segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Medo de Palhaços - O Infame Pânico que varreu a América em 2016


O chamado Pânico de Palhaços de 2016 pode ser rastreado até um bizarro incidente em agosto daquele ano. Palhaços sinistros supostamente foram vistos andando pelos arredores de Greenville, na Carolina do Sul, supostamente atraindo crianças para áreas desertas atrás de blocos de apartamentos. Era  assustador e alarmante  - não importa se era verdade ou mero rumor.

A maioria desses relatos vinham de crianças. Ninguém foi de fato ferido por esses palhaços ameaçadores que segundo algumas crianças viviam em uma casa próxima de um lago no final de uma trilha na floresta próxima. A polícia que investigou essa historia estranha a lá João e Maria não encontrou indícios de atividade criminosa, menos ainda, qualquer suspeito vestido de Palhaço. 

De acordo com uma fonte da emissora NBC na época, "um morador disse que estava na frente do prédio uma tarde quando um de seus filhos foi até ele apavorado, afirmando ter visto palhaços na floresta sussurrando e fazendo sons esquisitos".

O morador acrescentou que dado o estado de nervos da criança, ele achou melhor verificar o que estava acontecendo. Ao entrar na mata se deparou com três ou quatro indivíduos vestindo fantasias de palhaço apontando luzes esverdeadas de laser na sua direção. Quando ele tentou se aproximar o bando fugiu. Se esse relato deve ser levado em conta, sugere que brincalhões seriam os responsáveis- talvez adolescentes usando máscaras para pregar uma peça nos meses anteriores ao Halloween. Seja lá o que fosse, esse foi apenas um dos acontecimentos bizarros envolvendo palhaços sinistros. Logo dezenas de outros relatos surgiam ao redor do pais.

Palhaços começaram a ser visto com frequência cada vez maior: espiando, espreitando, invadindo... o sentimento de Courofobia (o medo crônico de palhaços) foi às alturas. 


A maioria das histórias sobre palhaços malignos não passam de ficção, mas alguns poucos, como o caso do infame assassino em série John Wayne Gacy são horrivelmente reais. Gacy, um cidadão acima de qualquer suspeita de Chicago, se vestia como Pogo uma figura que ganhou notoriedade pela sua imagem aterrorizante. Pogo, um palhaço diabólico, foi a inspiração para o palhaço Pennywise do romance IT de Stephen King.

Mas alguns acreditavam que haviam outros palhaços perversos vagando pelas ruas e parques, perseguindo crianças inocentes e tentando raptá-las - ainda que ninguém tenha sido preso ou processado. Alguns dizem que esses palhaços eram reais, enquanto outros afirmam que eles não passavam de imaginação. Essas figuras ficaram conhecidas como Palhaços Fantasma, uma expressão criada pelo autor Loren Coleman em seu livro "América Misteriosa".

Segundo Coleman, os primeiros relatos de Palhaços Fantasmas remontam a meados de maio de 1981, quando várias crianças da vizinhança de Brookline, Massachusetts, relataram ter encontrado homens vestidos como palhaços que tentaram atrai-los com a promessa de doces. A polícia vasculhou a área mas não encontrou nada. No dia seguinte, pais preocupados de Boston demonstraram preocupação quando seus filhos comentaram a respeito de adultos vestidos de palhaço. Outros relatos vieram à tona em cidades vizinhas nos meses seguintes, sempre com o mesmo padrão. Pais demonstravam preocupação, crianças eram avisadas para não falar com estranhos e policiais ficavam em estado de alerta. Mas a despeito de todo cuidado, nenhuma evidencia foi obtidas.

Apesar disso as pessoas continuavam receosas sem saber o que pensar, sobretudo porque muitas crianças continuavam falando sobre palhaços assediando e observando. Os casos continuaram esporadicamente, sendo que o auge dos relatos ocorreu em 2016, quando uma verdadeira febre de avistamentos varreu os EUA. 

Sociólogos e psicólogos estudaram o fenômeno por anos, tentando compreender o que ele significava. A folclorista Sandy Hobbs e o historiador David Cornwell, escreveram um livro com o título "Inimigos Sobrenaturais - A Presença do Estranho e Inesperado nos quintais da América". O livro dedicava um longo capítulo aos Palhaços Fantasmas e analisava as raízes desse mito, como ele se espalhava e a justificativa para o pânico existente.


Para começar descobriram que o temor e a desconfiança quanto a palhaços era mais antigo do que se podia imaginar. Uma origem possível seriam os Espetáculos Itinerantes (Carnivals ou Carnivales) uma prática bastante comum na América do século XIX e inicio do século XX. Os Carnivales eram companhias de artistas que viajavam pelo país, visitando cidades pequenas no interior, oferecendo diversão e atrações circenses. Dentre as atrações haviam artistas com maquiagem espalhafatosa, que remetiam a vagabundos clássicos da Comedia de l'Arte. Esses personagens, que muitas vezes faziam alusão a ciganos e outras minorias estigmatizadas, ficaram associados a prática de sequestrar crianças e levá-las consigo quando o bando partia.

Esse temor parece ter se cristalizado no imaginário coletivo em várias cidades do interior, com pais e responsáveis incutindo nas crianças a noção equivocada de que palhaços eram estranhos e potencialmente perigosos. Soma-se a isso as famílias que ameaçavam seus filhos dizendo que se eles não se comportassem, os palhaços as levariam embora. Os espetáculos itinerantes tiveram seu auge na década de 1930 durante a Grande Depressão e sem dúvida contribuíram para o medo dos palhaços vagabundos que foi passado de geração em geração. 

A pesquisa concluiu que o ressurgimento do Pânico dos Palhaços se deu por uma combinação da ação dos pais, da polícia e da mídia, cada qual ajudando a legitimizar rumores absurdos e infundados. Crianças mais velhas ouviam essas histórias e as repassavam aos mais jovens. Lendas Urbanas vinham à superfície depois de ficarem adormecidas por décadas. Dentro das narrativas surgiam o nome de crianças sequestradas e detalhes sobre casos ocorridos no passado: todos "ouviam falar e acrescentavam mais um pequeno fragmentos à narrativa, fazendo com que ela crescesse. Quando professores, autoridades, pais e os jornais compartilhavam alerta sobre uma ameaça, os relatos acabavam ganhavam legitimidade.

Em seu livro "Terrores Inesperados", lançado em 2024, Robert Bartholomew e Paul Weatherhead também examinam essa Lenda Urbana. Os casos geralmente estão associados com uma epidemia de rumores sensacionalistas e o relato de avistamento de figuras elusivas vestidas como palhaços. Além de causar estranheza, esses personagens pareciam surgir e desaparecer sem deixar vestígios, criando uma sensação de grande estranheza.


