de Nova York, estampando com letras garrafais a existência de uma Serpente Marinha no litoral da Nova Inglaterra. Algumas semanas depois, um pesqueiro chamado Mary Elizabeth relatou o avistamento da mesma criatura a cerca de 70 milhas náuticas da costa na direção de Nantucket. O relato é notável pois os pescadores conseguiram ver a criatura de uma distância que lhes permitiu descrevê-la em detalhes: sua cabeça era como a de uma cobra gigante, com olhos redondos com órbitas vítreas de um amarelo pálido e íris alongada negra. Sua cabeça estaria a mais de 2 metros fora da água, erguendo-se desafiadora para o barco de pesca que passou triscando o seu costado na lateral do monstro. Um detalhe notável foi a descrição de uma espécie de chifre pontiagudo despontando na frente de sua cabeça. Sua cor era cinza pálida, branca ou ainda num tom azulado, com escamas que reduziam ao sol. Um dos marinheiros arremessou contra a besta um arpão, mas este simplesmente resvalou em suas escamas sem produzir qualquer ferimento visível.

A experiência da tripulação do Mary Elizabeth chamou a atenção uma vez que seu capitão era um certo Elisha Berek, um experiente lobo do mar, respeitado em Gloucester e tratado como um homem sério e que jamais inventaria uma história tão bizarra. Berek deixou claro o que havia visto e reconheceu que o oceano ainda tinha segredos que mesmo ele, com mais de 25 anos de experiência naval, desconhecia. 

Os jornais de Boston estipularam uma recompensa de 3 mil dólares (o equivalente hoje a 100 mil dólares) para qualquer pessoa que conseguisse matar a criatura e recuperar sua carcaça. A proposta atraiu vários pescadores, baleeiros e arpoadores de toda parte do litoral que convergiram para Gloucester interessados em reclamar a grande recompensa oferecida.   

A criatura, entretanto parece ter se ressentido da súbita exposição e desapareceu misteriosamente frustrando os homens do mar que esquadrinhavam a costa em busca de qualquer sinal do monstro. O recém formado Museu de Vida Marinha de Nova York insistia que a criatura misteriosa deveria ser uma baleia ou qualquer outra espécie de cetáceo desconhecido. Mesmo assim, as buscas prosseguiram, atraindo cada vez mais pessoas para o Porto de Gloucester.


Até esse momento é interessante dizer que a criatura não havia causado danos a embarcações ou marinheiros, mantendo-se apenas como uma curiosidade enigmática. Isso mudaria com a tragédia ocorrida com a tripulação do Hispania, um baleeiro de pequeno porte. Ironicamente a tripulação não estava em busca da criatura quando deixou o porto do Gloucester em meados de junho. Seu objetivo era o abate de baleias azuis que eram atraídas pelas correntes frias da área. Eles teriam avistado a Serpente Marinha por acaso nas imediações de Cape Ann, a uma distância considerável no sentido sul.

O Hispania empreendeu uma perseguição ao monstro, segundo os marujos. Eles dispararam armas de fogo e arremessaram arpões manuais, mas não conseguiram ferir a besta que se afastou deles seguindo para águas mais fundas. A perseguição durou quase 50 minutos, até que o Hispania a perdeu de vista. O capitão ordenou que dois botes à remo fossem descidos para que pudessem aumentar a área de busca. O plano se provou um desastre.

Enquanto realizavam a busca, a tripulação de um dos botes percebeu a movimentação de uma forma grande que se aproximou velozmente. Eles não tiveram a chance de sequer lutar, a criatura rompeu a superfície abalroando o bote com força fazendo os tripulantes caírem na água gelada. Os homens gritaram e tentaram nadar, mas logo um a um foi puxado pela criatura. O único sobrevivente a ser tirado da água foi um pescador chamado John Hudson que afirmou ter visto seus companheiros, um a um, sendo devorados pela fera. O monstro em seguida escapou deixando um saldo de cinco homens desaparecidos.  

Ao retornarem para Gloucester, os marinheiros do Hispania contaram sua sensacional aventura. Hudson se tornou uma celebridade instantânea, concedendo entrevistas e sendo considerado uma espécie de herói pelos outros marujos. Ele perdeu a conta de quantas bebidas os homens do mar pagaram para ouvir sua narrativa heroica.


