TERCEIRO PILAR
A LOUCURA COMO RESPOSTA
“Em um mundo louco,
apenas os loucos podem ser chamados de sãos"
―
Se o Primeiro Pilar (a Insignificância Humana) revela a fragilidade do homem, e o segundo (as Forças Incompreensíveis) impõem as profundezas insondáveis do abismo cósmica, o Terceiro Pilar mostra o colapso inevitável da mente diante desse mesmo abismo.
Esse sem dúvida é um dos pilares mais importantes e controversos. Muitos se perguntam porque a exposição ao Horror Cósmico resulta num surto de insanidade que permeia grande parte das historias do gênero. Os personagens lovecraftianos, heróis e vilões, quando expostos ao Horror Cósmico recaem na insanidade e afundam na loucura. Eles tem a sua mente estilhaçada e jamais se recuperam.
Neste artigo vamos analisar a correlação do Horror Cósmico com Loucura.
No dogma lovecraftiano a insanidade não é apenas um sintoma individual — é a reação natural e coerente diante da terrível verdade escondida sob o véu da normalidade. Imagine a consciência humana como uma estrutura construída com o intuito de organizar o caos em formas compreensíveis. Ela depende da coerência, da causalidade, da ordem sensorial para funcionar.
Mas o universo lovecraftiano — ou cósmico em geral — não respeita essas leis. Quando um personagem se depara com algo que contradiz a lógica do mundo, a mente tenta reconciliar o impossível. Esse esforço produz o terror máximo: a dissolução da identidade e da razão. Em outras palavras: a insanidade advém da exposição às verdades cósmicas.
Em muitas histórias, o "louco" é o único que viu — e por isso o único que sabe a verdade. A insanidade é o derradeiro preço do conhecimento adquirido. O Horror Cósmico inverte a equação clássica da Filosofia Iluminista: o saber não liberta, o saber destrói, aniquila, oblitera...
Ademais, há algo de blasfemo na própria curiosidade.
Investigar, decifrar, compreender… tudo isso constitui um ato perigoso, pois conduz ao centro do labirinto onde a razão se perde por completo. Assim, o saber se torna uma forma de danação. A mais perigosa das ações é desvelar os segredos ancestrais.
Curiosamente, a loucura também pode ser uma forma de autopreservação. Diante da revelação letal, o indivíduo se refugia no delírio, o último abrigo da mente diante do inominável. Muitos protagonistas de Lovecraft terminam suas histórias em asilos, em delírio ou desaparecidos, não porque perderam a sanidade, mas porque fugiram da verdade.
A loucura é, paradoxalmente, o mecanismo que permite ao indivíduo continuar existindo após saber o que não se deveria ser conhecido.
Não se trata apenas de medo diante do desconhecido, mas sim de uma desintegração ontológica na qual o "eu" deixa de ser um ponto fixo, e o indivíduo se vê como um fragmento dentro de um todo incomensurável.
A loucura no horror cósmico é mais metafísica do que clínica. Embora possa até ser entendida sob um quadro médico, a experiência é de aniquilação interior. Um terror existencial no qual o pavor não é morrer, mas deixar de ser.
Lovecraft dizia que “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte medo é o medo do desconhecido."
A loucura é o estágio em que o desconhecido se apresenta em toda sua blasfema glória e não há sanidade capaz de absorver tais revelações.
De todos os Pilares do Horror Cósmico, a Loucura é o único que se encontra tipificado como regra da ambientação. Em Chamado de Cthulhu, regras específicas definem como se dá o desgaste mental dos personagens e como eles vão escorregando em uma condição na qual abraçar a loucura é a única solução viável.
Mas como descrever essa degradação além de um sistema de regras?
Como emular a perda da sanidade de uma maneira factível, que faça sentido para o cenário e para o sistema estabelecido?
Aqui temos algumas sugestões que visam complementar a experiência da perda de sanidade, tornando esta algo mais do que um simples teste que resulta em números sendo diminuídos.
Sanidade como drama
A perda de Sanidade, seja ela menor ou maior, deve ser significativa, não apenas numérica. O Guardião deve tentar esconder o máximo possível os números e recorrer a descrições que expliquem a sensação de se perder na revelação.
Descreva o impacto psicológico da Revelação e como ela afeta o indivíduo usando para isso diferentes recursos:
- Eterno Flashback
O personagem não consegue esquecer uma cena, ela parece gravada em sua mente como se um ferro em brasa tivesse queimado a revelação em sua mente. Essa imagem se torna recorrente, indo e vindo em ondas que não podem ser esquecidas. Por exemplo, a visão de um portal dimensional se abrindo é revisitada inúmeras vezes, seja em portas se abrindo, em janelas sendo escancaradas ou nuvens se movendo para revelar o sol. O surgimento de um Abissal do fundo do mar se repete sempre que o personagem está perto do litoral, no movimento das marés e no cheiro de água salobra.
