quinta-feira, 5 de abril de 2012

Religião e o Mythos - Relacionando os Antigos com as crenças de ontem e hoje

Muitos autores que trabalham com o Mythos evitam fazer conexões diretas entre suas criações fictícias e as religiões formais existentes.

Esse ponto de vista tem menos a ver com ateísmo do que com o materialismo: nas estórias, cultistas do Mythos tipicamente veneram "entidades" feitas de carne e osso (ou algo similar), e se associam com seres não-humanos em suas cerimônias, como os Abissais e outras raças, compartilhando seus fundamentos e crenças. De certa forma, eles sabem da existência concreta das criaturas por eles veneradas, enquanto as demais religiões "tradicionais" dependem quase que puramente da fé.

H.P. Lovecraft sempre deixou claro que um dos grandes diferenciais de sua obra para seus predecessores é o caráter materialista do universo por ele vislumbrado. Suas criações não são formalmente deuses ou demônios dentro de um contexto puramente religioso. As "divindades lovecraftianas" provém de outras realidades, outros planetas, outras esferas além do tempo e espaço, e embora possam ser considerados como "deuses" em virtude de seu poder, a designação não é inteiramente apropriada.

Se as formigas em um jardim fossem dotadas de consciência e discernimento, será que elas tomariam os gigantes humanos que andam pelo quintal como deuses? E mais importante esses "deuses" as perceberiam de alguma forma?

Na obra de Lovecraft, o que faz dos Grandes Antigos "deuses" é a percepção e a sujeição das pessoas que se congregam em cultos ao redor deles. A consciência da insignificância da humanidade diante dessas forças colossais, simplesmente compele os indivíduos a se atirar de joelhos implorarando pelo favor ou por piedade. Podemos dizer que Lovecraft era tendencioso ao explicitar que culturas "inferiores", "primitivas" e "mestiças" tinham maior tendência a se sujeitar a essas entidades de corpo e alma. Assim é por exemplo em "O Chamado de Cthulhu" onde o Grande Antigo é o foco de um culto global cujos centros de poder se encontram nos pântanos, nos ermos e nos recônditos do mundo civilizado.

Os deuses, se tanto, poderiam ser as entidades cósmicas, os Deuses Exteriores que representam tempo, vida, caos... mas mesmo estes, Lovecraft não tratava como entidades: Yog-Sothoth, Azathoth, Shub-Niggurath não controlam o universo, ao invés disso são a personificação dos elementos que compõem o universo. Sem eles tudo desmoronaria. Eles não são, por analogia os regentes do castelo, e sim o próprio castelo, as paredes, a argamassa e a estrutura.

Nesse sistema complexo qual seria a função das religiões formais? Qual o papel do cristianismo, judaísmo, islamismo, hinduísmo...

Lovecraft em momento algum de sua obra afirmou categoricamente que Deus não existe. O que é curioso para alguém como o próprio Lovecraft, que se definia como um ateu convicto.

Alguns defendem que os Deuses Antigos (Elder Gods) são uma tentativa de Lovecraft de inserir no universo tumultuado do Mythos as divindades tradicionais. O mais conhecido representante desse Panteão é Nodens, uma divindade concebida na mitologia celta. Se o deus celta é também um Deus Antigo, os outros deuses também o são?

Lovecraft jamais entrou nesse mérito e com a sua morte outros tentaram responder essa pergunta. August Derleth um de seus seguidores mais próximos tentou traçar uma linha divisória que separava o universo em duas frentes bem definidas: o bem e o mal.

Na concepção de Derleth, os Grandes Antigos seriam forças elementares malignas (Cthulhu=água, Cthugha=fogo, Hastur=ar e Nyarlathotep=terra), enquanto os Deuses Antigos representariam forças benevolentes que tentariam preservar a humanidade. Os dois lados antagônicos se enfrentariam desde o início dos tempos. Derleth chegava até a sugerir que o alinhamento de estrelas responsável por aprisionar os Grandes Antigos teria sido impetrado pelos Deuses Antigos através de alguma magia ou ritual poderoso.

O ponto de vista de Derleth tem muito a ver com sua crença pessoal cristã, em contraponto com a visão de Lovecraft de um universo onde a existência de deuses "que se importam com a humanidade" é no mínimo questionável.

Muito criticado pelas suas idéias, Derleth foi acusado de desvirtuar um dos dogmas centrais do Mythos: a Indiferência Cósmica. Ao afirmar que os Deuses Antigos tentam defender a humanidade contra as depredações dos Grandes Antigos, assumia que a humanidade tinha alguma importância ou função nessa guerra cósmica. O ponto de vista entra inclusive em contradição se considerarmos que a humanidade foi gerada por acidente nos laboratórios dos Elder Things (como alude Lovecraft em Montanhas da Loucura).

Após a morte de Derleth, alguns autores tentaram contornar a questão e desmentir essa relação de dicotomia, bem versus mal.

Os Deuses Antigos começaram a ser descritos não como entidades bondosas e generosas, mas como seres distantes da humanidade. Sua luta contra os Grandes Antigos estaria acima de tudo, inclusive do bem estar da própria humanidade. Se de alguma forma, a humanidade se beneficiasse dessa postura, seria por mero acaso, puro Deus ex Machina.

Ao contrário de Derleth, a maioria dos autores a partir de então preferiu evitar inserir entidades do passado na classe dos Deuses Antigos. De um modo geral, essa classe inteira ficou defasada em relação aos Grandes Antigos, muito mais numerosos. Formalmente, além de Nodens, podemos citar apenas Hypnos (um deus grego), Bast (uma deusa egípcia), Ulthar e mais alguns poucos nomes obscuros.

Além disso, muitos autores começaram a interpretar deuses do mundo antigo, venerados por civilizações do passado, como disfarces assumidos por uma mesma entidade superior.