Mas não demorou muito para a história levantar uma série de dúvidas que colocava toda narrativa sob suspeita. De fato cinco marujos do Hispania haviam desaparecido em alto mar, contudo havia enormes incongruências na história contada pelos que haviam participado da caçada. Alguns homens chegaram a afirmar que não podiam garantir que se tratava de uma Serpente Marinha e achavam mais provável que fosse um grupo de orcas. A narrativa de John Hudson, o único sobrevivente do bote naufragado, que teria "visto a fera cara a cara", adicionava ainda mais dúvidas à história. O marinheiro, dado a exageros sobretudo depois de beber, descreveu a criatura de uma maneira pitoresca: era dotada de uma cabeça semelhante a de um cavalo com uma longa crina. A fera meneava sua cabeça se agitando violentamente, produzindo um som de guincho, relinchar ou ainda o grito potente de uma baleia arpoada.

Embora Hudson e a tripulação tenham recebido grande atenção, não demorou muito até que a maioria das pessoas colocasse a história inteira em dúvida. Vários barcos seguiram para Cape Ann em busca de Glossy e encontraram os destroços do bote e dois cadáveres boiando. Os experientes homens do mar cogitaram que aquilo parecia condizente com o ataque de orcas. A informação foi corroborada quando um grupo desses animais foi avistado e abatido por caçadores. A história dos homens do Hispania começou a cair em contradição, sendo que o próprio John Hudson acabou sendo apunhalado numa taverna depois de uma acalorada discussão. Poucos instantes antes ele havia sido chamado de mentiroso por um marujo local.

Um novo avistamento ocorreria em meados de setembro com um cargueiro de bandeira espanhola cruzando com a criatura em mar aberto a cerca de 300 milhas náuticas de Gloucester. Os tripulantes  descreveram o monstro como uma Serpente Marinha semelhante àquela vista pelas primeiras testemunhas. Eles não tentaram perseguir ou confrontar a criatura, não sabiam do que se tratava e julgaram mais seguro simplesmente observar o monstro se afastar e sumir no horizonte. Houve pelo menos mais uma dúzia de relatos até meados de 1819. Glossy permaneceu sem ser capturado ou identificado. Aos poucos a história foi perdendo interesse por parte da imprensa até ser esquecida fora da área de Gloucester. 

Mas o que seria essa misteriosa criatura e o que as muitas pessoas que afirmavam tê-la encontrado realmente viram? Teria sido uma espécie de alucinação, já que é complicado assumir que todas testemunhas simplesmente resolveram inventar a história?


O biólogo marinho Joe Nickell abordou o mistério e publicou sua teoria para Glossy em uma edição de 2019 da revista Skeptical Inquirer. Nickell se concentrou no "chifre" de quatro pés, também descrito por outra testemunha como uma "ponta ou lança" projetando-se de suas mandíbulas. Considerando todos os relatos que discutiam o comportamento e a aparência da criatura, Nickell concluiu que uma boa suposição é que as pessoas viram um grupo de narvais com presas que, às vezes, se alinhavam para formar uma longa fileira de corcovas. Embora os narvais - que são baleias de médio porte, vivam apenas nas águas árticas do Canadá, Groenlândia e Rússia não é impossível que haja casos isolados de narvais chegando a região da Nova Inglaterra. 

Nickell também oferece outras explicações possíveis: 

"Se fosse necessário atribuir a Glossy uma espécie de criatura marinha conhecida, há candidatos até mais plausíveis do que um cardume de narvais. Se decidíssemos que o "chifre" era a característica mais distintiva, provavelmente deveríamos supor se tratar de um peixe-espada ou peixe serra. A costa leste dos Estados Unidos é de fato famosa pela pesca esportiva de peixe-espada; eles são encontrados ao longo de toda sua extensão. Todos os peixes-espada se alimentam perto da superfície, então ver seu aguilhão cutucando acima da água não seria algo incomum", escreveu o biólogo marinho em seu artigo.

Mas ao sugerir essa explicação cotidiana para o mistério da Serpente de Gloucester, criamos um novo problema. Se fosse realmente algo que pode ser visto a qualquer momento, por que tantas pessoas ofereceram relatos de um monstro apenas entre 1817 a 1819?

