quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A Configuração dos Lamentos e LeMarchand - O Legado Infernal de Hellraiser

Eu sempre fui fã da literatura do escritor britânico Clive Barker. As coisas que ele escreve costumam causar um certo desconforto e ficam impressas na nossa memória por um bom tempo.
Seus contos (sobretudo os da série Livros de Sangue), romances (como O Jogo da Perdição e Sacramento) e novelas (os longos A Trama da Maldade e Galilee) o lançaram como um dos maiores expoentes do gênero horror na atualidade.

Barker tem um estilo bastante diferente de Lovecraft. Seu horror é mais visceral, mais cru e atordoante, sobretudo nas descrições minuciosas. Suas estórias incluem monstruosidades antigas e inomináveis, mas ele concede igual atenção a manifestações sobrenaturais tradicionais como fantasmas, espíritos e aparições. Seus vilões são movidos por paixões reais, as mesmas que impelem seus heróis cheios de defeitos e falhas de caráter. Enquanto Lovecraft trata de um horror cósmico que transcende a Terra e a própria humanidade, Barker se concentra em colocar o homem no centro de uma teia de terror que o envolve e sufoca. Sexo, sofrimento e encanto são comuns em suas narrativas, sendo que muitas vezes essas qualidades se misturam.

O horror contemporâneo de Barker habita casas antigas, bairros de classe média e grandes centros urbanos industriais. E quando seu horror se apresenta ele se faz de modo ruidoso e sanguinolento.

De suas criações, a mais conhecida talvez seja "The Hellbound Heart", não pelo romance em si, mas pela sequência de filmes conhecidos como Hellraiser inspirado por ele. Nem todos os filmes da série Hellraiser são bons, na verdade a série afundou faz tempo, mas algumas cenas ainda são bem impactantes e os dois primeiros filmes merecem ser vistos pelos apreciadores do horror.

Parte indelével do universo de Hellraiser, a Configuração dos Lamentos é uma espécie de caixa portal para outras dimensões. O tipo do artefato oculto extremamente perigoso que fascina e atrai pessoas ávidas por descobrir seus segredos. A caixa, como acontece na maioria das tramas de Barker conduz a acontecimentos inesperados.

Eu relutei um pouco em escrever uma postagem à respeito de Clive Barker. No que diz respeito a RPG, Cthulhu não seria minha primeira opção para espelhar o terror de Barker; KULT (Um lendário RPG sueco barra pesada) me parece mais apropriado. Fear Itself, da Pelgrane também é uma boa opção para esse enfoque.

Entretanto, o Malleus Monstrorum, um livro de Call of Cthulhu, usa os cenobitas (demônios dimensionais contatados pela Caixa) como exemplo de novas criaturas para Call of Cthulhu. Eu próprio coloquei um cubo no nosso Live Action e escrevi uma aventura envolvendo o artefato e os cenobitas com o sugestivo título "No Pain, no Gain".

Assim sendo, sem pudores, segue uma versão da mitologia de Hellraiser adaptada para o Universo de Cthulhu. Vamos começar com...

A CONFIGURAÇÃO DOS LAMENTOS

Tratava-se tão somente de um objeto brilhante em forma de cubo, mas que de alguma forma fascinava e atraia seu olhar.

Julia esticou a mão tencionando se aproximar, mas Frank foi mais rápido: "Não toque" ele a conteve apertando sua mão com força e tirando o cubo de seu alcance.

"O que ele faz?" perguntou Julia ainda fascinada pelo brilho do objeto, seus detalhes e floreios intrincados a atraíam de tal forma que ela não conseguia tirar os olhos dele.

"Ela abre portas... para outros lugares, outras experiências." foi tudo o que ele conseguiu dizer, tão simples e tão verdadeiras eram suas palavras.


The Hellbound Heart - Clive Barker

História

A Configuração dos Lamentos foi supostamente construída pelo artesão e arquiteto francês Phillip Lemarchand em meados de 1749. Também conhecida como Configuração de Lemarchand, Caixa Miraculosa, Caixa de Pandora e Artefato Lemarchand, o objeto é bastante conhecido em círculos de estudo oculto.

Ela consiste de cinco peças distintas, que se encaixam perfeitamente através de engrenagens internas e de um complexo mecanismo semelhante a um relógio suíço de precisão. Cada peça é construída individualmente em bronze e recoberta de laca preta, sua superfície interna é polida como um espelho. Em seguida foram adicionados detalhes em latão dourado nas extremidades externas com floreios e arabescos entalhados a mão.