Dentro do universo de indiferença dos Mythos para com a humanidade, existe uma notável exceção: Nyarlathotep.

O Caos Rastejante não apenas tem ciência da existência da humanidade, mas aparentemente se diverte manipulando, incentivando ou coibindo seus esforços ao longo das eras. Há rumores que dão conta que ele foi ele o responsável por sussurrar na mente dos homens a idéia para armas terríveis, do arco e flecha ao gás mostarda, das armas de cerco até os mísseis intercontinentais. Quando cientistas romperam o átomo, teria sido Nyarlathotep quem possibilitou a façanha.

Porque Nyarlathotep se importa com a humanidade é um segredo, um enigma, um mistério sem explicação.

Fato é, que Nyarlathotep assume a forma de inúmeros avatares para interagir com povos ao redor do mundo e é visto como um deus por muitos deles. Pelo cânone do Mythos, Nyalarthotep é a identidade verdadeira de várias divindades: Aku-Shin-Kage (no Japão), o Barão Samedi (entidade do Vodu), Pan (na Grécia Clássica), Cernunnos (deus celta), Kokopelli (deus nativo americano), Pazzuzu (demônio sumério-babilônico), Set e Thoth (ambos deuses egípcios), Loki (Deus Nórdico), Tezcatlipoca (divindade Azteca)...

Todos esses aspectos pertenceriam a Nyarlathotep, o Grande Enganador, fazendo-se passar por divindades que um dia foram seguidas por homens e mulheres.

Isso nos leva a um ponto delicado. E se isso ainda estivesse acontecendo? E se as principais religiões fossem na verdade uma terrível e derradeira brincadeira de Nyarlathotep para manipular espiritualmente a humanidade ao seu bel-prazer?

Fanatismo, intolerância, perseguições, terrorismo, guerras... embora a maioria das religiões professem a sabedoria do bem e a virtude da paz, é inerente ao homem perverter esses ensinamentos e transformá-los em algo aberrante. Há muitos exemplos ao longo da história e eles continuam acontecendo à despeito de nossa alegada civilização.

Pensando no poder e influência que as religiões detinham até recentemente (e que ainda detém em vários cantos do mundo) não seria totalmente improvável que Nyarlathotep fosse o idealizador e controlasse as maiores religiões da atualidade.

O conceito de Nyarlathotep sendo a verdadeira face por trás do demônio da tradição judaico-cristã não é exatamente novo. Mas o que aconteceria se o Caos Rastejante tivesse decidido jogar dos dois lados para assim garantir seu domínio sobre a humanidade? Há uma infinidade de Anjos, Santos, Mártires e mesmo de Messias que poderiam secretamente esconder a face sardônica do Grande Enganador.

É o tipo do pensamento terrível que poderia ocupar toda uma campanha com duras revelações capazes de abalar permanentemente algumas das crenças mais profundas da humanidade.

Nota: a imagem no alto desse artigo é baseada no quadro "One Nation Under God", uma adaptação apocalíptica do arrebatamento de uma nação diante de um Grande Antigo, no caso Cthulhu.

Nota 2: Esse artigo não busca desvirtuar qualquer aspecto da fé alheia ou criar polêmica. Ele parte do pressuposto que esse é um blog de horror que explora aspectos obscuros da ficção fantástica e nesse âmbito é plenamente válido uma certa latitude ao tratar desses temas.

Achou interessante? Talvez você goste também:

- Os Deuses Antigos e o Mythos:

http://mundotentacular.blogspot.com.br/2010/05/eram-os-deuses-cthulhu.html

- Deuses Anciões no Panteão do Mythos:

http://mundotentacular.blogspot.com.br/2010/11/hierarquia-dos-mythos-deuses-ancioes.html

- Os Grandes Antigos:

 http://mundotentacular.blogspot.com.br/2010/11/hierarquia-dos-mythos-grandes-antigos.html

5 comentários:

  1. E tem tudo a ver com o "Strange Aeon" apregoado no conto Chamado de Cthulhu.
    A humanidade seria deturpada para assemelhar-se mais aos Grandes Antigos.

    Vc citou o Barão Samedi como uma coisa do passado, longe disso... o voudoun é uma religião viva.

    E por falar em Strange Aeon, o RPG Cthulhutech lida com várias dessas questões: queda de religiões como o cristianismo, "degeneração dos costumes" no sentido moralista de um Lovecraft, e também os Deuses Anciões, aqui chamados de Forgotten Gods e com nomes alterados, como "Morphean, também chamado de Hypnos". Também seriam deuses inescrutáveis, TALVEZ rivais dos Old Ones. Há até um tipo de personagem jogador, os tagers, que entram em simbiose com servos dos Forgotten Ones.

    ResponderExcluir
  2. Fantastica matéria, uma das melhores deste ano, senão a melhor.

    Gostaria de acrescentar também a citação do livro básico de Rastros de Cthulhu, onde eles dizem que YHVH, que entregou as tábuas da lei a Moises era na verdade Yog-Sothoth

    ResponderExcluir
  3. Outras citações bíblicas:

    Um dos Reis Magos que viajou até Belém seguido pela estrela seria na verdade Nyarlathotep.

    Já a queda da Torre de Babel teria sido ocasionada pelos Yithianos.

    Finalmente Sodoma e Gomorra teria sido colhida pela explosão de uma nave dos Sham e toda deprevação naquela cidade, motivada pelos Insetos e seus apetites pela degradação moral.

    ResponderExcluir
  4. Grande artigo que nos leva a pensar, afinal, além de diversão RPG também é cultura e motor de pensamento!!!!

    Parabéns!!!

    ResponderExcluir
  5. Melhor antigo do ano, com certeza.

    Mamedes

    ResponderExcluir