A imagem do aterrorizante surge no dia a dia com uma frequência alarmante. O momento de supremo horror é revisitado inúmeras vezes e passa a minar a própria capacidade de funcionar de forma coerente. O Guardião pode inserir esses flashbacks em momentos de paz e tranquilidade, uma lembrança da irracionalidade do universo e tornar tudo ainda pior quando o personagem for exposto uma vez mais ao Mythos.
- Paranoia Latente
O personagem olha frequentemente sob o seu ombro, não por temer que alguém possa estar observando ou o seguindo. Não... ele sabe que alguém está atrás dele e que está cada vez mais perto, fechando um círculo ao seu redor.
A Paranoia Latente é a sensação de que algo está oculto no canto, que um inimigo espreita constantemente e que uma sala escura esconde horrores indescritíveis imersos nas trevas. A Paranoia é uma constante na vida daqueles que escorregaram para os reinos da insanidade.
O Professor que sente numa brisa a lufada das asas dos Noitesguios que vieram para carregá-lo. O diletante que não consegue confiar em ninguém vestindo roupas amarelas depois de um episódio em Carcosa. O vagabundo que se sente aterrorizado toda vez que precisa passar perto de um cemitério, uma vez que ele sabe que carniçais estão lá embaixo, em túneis se alimentando dos mortos.
- Lapsos de Memória
Quando a mente se perde nas raias da loucura, ela começa a pregar peças horríveis na cronologia do indivíduo. A mente apaga cenas inteiras, faz sumir momentos importantes e até pode substituir traumas por cenas mais afáveis.
Os lapsos de memória são uma maneira contundente de minar as resistências e certezas do personagem, fazendo com que ele questione o que aconteceu: ele não sabe mais o que é real e o que é sonho.
O investigador que acorda no meio da madrugada e descobre que suas roupas estão sujas, amarrotadas e cobertas de terra sem que ele recorde ter saído de casa. O médico que não sabe se receitou o tranquilizante correto para um paciente e que não sabe ao certo se o remédio que preparou contém os ingredientes certos ou veneno de rato. A mãe que jura ter passado horas na companhia de seus filhos, mesmo que estes tenham morrido em um incêndio anos atrás.
Os lapsos de memória oferecem uma substituição para os horrores enfrentados. Eles preenchem lacunas e alteram as percepções para aquilo que os indivíduos desejam vivenciar - mesmo que não seja a realidade.
- Comportamentos ritualísticos
Quando o senso de normalidade se perde, pequenos rituais executados diariamente também perdem o sentido. Aquilo que norteava a existência começa a perder a razão de ser. A mente fraturada pela Loucura do Mythos não consegue mais correlacionar qual é o comportamento convencional a ser adotado em cada situação.
Para tentar lidar com isso, o indivíduo tenta se agarrar a pequenos rituais que refletem um estado perdido de normalidade. Ele sabe que aquelas coisas - que não fazem mais sentido, são uma ligação com a sua vida pregressa, e desejam desesperadamente que esses hábitos comuns resgatem seu senso de normalidade.
O policial que limpa sua pistola de serviço sem parar, checando as balas incontáveis vezes para ter certeza de que a arma está carregada corretamente. O historiador que todo dia de manhã sente a necessidade de recitar trechos de discursos importantes e repetir datas como se estas lhe dessem um senso de familiaridade com o passado. A enfermeira que precisa lavar suas mãos centenas de vezes pois quem pode imaginar o tipo de sujeira e impureza em sua pele. Ela esfrega as mãos ritualisticamente com sabão, com detergente, com álcool, até elas sangrarem... mas a sensação de que há algo sujo persiste.
- Incoerência Delirante
Um dos maiores males da Loucura é a incapacidade de racionalizar o mundo diante de um universo caótico. Ser sobrepujado por uma onda de incertezas e questionamentos é uma espécie de maldição que os afligidos pela Loucura do Mythos carregam. O indivíduo passa a ver o mundo sob uma ótica particular, só sua, na qual os delírios passam a controlar seu dia a dia.
Cenas estranhas, alucinantes e delirantes se insinuam na realidade, ocasionando situações absurdas que não obstante parecem perfeitamente reais. Separar o real do fantasioso se torna um exercício de futilidade já que tudo aquilo parece fazer sentido na mente fraturada.