O Pânico de Palhaços se encaixa perfeitamente na categoria dos temores diante do desconhecido. As pessoas não sabem o que significa o aparecimento de pessoas vestidas de palhaço. Diante do inusitado, concluem que é algo perigoso e maligno. Afinal, a pergunta: "O que eles querem"? não tinha resposta fácil.  

Ao longo do último Pânico dos Palhaços não houve qualquer caso confirmado de criança subtraída por alguém vestido dessa forma. No entanto, se for perguntado, muitas pessoas dirão conhecer casos e irão confirmar incidentes. Isso sugere um tipo de construção social ou mesmo histeria coletiva. Se os casos aconteceram como muitos acreditam, como nenhum deles chegou à polícia? Como explicar que nenhum suspeito foi preso e praticamente nenhum caso resultou em confirmação de ocorrência?

Observado de forma objetiva é difícil acreditar que uma pessoa vestida de palhaço poderia invadir uma casa para cometer um sequestro sem que ninguém percebesse. Palhaços com suas roupas espalhafatosas e maquiagem gritante são qualquer coisa, menos discretos. 

Buscando um pouco mais fundo nos relatórios feitos pela policia de Greenville, é possível encontrar relatórios curiosos; um deles, preenchido em 21 de agosto menciona que "várias crianças da comunidade viram palhaços perambulando pela área florestal próxima do prédio D, e que estes palhaços tentaram persuadir menores a adentrar na floresta, oferecendo em troca brinquedos, doces e até dinheiro".

Este é um detalhe insidioso. Palhaços usando de métodos maliciosos para atrair crianças, oferecendo doces ou sorvetes. Essa narrativa parece um típico exemplo de lenda urbana e moral moderna, aquela mesma que adverte crianças a jamais aceitar doces de estranhos. 


Os relatos sobre palhaços em Greenville provavelmente não passaram de brincadeira, equívocos, lenda urbana ou uma combinação dessas três coisas. As chances de uma ou mais pessoas vestidas de palhaço estarem realmente tentando sequestrar crianças são remotas. Muitas pessoas perceberam isso, mas pais e policiais, compreensivelmente manifestaram seus temores. Com efeito, vídeos se tornaram virais, muitos deles originados (ou compartilhados) nas redes sociais, resultaram no aumento de patrulhas policiais e, em alguns casos, lockdowns completos. 

Em setembro de 2016, a polícia de Flomaton, Alabama, investigou o que foram consideradas ameaças críveis aos alunos da escola local. Mensagens ameaçadoras apareceram nos muros da cidade: "Vai acontecer hoje à noite", prometia uma delas. Cerca de 700 alunos da Flomaton High School e da vizinha Flomaton Elementary School foram instruídos a se abrigarem enquanto as escolas, seguindo o protocolo, foram colocadas em lockdown durante grande parte do dia. Dezenas de policiais e outros agentes da lei vasculharam o local em busca de ameaças. As investigações atraíram até mesmo o FBI que encontrou os responsáveis pela ameaça: um adulto e dois adolescentes foram presos e condenados pela brincadeira sem graça. 

Esses incidentes deixaram pais e professores se perguntando se os "Lockdowns de Palhaços" seriam o novo normal ou se aquilo não passava de exagero? Em outra ameaça escolar também no Alabama, duas pessoas vestidas de palhaço apareceram em um vídeo no Facebook brandindo facas e gritando: "Vamos atrás de você em Troy". A polícia identificou os dois indivíduos no vídeo, que já havia sido visto mais de 50.000 vezes. Eles eram estudantes locais de uma Escola na cidade de Troy. A polícia não indiciou os dois meninos, mas alertou outros potenciais imitadores de que tais brincadeiras não seriam toleradas.

Os boatos podem, é claro, ter consequências graves.

Embora as crianças tenham pouco a temer de palhaços, a lenda urbana pode representar um perigo real. Nos relatórios de Greenville, cidadãos alarmados dispararam armas de fogo na esperança de matar os palhaços à espreita na floresta. Felizmente, ninguém se feriu, mas a situação poderia ter se tornado fatal. Em meio aos boatos e sustos, uma menina de onze anos na Geórgia levou uma faca para a escola por ter medo dos palhaços. Outra criança, um menino de 11 anos, foi detido em Athens, após uma revista descobrir uma pistola 45 em sua mochila. Ele disse que pegou a arma do pai para se defender dos palhaços. 


Em meados de outubro, o Pânico dos Palhaços assustadores se espalhou por todo o país, chegando a dezenas de estados. O incidente tornou-se tão sério que foi abordado em um briefing na Casa Branca em 4 de outubro. O secretário de imprensa Josh Earnest disse: "Não sei se o presidente foi informado sobre esta situação específica... Obviamente, esta é uma situação que as autoridades policiais locais levam muito a sério, e elas devem analisar minuciosamente as ameaças à segurança da comunidade, e agir da maneira mais adequada."

Além dos vídeos, muitos dos relatos foram reconhecidos como invenção. Um homem na Carolina do Norte alegou falsamente que um palhaço havia batido em sua janela à noite, ele foi preso por forjar o incidente. Já uma mulher de Ohio alegou que um palhaço com uma faca a atacou a caminho do trabalho e cortou sua mão, mas depois admitiu que inventou a história.

Também havia pessoas se fantasiando de palhaços para assustar os outros. Dois adolescentes canadenses vestidos de palhaços se divertiram em um parque assustando crianças. Em Wisconsin, um homem vestido de palhaço foi visto repetidas vezes. Posteriormente se descobriu que ele era parte de uma campanha de marketing para um filme de terror. Um ano antes, um palhaço assustador foi avistado do lado de fora de um cemitério de Chicago.

Em qualquer outro momento da história, relatos de palhaços ameaçadores provavelmente teriam sido ignorados, mas esses incidentes ocorreram em um momento em que ameaças terroristas e tiroteios em escolas estavam nos noticiários. O medo se molda e se transforma para admitir novas faces.
 
Pânicos sociais infelizmente são algo comum no mundo moderno. O Pânico dos Palhaços de 2016 não foi o primeiro desse tipo e certamente não será o último. Quando o próximo evento acontecer — e acontecerá — é importante ter em mente que a melhor defesa contra o temor diante do desconhecido é o ceticismo e o pensamento crítico.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Tribos Desconhecidas - Incríveis encontros com Nativos Misteriosos: Os Maricoxi


A história guarda muitas peculiaridades que talvez nunca sejamos capazes de compreender. Muitas vezes por documentação incompleta, desinteresse da época ou simplesmente por um grande ponto de interrogação que paira sobre todos algumas coisas parecem destinadas a nunca serem explicadas. Entre estas, encontram-se as misteriosas tribos perdidas que foram encontradas em todos os cantos do globo, muitas vezes desaparecendo antes que realmente as compreendêssemos. Elas são conhecidas apenas por relatos esparsos, deixando-nos perplexos sobre suas origens. Aqui, examinaremos misteriosas tribos perdidas de homens-macaco, índios de olhos azuis, tribos místicas com poderes telepáticos, entre outras.