Além disso, seria de se supor que marinheiros familiarizados com essas águas fossem capazes de reconhecer um peixe-espada ou peixe-serra sem tratá-lo como algo desconhecido. Contudo, é possível que em se tratando de um animal de grande porte, este pudesse causar confusão ou até ser confundido por pescadores veteranos. 

"É raro, mas sabemos de exemplares de peixe-serra que podem chegar a 7,5 metros de comprimento. Não é impossível que estes animais se reúnam em grupo, o que pode causar a confusão à distância e fazer parecer se tratar de um único e enorme animal.


É possível que um grupo de animais de tamanho extraordinário tenha aparecido nas águas de Gloucester entre 1817 a 1819, algo tão fora do normal que confundiu muitas pessoas e ganhou status de lenda duradoura. Um evento registrado no ano de 1994 atestou que um grupo de peixes-serra com mais de 7 metros foi avistado nas imediações de Gloucester. O grupo em questão era composto de cinco indivíduos sendo que o menor deles não tinha menos do que seis metros de comprimento. Talvez tenha sido algo semelhante ao que os marinheiros viram em 1817. 

Como explicações mundanas não geram manchetes e menos ainda vendem jornais, ninguém queria saber de peixes-serras e sim de uma serpente marinha misteriosa. Isso gerou dois anos de relatos sensacionalistas e manchetes de jornais sobre um monstro na costa da Nova Inglaterra. 

Há ainda a questão da conformidade social na qual certas crenças podem se espalhar rapidamente por uma comunidade, mesmo entre aqueles que não testemunharam nada fora do normal. Pessoas que ouviram falar sobre Glossy podem ter sido impactadas pela mesma narrativa e passaram a acreditar nela piamente. Casos de testemunhas oculares sempre são acompanhados pela observação prévia de outras pessoas reforçando a narrativa. O fenômeno é conhecido pela psicologia como Pareidolia uma espécie de confirmação combinada de indivíduos que acreditam ter visto a mesma coisa e assumem ter compartilhado de algo notável. Esses eventos são bem comprovados e exatamente o que esperamos no caso de animais ou criaturas sobrenaturais como este.

Verdade ou mentira, simples rumor ou monstro real, ninguém, mesmo hoje, é capaz de dizer com certeza o que aconteceu. A Lenda da Serpente Marinha de Gloucester se espalhou e continuou a ser contada ao longo do tempo. Dizem que Hermann Melville procurou saber à respeito dela para escrever seu famoso romance náutico - Moby Dick. 

É certo que as pessoas em Gloucester continuarão a lembrar dessa lenda, afinal, eles sabem que os mares oferecem histórias que às vezes são difícies de serem explicadas. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

O Homem mais Procurado do Mundo - A vida e as muitas mortes do assassino em série Bela Kiss


Na Hungria, no início da década de 1900, Bela Kiss de 32 anos, mudou-se para uma casa alugada em Cinkota, uma pacata cidadezinha nos arredores de Budapeste.

Kiss era um homem simpático que logo ganhou a admiração de todos. Seus vizinhos imediatamente o viram como um sujeito amigável, o tratavam como alguém de respeito, um cidadão acima de qualquer suspeita. As mulheres o achavam bastante bonito, com cabelos loiros brilhantes e olhos de um azul que parecia se iluminar quando demonstrava interesse. Seu grande bigode, cuidadosamente aparado parecia másculo e severo, mas Bela era gentil e muitos descreviam sua voz como cativante. 

Ele ganhava a vida como funileiro, uma profissão importante na época. Um funileiro era uma espécie de artesão em ferro que realizava conserto e serviços em objetos de metal, ofício que lhe garantia um salário regular. Para todos os efeitos ele tinha uma vida tranquila e com algumas regalias. 