O cubo é na verdade um quebra-cabeça incrivelmente intrincado. Suas extremidades podem ser deslizadas suavemente transformando os desenhos na superfície em centenas de configurações diferentes. A mais impressionante característica do cubo é que ele pode ser usado para abrir portais para outras realidades. No caso da Configuração dos Lamentos ela abre uma passagem para uma realidade que muitos consideram como sendo o próprio inferno. Existe a crença que ela também pode abrir uma passagem para o paraíso, mas que em conformidade com a passagem bíblica "há 999 portas para o inferno e apenas uma que conduz ao reino dos céus".

Manipular a caixa exige um conhecimento extremo de enigmas e do funcionamento de quebra-cabeças. Compreender o funcionamento do mecanismo interno requer concentração extrema e muitos ocultistas dedicam anos pesquisando antigos tomos em busca da maneira correta de manipular o cubo. Certos livros, como o extremamente raro "Caenobium" trazem detalhes sobre esses pormenores, mas se ele é preciso ninguém sabe ao certo. Por via das dúvidas, os mais cautelosos, evitam até mesmo tocar o cubo. O cuidado é justificável pois cada movimento das extremidades pode alterar os desenhos na face do artefato e causar uma reação indesejada.

A Configuração está intimamente ligada a criaturas conhecidas como Cenobitas, servidores demoníacos de Leviatan o Senhor do Labirinto. Estas entidades obscuras habitam outra realidade e se alimentam de sensações, sobretudo dor e sofrimento, impingidas em outras pessoas. Eles próprios não conhecem emoções ou sensações a não ser o êxtase experimentado pela flagelação. Para muitos, a dimensão dos cenobitas é o Inferno e qualquer um aprisionado nela experimenta o próprio.

Cenobitas se manifestam em nossa realidade através de portais dimensionais. Seu propósito é escoltar o indivíduo até sua dimensão e apresentá-lo às brutais ferramentas de tortura que eles manejam habilidosamente. O horrível ritual tenciona submeter a pessoa a um suplício extremo que transcende a definição de dor penetrando no êxtase. Qual o propósito desse martírio não se sabe, mas alguns conjecturam que o sofrimento físico nutre o Leviatã - a força responsável pela existência do inferno.

Sobre Phillip Lemarchand

Phillip Lemarchand viveu na França pré-revolucionária. Ele foi um arquiteto, artesão e designer postumamente apontado como um dos mais prolíficos, embora não confirmados, assassinos de sua época.

Lemarchand primeiro ficou conhecido pela construção de intrincadas caixas de música que rapidamente se tornaram uma febre na França. As caixas, conhecidas como Peças Lemarchand eram verdadeiras obras de arte com características, melodias e desenhos únicos. Posteriormente em 1749, o artesão começou a desenhar novas peças em forma de caixa. Os cubos, chamados de Configurações, eram artefatos delicados, criados com extremo talento. Eles encontraram um público seleto formado por nobres e burgueses ávidos por novidades.

No ápice de sua carreira, Lemarchand era um dos artesãos mais prestigiados da França e foi contratado para construir peças que lhe trouxeram fama e fortuna. Dizem que ele teria trabalhado até para os Reis de França na criação de jóias exclusivas. Por volta de 1755, Paris foi assolada por escandalosos e inexplicáveis desaparecimentos, quase sempre envolvendo indivíduos ilustres, muitos dos quais, clientes de Lemarchand que haviam adquirido suas peças exclusivas.

Suspeitas recaíram sobre o artista, especialmente depois do misterioso desaparecimento de seu aprendiz, o filho de um conceituado ourives. Lemarchand foi indiciado e aprisionado pelas autoridades que o interrogaram. Os detalhes do inquérito movido contra Lemarchand desapareceram durante o caos que se seguiu à Revolução, mas sabe-se que ele chegou a ser julgado.

A despeito de uma suposta condenação, Lemarchand conseguiu escapar e segundo rumores se estabeleceu por volta de 1782 na Espanha. Em 1797, ele atravessou o canal da Mancha se refugiando em Londres. Em 1811 finalmente retornou à Paris, onde desapareceu assim como muitas de suas alegadas vítimas.

A Lenda

O nome Lemarchand é associado a morte e mistério. As atrocidades atribuídas a Lemarchand fazem dele uma dos mais infames figuras da história da França, rivalizado apenas por Giles de Rais, este sim um genocida comprovado. Curiosamente nunca foram apresentadas provas contundentes que o ligassem a qualquer desaparecimento ou assassinato. O vínculo que ele tinha com uma grande quantidade de indivíduos que simplemente sumiram sem deixar vestígios o colocavam como principal suspeito.