Vamos começar pelas selvas remotas da América do Sul que têm sido fonte de contos de criaturas e lendas estranhas há séculos. Há numerosos avistamentos de uma tribo de seres humanoides semelhantes a macacos vivendo em áreas selvagens da qual sabe-se muito pouco.

A descrição dessas criaturas variava enormemente: com uma estatura que ia de diminutos 90 centímetros até gigantescos 3,6 metros de altura eles eram selvagens. Os nativos e viajantes frequentemente afirmavam que estes seres habitavam aldeias próprias, usavam ferramentas e arcos e flechas primitivos para caça e guerra. Tinham ainda uma linguagem própria de grunhidos e assobios. Mais impressionante eram cobertos de pelos crespos e escuros que lhes concedia um aspecto animalesco. Embora os nomes regionais possam variar, eles eram classificados sob o nome genérico Maricoxi e, em sua maior parte constituem um enigma completo.

Os Maricoxi sempre foram um mistério, sendo descritos por exploradores do século XVI em diante. As matas fechadas em que eles viviam eram prudentemente evitadas pelas demais tribos que os consideravam perigosos. 

Talvez um dos encontros mais bem documentados e angustiantes com essas criaturas misteriosas tenha sido detalhado pelo famoso explorador britânico o Coronel Percival H. Fawcett, mais frequentemente chamado de Percy Fawcett, que desapareceu na selva durante uma expedição para encontrar a misteriosa cidade perdida de Z. Fawcett era conhecido por escrever extensos diários de suas viagens, muitos dos quais seriam posteriormente compilados em livros por seu filho Brian. Em um desses livros, intitulado "Trilhas Perdidas, Cidades Perdidas", encontra-se uma história bastante curiosa de um encontro com os Maricoxi.


O incidente ocorreu em 1914, quando Fawcett estava em uma expedição para mapear a região inexplorada do sudoeste do Mato Grosso. A partir da Bolívia, sua expedição penetrou na selva escura rio acima. As tribos locais conheciam histórias bizarras de homens-feras peludos que supostamente habitavam aquele mar de árvores e os advertiram sobre eles. Embora parecesse algo fantasioso, a informação era o suficiente para mantê-los cautelosos com o que os cercava e com o que encontrariam em sua jornada. Ivan Sanderson escreveu sobre as histórias de Fawcett em seu livro "Things", de 1967, no qual escreve:

Essas criaturas eram chamadas de Maricoxis pelos Maxubis. Eles viviam a nordeste deles. A leste, dizia-se que havia outro grupo de pessoas baixas e negras, cobertas de pelos, que eram canibais e caçavam humanos para se alimentar, cozinhando os corpos em espetos na fogueira e arrancando a carne em nacos. Os Maxubis consideravam esses seres repugnantes e inferiores pelos seus hábitos. Em uma viagem posterior, o Coronel Fawcett foi informado de um "povo-macaco" que vivia em tocas no chão, também cobertos de pelos escuros e que tinham hábitos noturnos, de modo que eram conhecidos pelos vizinhos como Povo-Morcego. Esses tipos erma chamados de Cabelludos ou "Povo Peludo" pelos falantes de espanhol, e Tatus, por vários grupos ameríndios, porque viviam em tocas como esses animais. Fawcett registrou relatos de ameríndios na floresta que os Morcegos tinham um olfato incrivelmente bem desenvolvido, o que levava esses caçadores a sugerir que eles tinham um "sexto sentido".

Apesar das narrativas, o grupo se embrenhou bravamente ao longo do rio, encontrando algumas peculiaridades ao longo do caminho. A primeira descoberta interessante foi uma tribo ameríndia até então desconhecida, que se identificava como Maxahubis e exibia algumas características curiosas, como sua religião de adoração ao Sol. Demonstravam também um conhecimento inexplicável dos planetas do sistema solar, que conseguiam deduzir com uma precisão notável. Teria sido interessante estudar isso mais a fundo, mas Fawcett e companhia não estavam lá para fazer trabalho antropológico e, depois de passar alguns dias com a tribo, retornaram à selva envolta em névoa, deixando esse povo fascinante para trás, e cruzando para uma região completamente desconhecida para forasteiros, tão remota e estranha que poderia muito bem ser a superfície de algum planeta alienígena.

Após vários dias lidando com inúmeros perigos dessa terra indomável, a expedição se deparou com uma trilha misteriosa no meio do nada e presumiram ser ela usada pelos nativos da região. Enquanto estavam ali, decidindo se seguiriam a trilha ou não, Fawcett escreve que viram duas figuras se movendo a cerca de 90 metros de distância, aparentemente conversando em alguma língua desconhecida e carregando arcos e flechas. Embora a princípio se presumisse que fossem de uma tribo local, uma inspeção mais detalhada mostrou que eram decididamente mais estranhos, e Fawcett os descreveu:

Não conseguíamos vê-los claramente por causa das sombras salpicadas em seus corpos, mas me pareceu que eram homens grandes e peludos, com braços excepcionalmente longos e testas inclinadas para trás a partir de arcos oculares pronunciados, homens de um tipo muito primitivo, na verdade, e completamente nus. De repente, eles se viraram e se dirigiram para o mato, e nós, sabendo que era inútil segui-los, começamos a subir o trecho norte da trilha.


Parece bastante óbvio, a essa altura, que Fawcett não considerava estes estranhos como seres humanos desenvolvidos. Talvez isso já fosse suficientemente estranho, mas as coisas ficaram ainda mais bizarras. Ao anoitecer, a floresta subitamente ganhou vida com o som do que pareciam ser trombetas ecoando na escuridão distante. Os membros da expedição ficaram imediatamente em alerta, pois instintivamente sabiam que se tratava de um som agressivo emitido com a promessa de ameaça. Fawcett escreveria sobre essas trompas e o que se seguiu:

Na luz suave do entardecer, sob a alta abóbada de galhos nesta floresta inexplorada pelo homem civilizado, o som era tão assustador quanto as notas iniciais de uma ópera fantástica. Sabíamos que os selvagens tinham feito aquilo e que eles estavam agora em nosso encalço. Logo pudemos ouvir gritos e tagarelices acompanhados pelos chamados ásperos das trompas — um estrondo bárbaro e implacável, em nítido contraste com a furtividade do selvagem comum.

A escuridão, ainda distante acima das copas das árvores, estava se instalando rapidamente ali, nas profundezas da mata, então procuramos ao redor um local de acampamento que oferecesse alguma segurança contra ataques e, finalmente, nos refugiamos em um matagal de taquaras. Ali, os selvagens nus não ousariam nos seguir por causa dos enormes espinhos. Enquanto pendurávamos nossas redes dentro da paliçada natural, podíamos ouvir os selvagens tagarelando por todos os lados, mas sem ousar entrar. Então, quando a última luz se extinguiu, eles nos deixaram e não ouvimos mais falar deles."