O arqueólogo que percebe sutis movimentos em uma múmia exposta em um museu e que imagina ser ela capaz de despertar em noites sem lua. O antiquário que ouve estranhas vozes vindas de objetos que pertenceram a pessoas mortas à séculos e que parecem desejá-los de volta. A visão medonha de um artista que enxerga em telas padrões absurdos contendo revelações aterrorizantes.
- Mudança Física
A imagem externa do indivíduo reflete o Caos que domina sua mente. A aparência do indivíduo é afetada pelo turbilhão furioso que assomou a sua mente fraturada transbordando para seu exterior.
Esse efeito se manifesta em pequenas coisas que vão aumentando e se tornando cada vez mais evidentes. Aqueles que conheceram o indivíduo imediatamente percebem os trejeitos, os cacoetes e o comportamento atípico que não se encaixa na imagem anterior.
A atriz que insiste em raspar seus cabelos e ferir seu próprio corpo como uma maneira de enganar as criaturas que a perseguem. Se ela ficar diferente, talvez eles não a reconheçam e a deixem em paz. Um conhecido advogado que decide se mudar para o campo e levar uma vida de reclusão extrema, deixando crescer barba e cabelos até ficar irreconhecível, com uma aparência selvagem e feroz que em nada espelha seus cuidados anteriores. O Ocultista calejado que decide que a única maneira de se preservar diante dos horrores é tatuar seu corpo com símbolos de proteção retirados de tomos arcanos. Ele escolhe cada símbolo cuidadosamente, pois sabe que talvez não haja espaço suficiente em sua pele.
As mudanças físicas são uma forma de evidenciar a terrível degradação dos personagens.
A Percepção alterada pela Revelação
Um dos princípios importantes da Loucura ocasionada pelo Horror Cósmico é que "Aquele que enlouquece vê mais do que os outros. Um terceiro olho, da percepção se abre para o mundo invisível"
A insanidade parece conceder insights ou vislumbres de verdades proibidas que apenas os calejados são capazes de perceber. Um Guardião dedicado irá usar isso para construir cenas ambíguas, onde o jogador duvida se suas percepções são reais ou não.
Lembram na série True Detective quando o personagem de Rusty Cohle vê pássaros alçando voo e rodopiando no ar como uma nuvem que forma o Símbolo do Rei de Amarelo no céu? Lembram de Frank Black na série Milênio que tinha estranhos insights sobre a natureza humana? Ou a protagonista de Long Legs que parece ter uma espécie de sexto sentido para coisas estranhas e perturbadoras que estão prestes a acontecer. Personagens que perderam sanidade e que estão trilhando o caminho da Loucura podem manifestar estranhas sensações que concedem um colorido especial à campanha.
Como o Guardião pode usar isso em uma sessão de Chamado de Cthulhu:
- Altere a percepção de tempo e espaço — descreva coisas que não fazem sentido, mas sem tentar se esforçar para explicá-las. O mundo começa a se distorcer conforme a sanidade diminui. Padrões podem ser vistos ou sentidos em pequenas interações nas quais o Caos permeia a realidade.
- Utilize sonhos recorrentes e incoerentes; os personagens se tornam um canal para sonhos premonitórios, maus agouros ou sensações indescritíveis que acabam se confirmando. Não são sonhos claros, muitos deles podem ser fantasiosos ou absurdos, mas seu sentido só é compreendido no momento em que se confirmam.
- Faça uso de sensações únicas que beiram a sensitividade; personagens que foram tocados pelo Mythos desenvolvem um tipo de sexto sentido para o sobrenatural. Não se trata de um "sentido de aranha", que o ajuda a escapar do horror com agilidade, mas de uma sensação desagradável e poderosa.
Talvez ele sinta uma tontura toda vez que o Mythos esteja próximo, um fedor de carniça onde coisas horríveis aconteceram em algum momento ou uma espécie de ataque de pânico sempre que o Caos irracional esteja se insinuando em nossa realidade.
- Forneça Insights na forma de visões repentinas; a cena de um crime que se revela em detalhes sanguinolentos para um investigador criminal. Em um momento de total lucidez o indivíduo é capaz de se colocar na cena e testemunhar em primeira pessoa tudo o que aconteceu ali. Da mesma maneira um Antropólogo observando uma tribo primitiva percebe detalhes sobre suas medonhas práticas religiosas observando o templo onde sacrifícios foram realizados. As visões na maior parte das vezes são devastadores e aterrorizantes por isso limite o uso desse recurso para momentos chave da sua trama.

As regras de Loucura de Call of Cthulhu (e demais sistemas cthulhianos) já são primorosos, mas as dicas aqui apresentadas realmente servem para "turbinar" ainda mais aplicação de Insanidade...
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