As lendas mencionam que o artesão dissolvia os corpos de suas vítimas em tinas de ácido no seu ateliê ou que as queimava em uma enorme lareira. Para ajudá-lo nessa sórdida tarefa ele contaria com o auxílio de comparsas, criados, ghouls e até diabretes que o serviam fielmente. As conjecturas variavam enormemente na época que Lemarchand foi acusado.

O julgamento foi um acontecimento, mas a despeito de sua notoriedade, pouco se sabe de concreto sobre o homem. Quase todas as informações existentes se baseiam em rumores e especulações. A maior parte de suas construções arquitetônicas (supõe-se que eram pelo menos 15 em Paris) foram destruídas durante o período de reurbanização d cidade ou posteriormente na Segunda Guerra Mundial. Existem poucos registros documentando eventos de sua vida privada, sequer se sabe ao certo se ele foi casado e se teve herdeiros. Mesmo as suas obras de arte mais famosas, as Configurações são raras e concedem poucas informações.

Sabe-se que ele nasceu em meados de 1717, foi educado na Academie Royale de Pinture et Sculpture em Paris nas primeiras décadas do século XVIII, que era um maçom, e que ele se mudou para a Espanha e depois para a Inglaterra a fim de se livrar do estigma pela associação de suas obras com misteriosos desaparecimentos. Sabe-se que ele tinha interesse em assuntos esotéricos e que era um entusiasta de ocultismo. Os rumores na época do julgamento insinuavam que ele tinha um pacto com o demônio e que Lúcifer em pessoa havia lhe concedido talento singular.

Seria esta última informação a respeito de Phillip Lemarchand a razão de sua infâmia. Teria sido o interesse dele por assuntos sobrenaturais que ocasionou sua fama como homem dado a comportamento bizarro e possível homicida? Fato é que as poucas notas de rodapé sobre Lemarchand sempre vem acompanhadas de comentários desabonadores. Ele teria matado um criado que falhou em uma tarefa, teria castigado uma jovem que não cedeu seus encantos, teria assassinado comerciantes que se negaram a negociar com ele...

Mas nenhuma dessas façanhas jamais foi comprovada. A maioria dos dados a respeito do artista se perderam, quando ele fugiu da França após seu julgamento. Sua casa e posses haviam sido destruídas e saqueadas pela população parisiense. A maior parte dos registros sobre sua vida também acabaram destruídos por ordem de nobres que temiam ter seus nomes associados a um possível assassino.

O nome de Lemarchand acabou passando para a história pela infâmia de seus supostos atos, contudo, após a Revolução francesa e os anos do Terror, o impacto desses boatos empalideceram diante de atrocidades cotidianas bem reais.

O Legado de Lemarchand

Acredita-se que o artesão construiu mais de 270 cubos antes de desaparecer. Estas peças mudavam de mãos rapidamente, ainda que colecionadores as buscassem avidamente.

Lemarchand tinha a venerável idade de 94 anos quando retornou a Paris e se hospedou no L'Hotel D'Arnais no Quartier Latin, um prédio cuja planta ele próprio desenhou. Ele jamais saiu de seu quarto, recebia a comida na porta e não se ausentou dao cômodo nos três meses que ficou hospedado. Quando o gerente do hotel finalmente entrou no aposento após dias sem notícia dele, encontrou apenas a mobília, e uma das Configurações depositada sobre uma poça de sangue. Talvez tenha sido um fim adequado, juntar-se ao mistério daqueles que desapareceram.

O nome de Lemarchand ainda é citado pelos entusiastas de seu brilhante trabalho como artesão e arquiteto. Alguns prédios projetados por ele ainda estão de pé na parte antiga da cidade e uma luta para reconhecer o valor histórico arquitetônico de suas obras está em curso.

Lemarchand contudo será lembrado pelas suas Configurações. Ocultistas de renome como Austin Osman Spare, Eliaphas Levi, A.E Waite e Aleister Crowley mencionaram em algum momento de suas obras os cubos criados por Lemarchand como poderosos artefatos dotados de poder oculto.