É uma imagem assustadora, com certeza, este acampamento solitário de exploradores desgrenhados, aterrorizados pela visão de homens peludos e assediados por trombetas misteriosas na noite, pontuado pelo chilrear de alguma língua estranha. Na manhã seguinte, a equipe verificou cautelosamente os arredores e não encontrou nenhum sinal de que qualquer um dos "selvagens" tivesse se intrometido nas proximidades. Nem mesmo as pegadas estavam claras. Eles continuaram por uma das trilhas bem delineadas e acamparam novamente naquela noite, sem incidentes. Na manhã seguinte, partiram do acampamento e, a cerca de um quilômetro de distância, tropeçaram no que parecia ser a aldeia da estranha tribo, povoada por criaturas que obviamente não eram humanas. Fawcett descreve o que aconteceu de forma bastante espetacular:

De manhã, seguimos em frente e, a menos de quatrocentos metros, chegamos a uma espécie de guarita de folhas de palmeira. Então, de repente, chegamos a uma clareira ampla. A vegetação rasteira desapareceu, revelando entre os troncos das árvores uma aldeia de abrigos primitivos, onde se agachavam alguns dos selvagens mais estranhos que já vi. Alguns estavam ocupados fabricando flechas, outros apenas ociosos — grandes brutos, verdadeiramente simiescos que pareciam ter evoluído pouco além do nível de animais selvagens.

Assobiei, e uma criatura enorme, com pelo áspero e escuro levantou-se de um salto no abrigo mais próximo, encaixou uma flecha em seu arco num piscar de olhos e subiu dançando de uma perna para a outra até estar a apenas quatro metros de distância. Emitindo grunhidos que soavam como "Eck! Eck! Eck!", ele permaneceu dançando, e de repente toda a floresta ao nosso redor se encheu de vida com aqueles horríveis homens-macaco, todos grunhindo "Eck! Eck! Eck!" e dançando de uma perna para a outra esticando as flechas em seus arcos. Parecia uma situação muito delicada para nós, e eu me perguntei se seria o fim. Fiz propostas amigáveis ​​em maxubi, mas eles não me deram atenção. Era como se a fala humana estivesse além de sua capacidade de compreensão.

A criatura à minha frente interrompeu sua dança, ficou imóvel por um momento e então puxou a corda do arco para trás até que ela ficasse na altura da orelha, ao mesmo tempo em que erguia a ponta farpada da flecha até a altura do meu peito. Olhei diretamente nos olhos, meio escondidos sob as sobrancelhas salientes, e conclui que ele iria disparar. Mas tão deliberadamente quanto a havia erguido, ele abaixou o arco e recomeçou a dança lenta e aquele absurdo "Eck! Eck! Eck!"


Este "homem-macaco" continuou a fazer aquilo várias vezes, mirando o arco apenas para continuar com sua dança estranha e desconexa e então mirar novamente. No entanto, Fawcett parecia saber que a qualquer momento aquela flecha poderia disparar, e sua mão estava firmemente apoiada na coronha da pistola. Em algum momento, Fawcett diz que começou a temer seriamente por sua vida e decidiu assustá-los com sua arma, disparando uma bala que atingiu perto da criatura. O som estrondoso ecoou pela selva. Ele conta sobre a sequência de eventos que se seguiu:

"Saquei uma pistola Mauser que eu tinha no quadril. Era uma arma grande e desajeitada, de um calibre inadequado para uso na floresta, mas eu a trouxe porque, ao prender o coldre de madeira à coronha da pistola, ela se transformava em uma carabina e era mais leve de carregar do que um rifle de verdade. Usava cartuchos de pólvora negra calibre .38, que faziam um barulho desproporcional ao seu tamanho. Eu nunca o levantei; apenas puxei o gatilho e o disparei no chão aos pés do homem-macaco.

O efeito foi instantâneo! Uma expressão de completo espanto tomou conta do rosto hediondo, e os olhos se arregalaram. Ele largou o arco e saltou tão rápido quanto um gato para desaparecer atrás de uma árvore. Então as flechas começaram a voar. Disparamos contra os galhos, esperando que o barulho assustasse os selvagens e os deixassem mais receptivos, mas eles não pareciam nem um pouco dispostos a nos aceitar, e antes que alguém se machucasse, desistimos, pois não tínhamos esperança, e recuamos pela trilha até o acampamento desaparecer de vista. Não fomos seguidos, mas o clamor na aldeia continuou por um longo tempo enquanto rumávamos para o norte, e imaginávamos ainda ouvir o "Eck! Eck! Eck!" dos nativos enfurecidos.

Este relato pode parecer completamente sensacionalista a ponto de ser fácil para os mais céticos descartá-lo de imediato, mas há razões pelas quais ele tem fundamento e merece consideração. A primeira é que provavelmente não se tratava de uma história fictícia que Fawcett estava contando. Ela fazia parte de suas anotações meticulosas sobre a expedição, e estava ali, entre observações mais mundanas da vida selvagem e dos diversos povos da região. Fawcett era um aventureiro profissional e membro da Royal Geographical Society, além de explorador e agrimensor muito respeitado e experiente no seu campo. Não há nenhuma razão para que ele quisesse inventar tal história e deixá-la no meio de seu diário, que de outra forma, é perfeitamente normal. Por que ele faria isso, correndo o risco de arruinar sua reputação? Com ​​que objetivos? 


Fawcett também foi acusado de ter exagerado em suas relações com os nativos e, neste caso, tê-los retratado como brutos peludos por motivos racistas. Mas, se fosse esse o caso, por que existem outros registros de suas relações com os nativos que são completamente precisos na descrição tanto de aparência quanto comportamento? É verdade que Fawcett era conhecido por ter opiniões fortes sobre as tribos mais primitivas, mas ele parece nunca ter deixado que isso comprometesse a maneira objetiva como registravam os povos nativos. Sanderson tem muito a dizer sobre esse aspecto dos registros do diário, escrevendo:

Ele (Fawcett) não era etnólogo, antropólogo ou arqueólogo, mas foi com essas disciplinas que ele entrou em conflito expressando sentimentos de amargura. Em suas extensas viagens por territórios até então inexplorados, ele descobriu grupos de pessoas pela primeira vez, conviveu com eles, muitas vezes aprendeu suas línguas, registrou o que pôde de seus costumes e tentou alguma classificação de suas origens. Ele gostava muito disso! Considerava um dos aspectos mais importantes de seu trabalho. Mesmo assim, as teorias de Fawcett estavam em total desacordo com o que era então, aceito pelos estudiosos. Mas embora essas teorias tenham sido fortemente criticadas, a veracidade dos relatos coletados jamais foi questionada."

