Rodopiei com a terra até o alvorecer;
Enquanto o céu era tomado por poeira solar;
Eu vi o bocejar do sombrio universo;
Por onde obscuros planetas giram sem propósito;
Em insano terror, sem consciência brilho ou nome.
Ah, o medo diante do desconhecido.
Tente imaginar a seguinte situação. Um pescador solitário sai pela primeira vez em direção ao mar. Ele rema sua pequena embarcação cada vez mais para longe da costa. Após um dia inteiro de trabalho, decide que já é hora de voltar. Mas quando olha para trás e não consegue ver nada além de água. A praia desapareceu. Seu referencial se foi e não tem como saber para que lado remar. O que vem em seguida é o temor de não conseguir retornar. A dúvida de ter ido longe demais. O medo do que existe além do horizonte ou abaixo da superfície insondável.
Imagine esse pescador indo ainda mais longe. Para além das terras conhecidas, para além de nosso planeta, além de nosso sistema solar... lançando-se na escuridão devoradora de um universo em constante expansão. Como manter o controle quando você mergulha em um ABISMO INFINITO?
Esse é mais ou menos o tema de um RPG brasileiro, lançado recentemente pela Editora Retropunk, escrito por John Bogéa (responsável pelo excelente Terra Devastada que trata de Apocalipse Zumbi). Quando o lançamento desse jogo foi divulgado há alguns meses, ele chamou minha atenção pela proposta de ser uma ambientação que mistura ficção científica e horror, meus dois gêneros favoritos.
Abismo Infinito é um jogo narrativo de terror psicológico da melhor qualidade que se passa em um futuro distante. Uma época em que a humanidade desenvolveu os meios tecnológicos e os recursos técnicos para dar um salto gigantesco na direção das estrelas. Essa exploração é motivada principalmente pela necessidade de sobrevivência de nossa espécie. Séculos de depredações transformaram a Terra em um planeta doente. A humanidade precisa de um novo lar para começar do zero sem cometer os mesmos erros do passado. A única esperança é se voltar para o espaço e buscar um lugar adequado. Assim nasce a Iniciativa Cronos, uma Agência Espacial planetária responsável por empreender viagens a planetas distantes com o intuito de exploração e colonização. Amparados pela criação do Motor de Dobra Espacial, um engenho revolucionário que permite o deslocamento de veículos além da velocidade da luz, a Iniciativa lança expedições pelo cosmos.
Cada cenário acompanha uma dessas missões espaciais. Os personagens dos jogadores são astronautas, ou melhor Argonautas, membros de uma tripulação à bordo de espaço-naves chamadas de Argos. Cada Argo cruza distâncias absurdas, carregando tripulantes em estado de animação suspensa. Essa hibenação induzida permite que os argonautas resistam aos rigores da viagem espacial e não envelheçam no processo, já que a jornada pode durar décadas até que se atinja o destino pretendido. As aventuras sempre se iniciam com os tripulantes despertando de seu sono e traçando planos para cumprir os objetivos da missão.
Mas não se engane. Abismo Infinito não é um jogo sobre exploração, heroísmo e conquistas em uma nova Era dos Descobrimentos. Esses elementos, embora presentes de forma indireta, ocultam algo muito mais profundo e sinistro e é esse o principal atrativo do jogo.
O tema central que move Abismo Infinito é o medo diante da grandiosidade do universo e como esse temor afeta a mente humana. E esse tema é absolutamente lovecraftiano. Os argonautas em Abismo Infinito despertam em um ambiente desconhecido nos confins da Galáxia e tem que lidar com situações extremas: Naves avariadas, planetas inóspitos, fenômenos cósmicos, ruínas xenomórficas misteriosas, formas de vida hostis... mas esses não são os maiores perigos da ambientação. A partir do momento que deixam a câmara de hibernação, cada personagem começa a experimentar alucinações, traumas e sensações aterradoras. Esses pesadelos lúcidos começam a testar os limites da sanidade de cada tripulante, em um ritmo alucinante em que a realidade cede cada vez mais espaço a paranóia e loucura. Logo, as missões acabam ficando em segundo plano, o que importa é sobreviver e preservar a razão.