Kiss também se destacava pela sua notável inteligência. Não apenas havia aprendido sozinho seu trabalho como se mostrou um artesão admirado pela habilidade. Clientes vinham de todo canto, inclusive da capital, trazer algum objeto para ele reformar. Mas Bela não se destacava apenas pela sua profissão, ele também era famoso por ser um leitor voraz. De fato ele devotava seus momentos de folga para a leitura que era sua atividade favorita. Ele tinha orgulho da vasta coleção de livros sobre os mais variados temas. Kiss era um conhecedor de arte, literatura e história antiga. Era capaz de dissertar à respeito de estilos de arte clássica, de falar sobre as vertentes do modernismo, fazer crítica sobre romances e tecer comentários à respeito da política internacional. Alguns amigos vinham até sua oficina apenas para conversar e ele os recebia sempre com um sorriso, satisfeito em trocar ideias sobre os últimos acontecimentos na Europa.

Sem nenhuma escolaridade formal, era notável como Bela conseguia cativar a todos, sendo capaz de discutir praticamente qualquer assunto com as pessoas mais inteligentes e instruídas da cidade. Ademais falava alemão, russo, checo e latim, além de entender o básico de grego e búlgaro. Os idiomas, se gabava de ter aprendido quando prestou o serviço militar e foi secretário de um General. Bela teria se destacado recebendo inclusive condecorações no serviço militar.

Ele também tinha fama de ser um bon-vivant com propensão a dar festas. Em mais de uma ocasião convidou amigos e conhecidos para festejar nas tavernas locais, pagando à todos refeições e bebida, o que lhe valeu a fama de ser generoso. Em resumo, todos gostavam de Bela Kiss e ele era considerado pelas mulheres o solteiro mais cobiçado da cidade.

Não particularmente ansioso para se casar, Kiss contratou a idosa Sra. Jakubec, como governanta para realizar as tarefas domésticas que uma esposa normalmente faria. Cinkota tinha uma escolha limitada de companheiras, então Kiss manteve um apartamento em Budapeste e publicou anúncios românticos em jornais de lá. As mulheres se correspondiam com Kiss que recebia muitas cartas. As fofocas na cidade davam conta de que ao longo dos anos um fluxo constante de mulheres de Budapeste passavam curtos períodos de tempo na casa de Kiss em Cinkota, mas ninguém na cidade, nem mesmo a Sra. Jakubec, foi apresentado a essas jovens que iam e vinham tão rapidamente.

Ele tinha 37 anos quando a Guerra Mundial eclodiu em 1914 e os reservistas húngaros foram convocados para defender o país. Bela não estava especialmente ansioso para retornar ao serviço militar, mas acabou se apresentando e foi reintegrado ao Exército nacional. Bela deixou sua casa fechada e oito meses de aluguel pagos em avançado. Ele esperava retornar em breve e continuar seguindo com seu trabalho como funileiro, retomando sua vida normal. Talvez por conta disso ninguém jamais poderia imaginar o horror que seria revelado cerca de dois anos após a sua partida.

Tudo começou de uma maneira bem simples. Certo dia o detetive-chefe Charles Nagy da polícia de Budapeste, recebeu uma ligação alarmante. Era o dia 16 de julho de 1916 e a pessoa do outro lado da linha se apresentou como morador de Cinkota. O tom era de afobação e ele parecia não falar coisa com coisa. 

Ele acreditava ter descoberto evidências de um assassinato ocorrido em sua propriedade.

O sujeito explicou que era o proprietário de uma casa na rua Kossuth que havia sido alugada a um soldado chamado Bela Kiss. O inquilino havia partido para a guerra e o contrato havia expirado.  Rumores mencionavam que ele se tornou prisioneiro de guerra ou até que possivelmente havia sido morto em batalha. De qualquer forma, não era provável que ele retornasse logo já que a guerra se arrastava.  

O proprietário foi até a casa para ver que reparos seriam necessários caso ele viesse a alugá-la novamente. No pátio nos fundos da casa se deparou com algo inusitado: vários tambores grandes de metal. Aquilo era esquisito pois o inquilino havia deixado aquelas coisas misteriosas sem mencionar o que seriam. Imaginando que poderia ser combustível estocado, o senhorio perfurou um dos tambores fazendo escorrer de dentro dele uma água escura de fedor nauseante. Um funcionário da farmácia ao lado disse que o cheiro era inconfundível e decretou se tratar de decomposição humana. 