Isso coloca seu relato dos Maricoxis sob uma luz completamente diferente, independentemente do fato de que sua palavra nunca foi posta em dúvida. Mais tarde o que ele viu foi confirmado por outros exploradores, em relatos que lhe foram transmitidos por várias pessoas que travara contato com os Maricoxi. Muitos falavam desses seres peludos como mais animais que homens...

Portanto, somos compelidos a aceitar o relato feito na íntegra; um relato que afirma que no ano de 1914, tribos de hominídeos de aspecto primitivo, quase bestial, viviam a nordeste da Serra dos Parecis, no Mato Grosso. Uma tribo completamente desconhecida. 

Embora Sanderson possa parecer precipitado demais para acreditar na história completa, certamente é um relato que se destaca entre os escritos de Fawcett e que, em última análise, deixa mais perguntas do que respostas. O que Fawcett e seus companheiros de expedição encontraram naquela selva? Seriam eles de fato os lendários Maricoxi? É realmente lamentável que, considerando que Fawcett não estava particularmente interessado em investigar o assunto, e parece tê-lo considerado principalmente um obstáculo e uma estranheza, ele nunca tenha se esforçado para descobrir o que eram as criaturas de seu relato. Será que essa tribo de homens-macaco peludos realmente existiu como Fawcett os descreveu? E, se sim, o que eram eles e como se encaixavam na lenda de Maricoxi? A resposta pode permanecer para sempre escondida naquele covil proibido da selva.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Dicionário do Cthulhu Mythos - Letra H de Hali



HALI, Lago

O Lago Hali ou Lago de Hali é um misterioso corpo de água localizado em um planeta na Constelação das Hyades ou numa dimensão conectada a esse sistema. O Lago desempenha um importante papel na mitologia de Hastur, o Inominável e também de seu Avatar mais conhecido, o Rei de Amarelo.

Segundo os textos compilados no livro "As Revelações de Hali", este seria um lago enevoado em cuja margem se encontra a lendária Cidade de Carcosa. Para adentrar a cidade ou dela sair, é preciso atravessar a extensão do Lago Hali que segundo os rumores é vasta e preenchida por águas plácidas de coloração plúmbica. Carcosa supostamente ficaria na Margem mais distante do Lago Hali ou em algumas interpretações em uma Ilha em seu interior. Segundo alguns visitantes, a travessia do Hali até Carcosa é realizada com pequenos barcos à remo. Alude-se ao fato de que as águas são habitadas por animais de grande porte, semelhantes a cetáceos de coloração pálida que nadam pelas águas cinzentas provocando ondulações. Estes à despeito de seu tamanho raramente são hostis e tendem a ignorar as pequenas embarcações. Também são observados o vai e vem de seres alados sobrevoando o espelho de água, que podem ser os Byakhees, servos de Hastur.

O Grande Hali é descrito como um Lago de Névoas, ou mesmo nuvens em mais de um tomo. Há menções também a formação de espuma nas margens, embora não se saiba exatamente qual fenômeno é responsável por isso. Alguns visitantes afirmam que nesses "tempos de espuma" não é recomendado viajar por essas águas, pois elas podem ser perigosas. Supõe-se também que o Hali seja o maior dos lagos da região, embora possam haver outros já que são mencionados os "Lagos de Carcosa" no plural.

Uma interpretação curiosa acerca do Hali sugere que no passado ele tenha se manifestado na Terra em diferentes lugares e circunstâncias. Nestas o Lago de Hali teria se materializado na Terra fisicamente acompanhado da Cidade de Carcosa. Os lugares dessa ocorrência seriam a bacia de Gobi na Mongólia, uma garganta no Rub al-Khali na Arábia e uma porção do Lago Ness na Escócia. Com exceção desta última, todas as manifestações físicas do Hali acabam secando e desaparecendo, convertendo-se em um deserto de poeira.

Para alguns o Lago Hali seria o covil ou mesmo a prisão de Hastur. Ele seria  Habitante de Hali, aquele que vive nas profundezas dormindo sob o lençol de águas perenes aguardando o dia e que as estrelas estiverem corretas. Assim como o Grande Cthulhu (que por analogia dorme em R'Lyeh), Hastur também é capaz de enviar emanações psíquicas para indivíduos escolhidos. Em alinhamentos estelares propícios, Hastur é capaz de interagir telepaticamente e influenciar essas pessoas. Os seguidores costumam se referir a isso como "o Olho de Hastur ganhando foco".

Uma representação do Lago Hali e Carcosa ao fundo

As Turbulentas águas do Hali 

Peregrinos nas Margens do Lago Hali

O Lago das Névoas

Bônus: AS REVELAÇÕES DE HALI

Escrito por um Profeta sem nome, identificado apenas como "A Máscara Pálida", As Revelações de Hali é um tratado esotérico escrito no final do século XIX. Ele teria sido psicografado pelo sensitivo francês E.S. Bayrolles em Marselha ao longo de dezenas de sessões de transe mediúnico. Bayrolles alegava ser uma espécie de receptor aberto para a sabedoria transmitida pelo Máscara Pálida ou alternativamente pelo espírito de Hoseib Alar Robardin (um suposto Habitante de Carcosa).

O livro é composto de versos e hinos que falam à respeito da mitologia de Hastur, citando Carcosa, o Símbolo Amarelo e o Lago de Hali. A leitura do livro supostamente cria um tênue vínculo com Hastur e faz com que o indivíduo experimente da sua influência. Alguns cultos dedicados a Hastur, inclusive os Irmãos do Símbolo Amarelo consideram o livro um trabalho menor e consideram algumas de suas noções apócrifas. 

A Editora Golden Goblin de Nova York publicou As Revelações de Hali no ano de 1913. A maior parte da pequena tiragem, com apenas 200 cópias foram compradas por colecionadores e estudiosos do oculto. Uma cópia deste livro se encontra na coleção restrita da Universidade Miskatonic.  

O médium psíquico E.S. Bayrolles

A capa da edição única do livro "As Revelações de Hali"
 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Amarelo é o Horror - Por que devemos temer Hastur?

Hastur

O Senhor de Carcosa. Aquele que não deve ser nomeado. O Rei de Amarelo. Ele possui muitos nomes, mas nenhum deles é capaz de explicar o que Ele realmente é, e qual a Sua amplitude. 

A despeito das imagens que ilustram esse artigo, Hastur não é um ser. Ele é uma força que se instala em toda mente que vislumbra seu símbolo. Ele transforma histórias em doença. Ele se espalha como uma infecção. Ele esconde verdades impronunciáveis sob sua máscara pálida. E quando ele escolhe erguer esse véu, a realidade do universo, vasto e terrível, se revela em toda sua gloria.