Uma das melhores sacadas da ambientação é não deixar claro o que causa a temível loucura espacial que acomete os personagens. Talvez seja alguma radiação espectral, quem sabe a exposição prolongada às câmaras de hibernação ou mesmo um fenômeno sobrenatural. Uma explicação é tão boa quanto a outra. Não explicitar uma causa concreta, torna o jogo ainda mais enigmático. Talvez a loucura esteja conectada ao fato de se estar tão longe de casa, por tanto tempo... ou quem sabe com a descoberta da insignificância humana diante do cosmos.
Cada sessão de Abismo Infinito se propõe a ser uma jornada através de um mundo de pesadelos onde o Narrador, ou Mestre do Espaço, conduz um grupo de jogadores que assume o papel de Argonautas.
Ao conceber seu personagem o jogador escolhe um Medo Particular, uma espécie de temor profundo que acompanha seu argonauta. Além disso, cada membro da tripulação possui um determinado número de Âncoras - conceitos concretos ou abstratos que definem a própria existência e as razões pelas quais o personagem deseja retornar. Quando uma âncora é perdida durante o jogo, o argonauta perde uma parcela da sua motivação para continuar lutando pela sua sobrevivência e redenção. Ao perder todas as âncoras ele se torna uma casca vazia sem razões para existir.
Esses dois aspectos são fundamentais em Abismo Infinito e demandam alguma reflexão da parte dos jogadores, uma vez que o Medo Particular e as Âncoras servirão como combustível para as situações aterrorizantes criadas pelo narrador.
O jogador também precisa definir qual o cargo de seu argonauta à bordo da Nave e suas responsabilidades para com a missão e seus companheiros. Partindo do pressuposto que todos os tripulantes são extremamente competentes em sua função específica, cada cargo oferece plenas condições para o personagem desempenhar seu trabalho. Não é necessário espalhar pontos em habilidades ou definir as especializações do personagem, a ficha é de uma simplicidade notável. O sistema pressupõe que médicos são capazes de sarar ferimentos, curar doenças, tratar de venenos etc. Da mesma forma um engenheiro sabe tudo que é preciso saber sobre motores, reparos em computador e operação de maquinário, na mesma medida um Segurança tem treinamento em luta, armamento e sobrevivência em ambientes perigosos.
O livro básico apresenta dez cargos para os Argonautas. São eles Astrogeólogo, Cosmólogo, Criptólogo, Engenheiro, Exobiólogo, Médico, Navegador, Psicólogo, Segurança e Videomaker. As funções bem definidas ajudam os jogadores a compreender quais serão as suas atribuições no curso da aventura.
Os testes de resolução do jogo envolvem o rolamento de um determinado número de dados de seis lados (baseado na quantidade de âncoras atual). O jogador precisa superar ou igualar uma dificuldade definida pelo mestre. Circunstâncias específicas podem conceder Bônus ou Redutores que tornam mais fácil ou mais complicado chegar ao número desejado. Personagens fora de sua função podem tentar realizar tarefas, mas a dificuldade será ajustada pelo narrador. Por exemplo, um Exobiólogo pode tentar conceder primeiros socorros a um colega ferido, mas terá de lidar com redutores em seu rolamento.
O sistema ágil e simples não influi muito no correr da narrativa. Eu particularmente prefiro sistemas em que a resolução segue esse estilo o que favorece o improviso. Entendo, no entanto, que alguns mestres acostumados com um "crunch" mais elaborado podem vir a achar o sistema muito simples. No meu entender, é o sistema ideal para a proposta da ambientação.