O proprietário implorou ao Detetive Nagy que viesse com urgência já que haviam dezenas de tambores semelhantes e ele tinha um péssimo pressentimento sobre o que acontecia ali. Nagy reuniu dois de seus melhores detetives e correu para a pacata cidadezinha de Cinkota. Quando chegaram à casa da rua Kossuth, o proprietário e alguns vizinhos já aguardavam com olhares preocupados. A idosa Sra. Jakubec, que havia prometido proteger os pertences de seu patrão, ficou furiosa e gritou para os policiais deixarem a propriedade em paz.

Nagy a tranquilizou se responsabilizando por qualquer dano produzido. Ele então abriu um dos tambores de metal lacrado com solda. Isso confirmou as piores suspeitas do proprietário e dos moradores locais. Dentro havia o corpo nu de uma jovem morena com longos cabelos escuros. Também dentro do tambor de metal estava a corda com a qual ela havia sido amarrada. O fedor era tamanho que a vizinhança inteira se perguntava o que havia acontecido na casa do funileiro.

Ao ser questionada, a Sra. Jakubec ficou perplexa com o conteúdo das grandes latas de metal que Bela Kiss estocava em seu quintal.  Os poucos que haviam visto os tambores presumiram que se tratava de gasolina ou diesel estocada. Quando os detetives examinaram os outros tambores de metal, descobriram que cada um continha o corpo de uma mulher nua. Todas elas foram vítimas de abuso e estrangulamento, finalmente haviam sido mergulhadas em uma solução de álcool que as preservava.

Depois que os detetives isolaram a cena do crime um agente funerário foi chamado para recolher os cadáveres. A polícia também conduziu uma busca na casa de Kiss e nos arredores, encontrando mais corpos que haviam sido enterrados no terreno. Cada vítima, mesmo aquelas que foram enterradas, havia sido preservada com álcool. Os corpos ainda eram reconhecíveis e podiam ser identificados se tivessem alguns nomes com os quais trabalhar. O número de vítimas chegava a 15.

Diante do maior caso de sua carreira o Detetive Charles Nagy notificou imediatamente os militares que Bela Kiss, se ainda estivesse no front, tinha de ser preso como assassino. Em seguida, ele interrogou a governanta aterrorizada. Nagy acreditava que Kiss poderia ter um cúmplice, por isso notificou as autoridades postais e telegráficas das redondezas que deveriam reter quaisquer mensagens destinadas a Bela Kiss. A notícia da grande descoberta estava se espalhando rapidamente por Cinkota e logo chegaria aos jornais de Budapeste. Nagy queria ter certeza de que nenhum cúmplice receberia um aviso.

Vários fatos tornaram a investigação mais difícil do que o normal. Os nomes húngaros Bela e Kiss eram extremamente comuns no país. Era provável que houvesse muitos homens no exército chamados Bela Kiss de modo que a prisão do indivíduo correto seria complicada por fatores alheios a sua vontade. 

Nagy então se concentrou na identidade das vítimas que poderia ajudar a entender como aquelas mortes aconteceram. As pistas nos cadáveres eram escassas já que as vítimas estavam nuas e sem identificação. Contudo, dentro da casa que a senhora Jakubec manteve imaculada, a polícia encontro uma única porta trancada. "Essa é a sala particular do patrão", disse a criada ao detetive Nagy. "Ele me disse para nunca entrar e nunca deixar ninguém entrar". A Sra. Jakubec enfiou a mão no avental e tirou uma chave antiga que abriu a porta trancada a dois anos. Nagy percebeu imediatamente que a sala estava repleta de estantes cheias de livros e a única mobília era uma grande escrivaninha e uma cadeira confortável.

Os livros eram escritos em vários idiomas e versavam sobre os mais variados assuntos. No entanto, chamou a atenção de todos a quantidade enorme de livros versando sobe ocultismo, magia negra, feitiçaria e temas similares. Bela Kiss parecia alguém muito interessado no tema e dedicado ao que se convencionou chamar de Ciências Esotéricas. Os livros eram antigos, alguns manuscritos contendo todo tipo de conhecimento estranho.  