Muitas figuras na história teriam tido contato com Configurações. Voltaire foi presenteado com uma das peças, assim como Benjamin Franklin que em sua visita a Paris recebeu um cubo que tratou de levar para a América. Francis Dashwood, o fundador do célebre Clube do Inferno teria adquirido um cubo que foi usado em rituais nas catacumbas de Edimburgo. O Conde de St. Germain por um curto período de tempo teve uma configuração presenteada a Catarina da Rússia pouco antes dela assumir o poder. O Czar Nicolau II teria adquirido essa mesma peça pouco antes da Revolução Bolchevique, e Stalin foi seu último dono. O cineasta Cecil B. Demille se orgulhava de ter um cubo em sua coleção, assim como o dono da Standart Oil, Nelson Rockfeller que doou a sua peça para o Museu Smithsonian. O arquiteto do nazismo Albert Speer vasculhou Paris em busca de peças Lemarchand e após a Segunda Guerra rumores a respeito de peças surgindo e desaparecendo circularam sem parar.

O interesse de colecionadores em todo o mundo ainda é grande no que se refere às peças exclusivas de Lemarchand. Talvez o interesse despertado por elas esteja abaixo apenas das peças do designer Fabergé. Para se ter uma idéia uma configuração construída em 1764 foi vendida na Tailândia em um leilão fechado em 1998. O objeto foi arrematado por um colecionador cuja identidade não foi revelada pela quantia de dois milhões e meio de dólares.

12 comentários:

  1. Já vi várias fan arts referentes ao cubo e são todas impressionantes. O plot é muito bom para assustar os jogadores só de citar na mesa sobre Le Marchand...

    Sobre outra coisa, qual o melhor gameboard: Mansion of Madness ou Arkhan Horror? Tenho dúvidas qual adquirir.

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  2. Simplesmente magnífico o post. Recentemente criei uma adaptação do Hellraiser para o sistema GUMSHOE (Rastro de Cthulhu) http://viladorpg.wordpress.com/2012/01/10/hellraiser-adaptacao-para-rastro-de-cthulhu-gumshoe/ e certamente esse post teria sido extremamente útil e teria mudado muita coisa na adaptação. Quem sabe fica pra uma 2ª Edição...
    Muito bom de verdade cara! Parabéns.

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  3. Murderface:

    Arkham Horror e Mansion são jogos bastante diferentes embora tenham a mesma temática. EU pessoalmente prefiro o Arkham Horror, acho a temática dele mais inovadora. Sem desmerecer o Mansions, mas na medida que ele se aproxima de ser um RPG fica a pergunta: "porque então não jogar um RPG"?

    Quanto a adquirir, é possível encomendar de fora, mas existe o risco de cair na alfândega. A melhor opção é recorrer a alguém que está viajando para fora (e não se importe de trazer o peso extra) ou importar com alguma loja especializada.

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  4. Para Alanioly.

    Rapaz, eu não tinha visto a sua postagem recente no Vila do RPG. Ficou sensacional sua adaptação para o Gunshoe, pensei em adaptar para esse sistema também em um próximo post, mas acho que a sua versão já cobriu todos os pontos. Se alguém quiser usar os dois materiais em conjunto não vejo problema. Muito bom! Parabéns!

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  5. O único problema em querer jogar uma aventura com estes elementos é que basta o mestre colocar um Configuração na mesa que todos já sabem o que está acontecendo....

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  6. A idéia é essa mesma, vou mandar para a casa de um colega no Canadá que a namorada irá visitá-lo em breve e trará para mim! Então a escolha é Arkham Horror! Obrigado

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  7. eu gosto de Hellraiser, só que não considero bom para adaptar a rastros de cthulhu. acho que tem menos suspense no Hellraiser do que nos contos do lovecraft

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  8. Fico surpreso como jogaram uma franquia no lixo. Os primeiros filmes foram excelentes.

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  9. De fato, é uma pena que os filmes tenham descambado para o tipo mais rasteiro de terror. Mas havia o boato que o novo Hellraiser (remake do primeiro) seria bastante fiel ao conto que o originou.

    Até agora estou esperando pelo filme que já deveria ter sido concluído.

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  10. Nossa! Quanta coisa aprendi aqui! Fantástica a sua publicação!!! Após ter lido um comentário sobre a “Caixa de Lemarchand”, da qual não conhecia absolutamente nada, fui ao Google e encontrei o seu blog. Sorte a minha ter acessado a página! Obrigada por tantas boas informações!!!

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  11. Teria Rubrik se inspirado nesse cubo para criar seu famoso Cubo???

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  12. Recomendo somente os dois primeiros... O resto, putz, que grande trasheira.

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