Sendo um jogo sobre terrores psicológicos, há espaço de sobra para monstros e aberrações nascidas no fértil terreno das perturbações mentais. As alucinações que atormentam os pobres argonautas não são menos perigosas do que alienígenas e formas de vida hostis encontradas em outros planetas. Uma alucinação é capaz de matar e induzir um argonauta a um estado de desespero do qual dificilmente ele conseguirá se recuperar. Pior ainda, os pobres tripulantes não estão seguros nem mesmo durante o sono. O mero ato de dormir pode arrastar toda a tripulação para um cenário de pesadelo onde as alucinações de um são divididas com os demais. A medida que o terror vai sendo compartilhado entre a tripulação, este se condensa em um Amálgama dos Medos, uma forma caótica de horror pulsante.
É importante fazer um aviso sobre o que esperar de um jogo de Abismo Infinito. Não se trata de um jogo de aventura ou ação, o que pode frustrar alguns jogadores interessados em disparar armas laser, eliminar alienígenas gosmentos ou pilotar naves espaciais. A maioria dos cenários transcorre no interior de enormes naves, há pouca ação e os oponentes são traumas e pesadelos. E não há como pulverizar uma alucinação com uma arma por mais poderosa que ela seja. Um certo grau de maturidade é aconselhado nos grupos que forem jogar dado os temas e assuntos abordados.
Usando uma referência cinematográfica, Abismo está muito mais para o ritmo lento e comedido de "2001 - Uma Odisséia no Espaço" ou "Solaris" do que para ação do novo "Jornada nas Estrelas". A melhor referência para entender a proposta original de Abismo é reunir seu grupo para assistir "O Enigma do Horizonte" (Event Horizon), um filme que se encaixa perfeitamente no estilo da ambientação.
Ah sim, não espere também que seus personagens sobrevivam a mais de uma aventura ou que tenham algum nível de aperfeiçoamento de uma estória para outra. Nesse jogo a coisa vai ladeira abaixo: sanidade, perturbações, saúde... seu personagem só tende a piorar. Conselho de amigo: não se apegue muito ao seu argonauta, as chances dele morrer de uma maneira escabrosa (se o narrador for bom!) ou virar uma geléia delirante (se ele for melhor ainda!) são positivamente imensas.
O livro editado com a excelente qualidade gráfica da Retropunk é bem conciso. Ao longo de 112 páginas e quatro capítulos, somos apresentados à ambientação, a proposta do jogo, regras e a um exemplo de cenário pronto. O texto é fácil de ler e as regras podem ser assimiladas facilmente. A diagramação é perfeita e encontrei apenas um ou outro errinho de grafia que não comprometem em nada a qualidade do texto. Por sinal, eu adoraria ter mais alguns detalhes sobre o Mundo às portas do Quarto Milênio e a respeito da tecnologia existente, mas entendo que o autor preferiu deixar esses detalhes em aberto a fim de conceder uma "carta branca" para que o narrador preencha as lacunas com seu enfoque pessoal de como seria o futuro. Sinceramente, qualquer um que tenha assistido ou lido alguns clássicos da ficção científica, vai se sentir bem à vontade com a ambientação. O capítulo com dicas úteis sobre como introduzir o terror e organizar a mesa é muito bem vindo.
A aventura introdutória "Autoctonia-66", que acompanha o livro por sua vez é bem curta e se propõe na minha opinião a ser uma introdução para aquele mestre que acabou de ler o livro e está empolgado para mestrar de uma vez. Considerando que é um livro curto e de leitura rápida, é possível comprar o livro, ler e mestrar poucas horas depois. Uma coisa que me deixou um pouco preocupado à princípio é que talvez os cenários acabassem eventualmente se tornando repetitivos... mas depois de terminar de ler tive várias idéias para cenários o que depõe contra essa impressão inicial.
Outro ponto forte do livro é a deslumbrante arte interna feita pelo próprio Bogéa. Vou te dizer, quando crescer quero desenhar que nem você, camarada!!! A capa sensacional dá uma boa idéia do que esperar no interior. Alguns dos desenhos são simplesmente incríveis e conseguem passar o clima de apocalipse niilista, desordem caótica e pesadelo que permeia todo o jogo. As ilustrações dos personagens em cada cargo são incríveis, mas duas imagens são dignas daqueles pesadelos mais aterrorizantes: a da página 74 que mostra uma mulher abraçada e totalmente entregue a uma coisa tentacular e a da página 103 com o argonauta arrancando o próprio olho com uma faca em um momento de total loucura. Ainda temos um Mapa da Galáxia na contra-capa, uma HQ introdutória, um screen e um CD com música ambiente para deixar rolando durante a sessão. Eu não sou muito fã desse recurso, mas sei que muita gente gosta, portanto é um brinde que deve agradar.
Abismo Infinito é um RPG com a interessante proposta de misturar Horror e Ficção. No entanto ele vai mais além, apostando em terror psicológico e introspectivo prá lá de malvado. É o tipo do jogo que nas mãos de um narrador criativo e disposto a explorar os medos de seus jogadores, vai render sessões memoráveis, do tipo que tempos mais tarde todo mundo ainda vai se lembrar com um arrepio involuntário.
No link abaixo, é possível baixar o Quick-Start do jogo:
Quickstart Abismo Infinito
E quem quiser pode encontrar a venda na Loja da Retropunk:
Retrostore
Uau, que resenha bacana. Valeu Mundo Tentacular.
ResponderExcluirOpa John, o jogo é bacana pra caramba. Eu finalmente tive a oportunidade de mestrar e gostei bastante.
ResponderExcluirÓtima resenha, e devo dizer q eu fiquei meio perdido em como fazer alguma aventura até entrar no capitulo 4, ali me senti totalmente protegido para criar algo, varias ideias pipocaram devo dizer... e não só ali, senti muita vontade de colocar jogadores explorando lugares como o cemitério das estrelas e outros em que muitos efeitos são causados, desde percepção diminuída, até envelhecimento quase q instantâneo, o próprio "mundo" é quase uma gigantesca caixa de areia do mestre, ainda que muitos mestres possam se prender as naves, sejam elas proprias ou fanstasmas e nos planetas o John deixou varias brexas nos livros q cada mestre pode usar a seu bel prazer e tudo na base da descrição e pequenas nuances provocativas, ainda que o medo particular seja o principal personagem, ha varias situações pelo cenario que podem ser bem aproveitadas, e "roubarem" o foco do medo como grande vilão
ResponderExcluirMuitos sentiram falta das descrições das criaturas, algo em que se agarrar, oq realmente fez uma falta, mas não algo do tipo "ficha de monstro" é mais um efeito "Alien o oitavo passageiro" da vida, algo q torne o medo mais real acredito eu, para não virar um "jogador desafia mestre com medos absurdos" com o tempo, mas nada que um mestre experiente não dê conta claro
Novamente otima resenha, parabéns, e tb devo dizer q se tornou um cenário q gostei muito, pretendo mestrar ele nessa semana ainda, e digo que a aventura "A caixa Dourada" passou para mim mais o clima do sistema doq a propria aventura que vem no livro, tanto ela quando a 'horror da humanidade' dos Filhos de Gehenna, ambas deixam bem claro o clima
Visitem: http://slenderevil.blogspot.com.br/
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ResponderExcluirResenha sensacional. Gosto e sou fã do gênero (mais em cinemas), só não me acho bom mestre o suficiente para narrar, mas depois de ler a resenha, o sistema pareceu-me merecedor de uma tentativa.
ResponderExcluir'Uma coisa que me deixou um pouco preocupado à princípio é que talvez os cenários acabassem eventualmente se tornando repetitivos...'
ResponderExcluirAcho que mesmo depois de ler o livro ficarei com essa impressão. Tenho receio de tentar expandir a ambientação para ampliar as possibilidades de crônicas e acabar fugindo da proposta do jogo. :(