Antes de ser temido, Hastur era reverenciado. Em 1893, o escritor americano Ambrose Bierce concebeu uma historia sob o título "Haita, o Pastor". Essa é uma fábula fantasiosa, não um conto de horror. Ela trata de um jovem pastor de ovelhas que vive em uma região rural idealizada. Campos relvados, flores silvestres e árvores frondosas o cercam. Seu mundo é puro, intocado pela dor e sofrimento. Seus dias são pacíficos,  transcorrendo entre a tarefa de zelar pelo seu rebanho e oferecer devoção a um Deus chamado Hastur. 

Essa versão de Hastur é uma figura divina, serena, nunca vista, nunca descrita, mas sempre presente nos pensamentos do jovem. Ele representa a paciência  a bondade e a promessa de recompensas para aqueles que o seguem com respeito. Na história de Bierce, Hastur é menos um personagem e mais um conceito, uma presença reconfortante ligada a inocência e esperança. Não há um mal presente, nenhum pavor oculto ou manifestação virulenta. Nem mesmo o Símbolo Amarelo. Apenas um rapaz, uma colina, os campos e um Deus que ouve.

Mas então, algo mudou.

O nome Hastur permaneceu, mas o significado foi pervertido em algo muito mais profundo e aterrorizante. Apenas dois anos após sua criação, outro autor tomaria o nome emprestado e o transformaria em algo inteiramente diferente.

A mudança de um Deus benevolente para uma entidade niilista, mais parecido com uma infecção ocorreu de maneira violenta e quase que sem explicação. E talvez seja isso que torna Hastur tão perturbador. Sua origem era pacífica, mas ela foi naturalmente corrompida quase que de imediato. Cooptada por uma mácula doentia, virulenta, nauseante... uma ferida de Cor Amarela.

Nas histórias concebidas por Robert W Chambers, uma nova forma de horror se desenvolveu, espalhando-se como uma contaminação que viajava pela própria ficção. Sua coleção de contos, lançada em 1895, chamada de O Rei de Amarelo (The King in Yellow), apresentava um punhado de histórias conectadas por uma misteriosa peça teatral de mesmo nome. A peça existia em um universo de histórias, mencionado aos sussurros, lidas em segredo e temidas por aqueles que a encontravam. Ela era o vetor da infecção que vazava para a realidade através da criatividade e das alterosas asas da imaginação.

Apenas alguns trechos dessa obra cabalística eram citados entre aspas, mas esses meros fragmentos sugeriam algo vasto e implacável. O primeiro ato capturava a imaginação do leitor atraindo-o para um mundo de fantasia. A história envolvia a corte de um Reino com ares renascentistas que anseia por um casamento real entre a Rainha e seu misterioso consorte, monarca de uma cidade ainda mais misteriosa, Carcosa. Para tratar dos proclamas, um emissário é enviado e sua chegada causa grande agitação.

O segundo ato introduz conceitos bizarros demais. A chegada do enviado, usando uma máscara pálida e uma brasão de autoridade descontrói a realidade do Reino. Nada parecia estável. Real. Lógico ou mesmo coerente. Ao longo da trama, uma sensação de sonho vai tomando conta de tudo e os personagens são cooptados pela trama e transformados em algo que não são. A cidade se torna uma versão de Carcosa até que os habitantes abandonam de vez a sua identidade, assumindo outra que se encaixa no desejo do Rei Amarelo, aquele que irá desposar a Rainha.

Assim como a trama apresentada na peça, o texto tinha o poder de alterar o mundo e a forma como o mundo existia sob um prisma lógico. Emoções mudavam. Identidades desmoronavam. Ela distorcia. E na mesma medida revelava algo que o leitor não estava preparado para contemplar.

Ao longo da peça havia uma série de elementos recorrentes. Carcosa, a cidade esquecida, envolvida pelo pó e pelas névoas. O Lago Hali, interminável e perene. O Símbolo Amarelo, uma espécie de brasão místico que surgia em pinturas, roupas e sonhos. Cada elemento acrescentava uma camada ao sentimento de contaminação, como se a própria historia carregasse uma moléstia invisível oculta nas palavras, no sentido e no teor.

No centro dessa Espiral de Loucura habitava Hastur. Ele não entrava em Cena. Ele não falava, mas sua presença onipresente se insinuava nas bordas da narrativa como uma ameaça persistente. Ele vivia nas margens, mencionado an passan, sem uma explicação de sua importância ou papel. Sempre próximo da Insanidade da qual ele despontava como uma espécie de santo padroeiro do conformismo.

Chambers jamais delineou quem ou o que era Hastur. Seu poder residia na sugestão, na forma como seu nome era evitado e como mesmo assim ele penetrava através da mente, como um ferro em brasa que deixava sua marca indelével. Nesse mundo, Hastur não era um visitante. Sua presença estava costuradas na historia, aguardando atrás de uma cortina, atuando através de outros que sua influência vil já havia pervertido.

A partir de então, o nome Hastur foi passando de criador para criador, compartilhando seu conceito original e assumindo vida própria. Mas a pergunta permanecia sem resposta: O que é Hastur?

Ele não é definido por uma simples forma. Ao invés disso ele é uma presença que se move através de estruturas, historias, narrativas, ambientes, símbolos... cada qual capaz de erodir a mente dos mortais de dentro para fora. O medo que ele dissemina não vem de morte ou destruição, mas da transformação definitiva. Do abandono da forma inicial para a transmutação rumo a outra forma desconhecida. Quando a influência de Hastur começa a se manifestar, o próprio ser se altera. 

Na forma de seu Avatar, O Rei Amarelo ele surge no segundo ato da peça. Sua presença cria um ponto de mudança. A audiência começa a perder os limites entre personalidade e identidade. Eles repetem trechos que jamais haviam lido ou ouvido antes. Eles respondem a deixas que nunca lhes foram dadas. As senhas parecem se revelar e as lacunas são preenchidas por memórias que não são suas. Amigos se tornam estranhos. Familiaridade se torna uma atuação inócua. Eventualmente a diferença entre quem eles são e quem eles se tornam desaparece por completo. 

Mas a mudança não é perceptível. A nova identidade se projeta como uma segunda pele que sempre esteve ali. Aqueles que são contaminados despertam agindo de forma diferente, repetindo trechos da peça maldita e vivendo com ela sempre em sua mente. Uma face familiar se converte no rosto de um personagem. E suas crenças sofrem uma mudança para algo no qual eles jamais acreditaram. 

Hastur se espalha através do idioma. As palavras se tornam vivas com a sua mácula, como germes dispersos no ar. As palavras são como versos e ritmos que reverberam nos corredores da mente. Logo os sonhos são infestados por devaneios tão reais que é difícil dissociar o que é sonho e realidade.