Numa gaveta trancada na escrivaninha a polícia encontrou um enorme volume de correspondência entre Kiss e várias mulheres. Também encontraram um álbum com fotos de mais de cem mulheres com as quais ele teria se correspondido ao longo de vários anos. Nagy começou a se preocupar com a possibilidade de o número de vítimas ser maior do que o de cadáveres descobertos na casa. As cartas foram arquivadas em pacotes para que a correspondência fosse separada por ano. As mulheres escreviam em resposta a anúncios publicados na seção de Correio Sentimental nos maiores jornais de Budapeste. Todas queriam casamento e achavam Bela Kiss um bom partido. Mais tarde foi revelado que Kiss havia recebido 174 propostas de casamento. A 70 dessas mulheres, ele ofereceu casamento e manteve correspondência regular com elas. Outra coisa ficou bastante clara, Bela Kiss estava enganando mulheres pegando empréstimos delas e enriquecendo. Algumas das cartas datavam de 1903.

A polícia se perguntava como era possível que Kiss pudesse se corresponder com tantas mulheres e trazer muitas delas para sua casa sem que ninguém suspeitasse de suas intenções. Era impossível que ninguém soubesse de alguma coisa.

Nagy suspeitava da Sra. Jakubec, já que ela era criada na casa há mais de uma década. Quando Nagy a interrogou, ela se mostrou aterrorizada com a possibilidade de ser acusada de participação nos crimes, ainda assim tentava defendê-lo à todo custo: "Ele era um homem muito bom. Todos gostavam muito dele na cidade. Ele era gentil com todos; não machucaria ninguém! Tenho certeza de que isso é um erro – ele não pode ter matado aquelas mulheres!"

A criada admitiu ter visto muitas moças entrando e saindo da casa vindo visitar Bela Kiss ao longo dos anos, mas alegou não saber seus nomes. "Eu quase nunca disse uma palavra a eles. Eu era apenas a criada e passava as noites em minha própria casa. O que Bela fazia com essas senhoras não era da minha conta. Eram todas senhoras da cidade, não camponesas como eu. Vinham num dia e depois iam embora."

Nagy e seus colegas questionaram os vizinhos de Kiss na cidade e os que o conheciam. Todos gostavam dele e não achavam incomum um solteiro bonito e amável receber a visita de várias mulheres. Os homens casados ​​da cidade o invejavam, as mulheres o admiravam. Quem poderia imaginar o que acontecia na casa? Quem poderia dizer que atos tão horríveis aconteciam ali, bem perto deles?

O detetive contatou os departamentos de polícia de todos os lugares onde encontrou uma mulher que havia se correspondido com Bela Kiss. Eventualmente, ele teve certeza de entender a técnica usada pelo assassino para atrair suas vítimas. Ele colocava anúncios nos jornais, buscando informações sobre os recursos financeiros da mulher. Quando recebia resposta ele a visitava, descobria sobre sua família e amigos. Ele se concentrava nas mulheres que não tinham parentes próximos e que não fariam falta se desaparecessem. Com o tempo as seduzia e conquistava sua confiança.

A maioria das cartas indicava que as mulheres lhe davam dinheiro, joias e às vezes tudo o que tinham, tamanha a habilidade dele em inventar histórias e razões absurdas para que elas o fizessem. Bela também dizia ser uma espécie de místico, bruxo ou vidente que auxiliava as mulheres oferecendo a elas meios de conquistarem o que desejavam. O homem era na verdade um charlatão, um falsário e um sedutor. Se ele achasse que havia algum risco de envolvimento da polícia, imediatamente providenciava um encontro no qual as eliminava. Dessa maneira ele aparentemente havia atraído dezenas de mulheres até sua casa ou até lugares onde poderia matá-las. Bela era um mestre no uso do garrote, aparentemente ele aperfeiçoou o método lendo e buscando informações em revistas policiais do período. Um auto de data, ele se gabava de ser capaz de matar com rapidez para não fazer a vítima sofrer demasiadamente: "Ao pegar de jeito, não há escape", escreveu ele. 

Analisando as cartas, a polícia obteve indícios de que Kiss havia assassinado pelo menos 30 mulheres, ainda que nem todos os corpos tivessem sido encontrados. As autoridades acreditavam que o número de vítimas poderia ser ainda maior, já que várias mulheres que lhe escreveram ao longo dos anos não foram localizadas e simplesmente sumiram em pleno ar.

Em 4 de outubro de 1916, a polícia recebeu uma mensagem de um hospital sérvio alegando que um soldado chamado Bela Kiss havia morrido de tifo em 1915. Foi seguido por outra mensagem que dizia que Kiss estava vivo e era um paciente no mesmo hospital. O detetive viajou imediatamente para o local, que estava então em mãos húngaras. "Acho que pegamos seu homem", informou o comandante militar pelo telégrafo. Nagy estava tomado pela excitação. Ele chegou ao hospital ao anoitecer, mas quando foi levado à enfermaria onde o criminoso estava se recuperando, ficou em choque. O homem na cama estava morto - enforcado, mas não era Bela Kiss. De alguma forma, ele foi avisado de que a polícia estava à caminho, matou um enfermeiro e colocou seu cadáver na cama.

As autoridades decidiram que toda a Hungria deveria saber sobre o Monstro de Cinkota e mandou imprimir milhares de cartazes com a foto de Bela Kiss. Dicas choveram de todas as partes do país. Seguiram-se muitos avistamentos em lugares díspares ao redor do mundo. Alguém alegou ter visto o serial killer andando por uma rua de Budapeste em 1919. Cinco anos depois, em 1920, um membro da Legião Estrangeira Francesa foi a uma delegacia de polícia para denunciar um colega legionário que ele acreditava ser Kiss. ​​O homem, que assumiu o nome Hoffman (um pseudônimo que Kiss usava) era famoso por usar o garrote de maneira letal. A polícia foi até a unidade para interrogar Hoffman apenas para descobrir que ele havia desertado dias antes.

Um soldado húngaro alegou que Bela Kiss foi preso na Romênia por enganar mulheres. Outro disse que ele morreu de febre amarela na Turquia. Com a notícia se espalhando, não demorou até Bela Kiss se converter no homem mais procurado da Europa. Nos anos 1920 até meados da década de 1930 ele foi procurado em vários países e considerado o inimigo público número. Cartazes com sua foto e descrição estiveram nas principais delegacias de polícia no continente. Ele foi o primeiro criminoso a ter seu nome incluído na Lista dos mais procurados da Interpol quando esta foi criada em 1923. De fato, uma das justificativas para a criação da Polícia sem Fronteiras na Europa foi capturar criminosos como Bela Kiss.

As informações sobre Kiss chegaram ao Novo Mundo. Um detetive de Nova York chamado Henry Oswald tinha certeza de ter prendido Bela Kiss em 1932. Ele usava outro nome e tinha alterado sua aparência, contudo ele não tinha dúvidas de que se tratava do fugitivo. Oswald tinha o apelido de "Olho de Lince" por sua memória extraordinária para rostos. Após ser liberado, ele acabou sumindo uma vez mais. O relatório fez muitos se convencerem de que Kiss, com quase 70 anos estaria morando em Nova York. Em 1936, novos rumores surgiram de que ele trabalhava como zelador num prédio de apartamentos. A polícia foi ao prédio para entrevistar o suspeito mas ele havia fugido e não deixou nenhuma informação.

Aos poucos ele foi deixando de ser notícia, desaparecendo para sempre e se tornando uma espécie de lenda. Muitos fatos sobre Bela Kiss jamais serão conhecidos, nem mesmo seu destino final. Ele se converteu em um verdadeiro mito, maior que a sua própria vida.

Uma questão importante é se Kiss parou de matar depois de encontrar um novo esconderijo e assumir outra identidade. Embora nenhum crime tenha sido atribuído diretamente a ele fora da Hungria, é pouco provável que um serial killer tenha parado repentinamente de matar. Bela Kiss aprimorou suas técnicas de sedução e assassinato ao longo de anos e aquilo se tornou parte de sua vida. Talvez ele tenha tentado se misturar com a população e ter uma vida normal, esquecendo seu passado, mas quando comparamos seus feitos com o de outros criminosos é difícil acreditar que ele tenha simplesmente desistido de seu modus operandi.

A verdade é que Bela Kiss, o Monstro Assassino e um dos homens mais procurados do mundo conseguiu ludibriar todos os seus perseguidores e jamais foi apanhado.