A contaminação refaz as memórias e adapta trechos de sua vivência ao que fazia parte da peça. A peça ganha conotação de vida e se mistura de tal forma que não há mais como saber onde uma começa e outra termina. É possível que uma pessoa afligida repita o mesmo comportamento diariamente sem se dar conta de que anos se passam e ela se tornou um autômato. A vítima passa a ouvir sons que não existem em breves instantes de silêncio. Ela contempla visões perdidas na filigrana de uma pétala,  que esconde segredos da própria criação.

Enquanto isso, Carcosa se torna o mundo. 

A cidade que existe em um limbo cercado de névoas e silêncio se manifesta como um lugar metafísico. Sua arquitetura não possui lógica, com ruas como veias e avenidas como artérias que seguem para praças e palacetes que são como os órgãos de um corpo vivo e pulsante. A cidade se revela sob luzes de um sol invisível projetando sombras que se movem com vida própria. Estátuas vivem e caminham, apenas para voltar ao pedestal no momento seguinte. O tempo se dobra e expande. Aqueles que andam pelas calçadas pavimentadas de Carcosa param de perguntar onde estão. Eles aceitam sempre ter estado lá, mesmo que isso não seja verdade. A cidade infinita se torna seu habitat. Eles não carecem de mapa para explorar sua geografia caótica pois a cidade se torna conhecida para eles. É como se tivessem vivido sempre nesse lugar desde o início dos tempos.

E esse é um dos aspectos mais insidiosos de Hastur: fazer a realidade se impor na mente do indivíduo tornando-se uma certeza. O estranho e bizarro ganham contorno de familiaridade. Em pouco tempo, ao viajante de Carcosa nada mais é incerto pois ele se converte em um habitante. Ele não é mais um visitante fugaz, mas um morador, pela vida inteira. Antes e depois só há Carcosa. Ela se torna sua pátria e sua derradeira morada. 

Quanto ao Símbolo Amarelo, ele é como um cartão de visita. A primeira vez que é visto, ele queima sob as retinas gravando sua forma nos recessos da mente. Inesquecível e indelével. O individuo que tem esse primeiro contato não consegue esquecer sua forma e ela arde feito uma queimadura de ferro. Como tal transmite sua forma para a pele causticada. Suas bordas, seus sulcos, sua forma.

O símbolo nefasto surge então repetidas vezes, sugerido em padrões caóticos que adquirem repentina ordem gerada por circunstâncias que são mais do que o acaso. Uma, duas, três vezes... ele se manifesta nas nuvens do céu, nas dobras de um tecido, no padrão de pássaros que alçam voo. A visão repetida do Símbolo abre a mente para experiências sensoriais que só podem ser descritas como alucinações conscientes. 

Aos poucos o símbolo altera a percepção, os sonhos, a memória e a própria identidade. Não por acaso, a frase repetidas pelos iniciados é "você viu o Símbolo Amarelo?" Este é uma espécie de código usado para identificar aqueles que foram tocados pelo insidioso brasão do Rei Amarelo.

A presença de Hastur se expandiu no século XX e seu nome foi absorvido pela crescente teia de Horror Cósmico conhecida hoje como o Mythos de Cthulhu. No centro dessa rede está o autor H.P. Lovecraft, um escritor obcecado pelo conhecimento ancestral, divindades incompreensíveis e a insignificância da existência humana em um vasto e indiferente universo. Lovecraft não inventou Hastur, mas tomou seu nome emprestado de Chambers, assim como Chambers fez com Bierce. 

Nas historias de Lovecraft o nome surge apenas de forma passageira, confinado em listas arcanas, murmurado em referências ocultas ou enterradas em textos proibidos. Ele jamais descreve a forma de Hastur e nem as suas ações. E é esse silêncio que concede ao nome seu poder.

Em um universo repleto de deuses monstruosos e dimensões alienígenas, Hastur permanece como uma das forças cósmicas mais incômodas de ser conceituada, precisamente porque ele jamais é revelado. 

Mais tarde, o fiel seguidor de Lovecraft e seu executivo literário, August Derleth levou o nome adiante. Derleth tentou organizar o Mythos em uma espécie de panteão estruturado concedendo a cada entidade desempenhando um papel e um alinhamento na hierarquia cósmica. Sob a mão de Derleth, Hastur se tornou um dos Grandes Antigos associado a decadência, loucura e a distante Constelação das Hyadis. Ele definiu que Hastur habitava o Lago Hali, concedeu a ele rivalidades, um culto e uma inimizade amarga com o Grande Cthulhu

Mas no momento que Hastur é enquadrado, como outros deuses, ancorados a coordenadas definidas e forçado numa ordem, algo se perde. O medo que Chambers incutiu na incompreensão do que é Hastur não resiste a uma classificação. Mas ainda assim, ele persevera e continua a se espalhar como uma presença impossível de conter.

Isso é o que separa Hastur dos outros deuses. 

Outras deidades no Mythos dominam através de uma escala, através da aparência ou pela força. Hastur domina através da presença. Ele sobrevive às contradições e prospera nas interpretações. Ele não precisa aparecer, sua força cresce quando ele apenas é mencionado. 

No Universo lovecraftiano, muitos horrores vêm das estrelas. Mas Hastur é diferente, já que ele se manifesta através de ideias, através da arte, da linguagem e de seu Símbolo Amarelo. Este é o seu modo de transmissão.

O Rei Amarelo que aparece na série True Detective não é um personagem, mas uma ideia costurada no background. O Símbolo Amarelo aparece em desenhos, Carcosa é citada como um lugar misterioso.  Os personagens se perdem perseguindo um significado que eles não são capazes de nomear. A narrativa se desenvolve em algo que sugere uma força antiga abaixo da superfície. 

Hastur hoje é usado como um tipo de analogia a um vírus narrativo. 

Ele se move através da língua, através da sugestão, por padrões ocultos. O leitor, o espectador e o ator disseminam essa doença cada vez que tocam na narrativa. 

O medo que Hastur impõe ocorre porque ele reescreve a realidade ao seu modo. Seu poder está em construir uma nova verdade e fazer as pessoas acreditarem que ela sempre esteve lá. O poder de Hastur é implacável e não pode ser negado. De muitas formas ele pode ser compreendido como a Entropia Encarnada. Uma variante que uma vez introduzida é capaz de destruir todo um sistema.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Cinema Tentacular: A Hora do Mal - Trama de Mistério e Horror sinistro é uma das melhores do ano


Há três anos, o diretor Zach Cregger estreou no cenário do terror com um filme chamado "Noites Brutais" (Barbarian/2022). Na ocasião de seu lançamento ninguém esperava muito, mas o filme atraiu a atenção da crítica. Sua trama era simples, mas muito inteligente, amparada por um elenco convincente, crítica social e uma direção extremamente competente. 

O resultado foi sucesso imediato! 

Com isso, o nome de Cregger ficou conhecido entre os fãs do terror e criou certa expectativa sobre seu próximo projeto que conforme ele alardeou em entrevistas também seria na seara do horror.

A espera finalmente acabou, com a recente estreia de "A Hora do Mal" (título um tanto esquisito para o original Weapons que significa apenas "Armas"). Mas escolhas de títulos à parte, A Hora do Mal, sem dúvida, desponta como um dos melhores Filmes de Horror de 2025.

Desde o inicio, a produção gerou repercussão, com a distribuidora New Line divulgando teasers, trailers e material de marketing incrivelmente assustadores que provocavam a curiosidade do público sem revelar excessivamente seu mistério. E essa foi uma tática extremamente eficiente para gerar burburinho ao redor do filme. 


Todos elementos do filme foram mantido sob estrita confidencialidade ao ponto de que astros, equipe e envolvidos não podiam dizer nada à respeito dele. Para que as reviravoltas e surpresas da trama não vazassem até memso termos de confidencialidade teriam sido assinados. E digo em primeira mão que esse foi uma jogada muito acertada, pois quanto menos você souber à respeito da trama de A Hora do Mal, mais assustadora será sua experiência ao assistir. 

Não é, portanto, tarefa fácil falar à respeito de um filme cuja premissa central, como eu acabei de dizer, carece de segredo, mas vou tentar. Não se preocupem, não vai haver spoilers aqui e tudo o que será comentado pode ser visto no trailer. 

A Hora do Mal gira em torno de um incidente traumático ocorrido em um lugar  chamado Maybrook, uma típica cidadezinha do meio oeste dos Estados Unidos. O inexplicável visita a comunidade quando exatamente às 2h17 da madrugada de uma noite como qualquer outra, um grupo de crianças de uma única sala de aula acorda repentinamente e desaparecem na noite. As crianças parecem fugir, sem motivo, sem razão. Diante da confusão, os pais das crianças desaparecidas rapidamente se juntam para tentar entender o que ocorreu. Sem uma explicação razoável eles acusam a professora Justine Gandy, de ter alguma ligação com o incidente. No entanto, quanto mais aprofundada a investigação do Caso Maybrook, mais sinistra a verdade se torna, à medida que as histórias de vários personagens se entrelaçam para revelar uma explicação aterrorizante 

E é isso tudo o que posso dizer sem transitar no perigoso terreno do spoiler. Mas mesmo esse pouco já cria uma sensação inquietante de curiosidade à respeito do filme. O que motivou essas crianças a fugir? Por que justamente elas? Por que apenas uma das crianças dessa classe não desapareceu com as demais? Quem está por trás desse mistério?

As perguntas são muitas, mas o filme consegue responder cada uma delas de maneira muito eficaz graças a maneira como o roteiro vai desenvolvendo a trama.


A Hora do Mal se concentra nos personagens envolvidos direta ou indiretamente no mistério, concentrando-se no ponto de vista de cada um deles e de sua percepção dos acontecimentos.  Dividido em pequenos episódios focados nesses personagens o enigma vai sendo descortinando pedaço por pedaço revelando um pouco da trama de cada vez. O espectador vai tentando juntar as pontas soltas em um exercício angustiante de compreender o que se passou.

Essa forma de contar a história se mostra muito engenhosa e cheia de suspense já que cada segmento oferece as peças para montar o quebra-cabeça geral. Cada episódio isolado deixa o expectador mais curioso para saber mais. A Hora do Mal consegue manter o público envolvido, ao mesmo tempo em que brinca com a tensão concluindo cada segmento com uma espécie de cliffhanger.

Muito do mérito do filme repousa na criação dos personagens e em suas motivações. É fácil se conectar com eles e entender seus dramas pessoais. A professora interpretada por Julia Gardner é o infeliz alvo da ira dos pais que não se conformam com o inexplicável incidente. Você realmente sente compaixão por ela, mesmo sem saber se ela está ou não envolvida no desaparecimento. Ao mesmo tempo que ela quer salvar as crianças, ela entra em uma rota autodestrutiva.

Archer Graff, vivido por Josh Brolin é outro personagem bastante interessante. Ele representa os pais das crianças desaparecidas de Maybrook, transbordando terror e frustração diante da situação inesperada. Decidido a não ficar de braços cruzados ele decide mergulhar no caso e investigar cada indício. Há também o policial que claramente tem boas intenções, mas que se deixa dominar pelas suas ações impulsivas e um bandidinho raia miúda que quer se dar bem com a tragédia. Esses personagens são propositalmente imperfeitos e isso os torna mais humanos graças as camadas que o roteiro confere a eles.

No entanto, em termos de atuação, são o jovem Cary Christopher, que interpreta Alex, a única criança da turma que não desaparece, e a veterana atriz Amy Madigan que mais se destacam. Os dois são os fios condutores da história, Alex como o narrador e Amy... bem, quanto menos se falar a respeito dela melhor. Então, vou deixar por isso mesmo.


Cregger dirige A Hora do Mal com confiança, criando uma atmosfera arrepiante e uma sensação de ameaça permanente. Você sente que algo está muito errado nesse pesadelo suburbano, mas não consegue juntar fatos suficientes para dizer o que é. Um dos meus aspectos favoritos nesse filme é como a direção consegue evitar sustos rápidos, e em vez disso, foca numa aura de pavor que parece pairar sobre o filme. Vários detalhes são incrivelmente assustadores,  como a maneira como foram coreografados os movimentos de alguns atores e o uso de imagens desfocadas em segundo plano na qual você percebe algo, mas não os detalhes. Cregger consegue fazer com que alguém simplesmente correndo pareça uma ameaça teleguiada, um perigo conduzido por uma força arrebatadora.

A trilha sonora também desempenha um papel de grande importância ajudando a construir a sensação de que algo maligno está sempre observando. A música transmite uma vibe anos 80 que combina perfeitamente com incontáveis clássicos de terror. É algo cativante que define o clima sinistro ao longo da trama. Mas o pavor não está apenas na música, mas em momentos torturantes de absoluto silêncio que permeiam sequências de tirar o fôlego.

Existem alguns furos na trama, provavelmente. Não é fácil construir uma história desse tipo sem recorrer a um pouco de suspensão de crença, mas isso não chega a atrapalhar ou comprometer o resultado final. 

A Hora do Mal é assustador, bem atuado, bem filmado, bem editado e bem escrito. Meu conselho a quem for assistir é se deixar levar pela história e mergulhar de cabeça. Larguem o celular, mantenham os olhos na tela e prestem atenção a tudo que acontece. Há alguns momentos divertidos que quebram o horror, sobretudo no final que me fizeram rir de nervoso, mas a conclusão é de cair o queixo.
 
No geral, Hora do Mal está na minha lista de ótimos filmes de horror do ano, graças a sua imaginação e criatividade. Se vale a pena assistir? Com certeza! 

Trailer: