sexta-feira, 22 de novembro de 2013

"O Espírito com Dentes de Faca" - Uma lenda do folclore Cherokee


Enquanto pesquisava internet informações para o artigo sobre o Túnel Sensabaugn, acabei esbarrando em uma outra estória sinistra na mesma região.

De fato, o Tennessee pelo que encontrei, desponta como um dos estados mais assombrados de todos os Estados Unidos. O que não falta são estórias a respeito de lugares macabros sob a influência de aparições, criaturas bizarras vagando em florestas e pântanos, fantasmas vingativos querendo sangue e espíritos de assassinos em série ainda atrás de vítimas. Lugar pitoresco esse.

A estória que mais me chamou a atenção, no entanto, se refere a uma assombração diferente, algo que os habitantes locais chamam de "Long Dog" (Cachorro grande). 

Olha só que gracinha:

Em meio às estradas que cortam o Tenessee, margeando florestas fechadas e regiões pantanosas tão ermas e densas que até hoje algumas não foram inteiramente exploradas, persistem estórias muito antigas. O Long Dog é uma delas. 

O primeiro registro moderno a respeito dele consta em um jornal da cidade de Knoxville há mais de 150 anos atrás (mais especificamente 1847). A notícia é sobre um corpo horrivelmente mutilado, achado em um pântano. O cadáver retalhado e mordido a ponto de se tornar quase irreconhecível teria sido encontrado em uma estrada por viajantes. Embora as autoridades tenham responsabilizado bandidos pelo horrível crime, testemunhas especularam se aquele não seria na verdade trabalho do Long Dog.

Em meados de 1888, na região de Piney Flats, condado de Sullivan, ocorreu algo semelhante. Dois corpos pertencentes a um homem e uma mulher, foram achados próximos a uma estrada que margeava um pântano. Os dois pareciam ter sido atacados por cães selvagens (chamados mongrels) dada a quantidade de ferimentos condizentes com mordidas e garras impingidas aos cadáveres. A suspeita novamente foi que eles teriam sido mortos por ladrões e que posteriormente um bando de cães tivesse encontrado os restos. Mas não foi isso que disse o exame cadavérico. As evidências apontavam para o fato de que os dois haviam sido mortos por cães, ou até por apenas um cão, ambos com ferozes mordidas no pescoço. 

Os jornais exigiram medidas urgentes. Ataque de cães selvagens não podiam acontecer em uma região dita civilizada, quanto mais ataques com vítimas fatais. As autoridades nomearam qualquer um interessado como delegado temporário e pagaram 15 centavos por cada cachorro selvagem abatido. Basicamente todos que tinham uma espingarda responderam ao "chamado cívico" e inúmeros animais foram mortos. Apesar da campanha, houve o boato de que o responsável pelas mortes não era um mongrel, menos ainda uma matilha, mas um único animal, o Long Dog.

Há outros relatos equivalentes e até os dias atuais, mortes inexplicáveis acabam sendo tratadas como ataques dessa entidade sobrenatural.


A lenda sobre essa criatura está inserida no folclore do sul dos EUA e se espalha por vários estados, sendo contudo mais forte no Tennessee. Ela  teve origem entre os nativos americanos que viviam na região, muito antes da chegada dos primeiros colonos brancos.

Os índios Cherokee chamavam esse monstro de "Oolonga-daglalla", que pode ser traduzido como "espírito com dentes de faca". Ele era considerado como um tipo de monstro que vagava pelas pradarias seguindo o curso de rios ou se embrenhava ocasionalmente nos pântanos. O som de seu uivo podia ser ouvido à noite, um lamento longo de gelar o sangue nas veias. O espirito, segundo a lenda tinha um ódio mortal de seres humanos, sendo ele uma força primal de vingança e selvageria, um predador feroz que caçava e matava quem quer que ele encontrasse em seu caminho. Para alguns xamãs ele simbolizava a vingança da natureza e dos animais caçados pelo homem.

Com o tempo, o nome foi corrompido pelos brancos deixando de ser "Oolonga-daglalla" e passando a ser chamado de "long dog". O título se encaixou perfeitamente no inconsciente coletivo dos colonos, e parecia adequado aos olhos daqueles que alegavam ter visto a criatura e que sobreviveram a experiência.
   
O long dog é descrito como um animal extremamente rápido que salta grandes distâncias enquanto corre nas quatro patas. Ele podia saltar e sempre cair de pé ou alcançar uma presa tão velozmente que de nada adiantava ela tentar fugir de sua perseguição. Quando o monstro escolhia seu alvo ele nunca o perdia de vista, mesmo que este corresse para um lugar com outras pessoas, a criatura não desistia da vítima escolhida. Além da velocidade atordoante, outra característica do long dog era sua crueldade. As lendas relatam que o animal capturava suas presas e as torturava com as garras afiadíssimas causando ferimentos dolorosos mas que não eram suficientes para matar. Após rasgar a carne da vítima, o monstro se deliciava lambendo o sangue que escorria das feridas. Por vezes, o espírito chegava ao ponto de deixar a presa escapar fingindo desinteresse nela, apenas para empreender uma nova perseguição, capturá-la e atormentá-la uma vez mais. Quando finalmente se cansava da brincadeira, o long dog simplesmente matava, geralmente com uma mordida dilacerante no pescoço.

Diferente de outros animais selvagens, o Long Dog das lendas não matava para se alimentar ou defender seu território. Pelo contrário, ele sentia um prazer quase humano na caçada e na matança. Os Cherokee o temiam de tal maneira que evitavam certas partes da floresta e entalhavam símbolos de proteção nas cascas das árvores a fim de mantê-lo afastado. Aqueles que sofriam ferimentos, mas conseguiam escapar do monstro eram banidos da tribo, pois seria questão de tempo até o Oolonga-Daglalla vir até eles completar o serviço. Os caçadores marcados pelo monstro, recebiam uma faca ou lança e eram obrigados a entrar na mata fechada onde deveria ficar por 7 dias. Se nesse período o monstro não atacasse eles podiam retornar, sabendo que estaria relativamente seguros. 

Segunda a descrição tradicional, o Long Dog seria um animal bastante grande, com cinco ou seis pés (entre 1,50 m e 1,80 m) de comprimento, as mesmas dimensões de uma pantera ou de um puma. Seu corpo seria musculoso e ágil, as patas traseiras muito compridas e a cabeça relativamente pequena, com focinho chato e orelhas erguidas. A boca comprativamente seria grande, repleta de dentes afiados. O long dog era uma mistura de wolverine, pantera e lobo, com as piores características de cada um desses animais. Ainda segundo a tradição, os olhos da fera, em uma cor vermelha-amarelada, brilhavam no escuro como dois carvões incandescentes. O hálito quente da fera teria o cheiro acre de enxofre e podia cegar. Sua pelagem era rala, bastante rente ao corpo, com uma qualidade brilhante oleosa, quase fluida. Os rastros que ele deixava, quando estes eram encontrados, evidenciavam uma pata colossal dotada de enormes garras. 


Mas as estórias sobre o Long Dog não se limitam às suas habilidades como caçador e matador. As lendas dão conta que a criatura também tinha capacidades sobrenaturais. Ele seria capaz de assumir uma forma incorpórea (os Cherokee mencionam que ele se tornava fumaça) e dessa maneira atravessava árvores, vegetação e até surgia diretamente do solo ou no próprio ar. Para outros ele teria a capacidade de ficar invisível ou ao menos se camuflar na floresta de tal maneira que não podia ser visto, pelo menos até ser tarde demais.

Outra horrível capacidade do Long Dog envolve o poder de escravizar aqueles que ele matou e de quem ele provou sangue e carne.

Algumas vezes, a vítima do Long Dog desaparecia e nada era encontrado no lugar do ataque além do fedor de enxofre, terra revirada e rastros de sangue. Segundo a lenda, o Long Dog era capaz de devorar o espírito de sua presa e depois de mastigá-lo o soprar de volta em seu corpo feito em pedaços. Como resultado, a presa se levantava e era capaz de andar novamente, embora ficasse claro que não se tratava mais de uma pessoa, mas de uma abominação nem viva e nem morta. Nessa condição, a vítima se tornava incontrolável e perigosa. Como se tomada por uma fúria cega, ela investia contra qualquer um que encontrasse, tentando morder e esganar. Nas descrições do povo cherokee, a vítima não era mais uma pessoa e sim um "escravo da fúria", que gradualmente ia se tornando menos humano até se converter em uma coisa perversa com olhos injetados, baba escorrendo do canto da boca e que corria de quatro.

Como não poderia deixar de ser, existe uma relação entre a lenda do Long Dog e as estórias macabras relatadas sobre o Tunel Sensabaugn. 

Uma dessas estórias conta que durante a construção do Túnel foram contratados muitos operários imigrantes, chineses e italianos, principalmente. Como ocorria quase sempre nessa época, as condições de trabalho beiravam a desumanidade e acidentes aconteciam frequentemente no local da obra. 

Segundo a lenda urbana, um desses "acidentes", no qual vários operários foram vitimados (no mínimo três conforme algumas fontes) estaria ligado ao "Long Dog". Quando o túnel ainda estava em construção no ano de 1920, a região era bastante isolada e para facilitar o progresso, os empreiteiros montavam um acampamento e dormiam no local em barracas improvisadas. Há boatos de que os operários ouviram repetidas vezes estranhos ruídos na mata próxima, uivos e rosnados, além de um cheiro de enxofre que deixava os homens com os nervos à flor da pele.

Não demorou para que os operários descobrissem as lendas sobre o Long Dog e temessem se afastar do acampamento. Alguns desistiram do trabalho, mas outros persistiram achando que aquilo não passava de superstição e tolice dos nativos que há muito tempo haviam partido. Mesmo assim, toda noite acendiam uma grande fogueira que queimava até o amanhecer.


A despeito das estórias, o trabalho continuou até que meses depois, o túnel ficou pronto, bastando apenas alguns retoques para ele ser inaugurado. A maioria dos operários foi dispensada e aliviados ganharam seus salários e deixaram a área. Alguns poucos homens ficaram para concluir os detalhes que faltavam. A tragédia teria acontecido uma noite, quando os homens que ficaram no acampamento estavam descontraídos e haviam baixado a guarda. Dizem que o capataz da construção os havia presenteado com um engradado de cerveja e que eles beberam além da conta e por isso, esqueceram de acender a fogueira. A verdade ninguém sabe ao certo...

Na manhã seguinte, o capataz foi até o acampamento e se deparou com uma coisa medonha, um verdadeiro massacre que remetia aos ataques sangrentos que colonos sofriam nas mãos de nativos. Os homens não tinham apenas sido assassinados, seus corpos foram retalhados selvagemente. 

O capataz voltou para a cidade e procurou os responsáveis pela obra, entre os quais, o Sr. Sensabaugn que o acompanhou até o lugar, junto com alguns homens de sua inteira confiança. Constataram a tragédia e ficaram espantados pela selvageria do ataque e pelo fedor residual de enxofre que ainda permeava no lugar. Sensabaugn, no entanto era um homem prático: ele sabia que a construção não poderia ter mais atrasos e um escândalo daquele tamanho seria um problema. Ele também sabia que os mortos eram imigrantes, homens sem família cuja falta não seria sentida por ninguém. Ponderando que cães selvagens eram os culpados, o engenheiro ordenou que os homens recolhessem os corpos e os carregassem até o Túnel. Lá dentro havia uma parte profunda que ainda seria lacrada com concreto. Foi ali que Sensabaugn teria ordenado que os homens fossem sepultados em segredo.

Diz a lenda que as vítimas do Long Dog, não ficariam para sempre confinadas naquele lugar. Os corpos estavam fadados a se levantar como "escravos da fúria" e encontrariam uma maneira de escapar de seu confinamento para causar mais tristeza. E de alguma forma, isso que teria acontecido... 

Teria o Oolonga-daglalla libertado os "escravos da fúria" para que andassem em busca de vingança? Seriam esses mortos-vivos os responsáveis pelas tragédias que se transformaram em lenda urbana na área e que contribuíram para a fama do Túnel Sensabaugn? O vagabundo que teria roubado o bebê do Sr. Sensabaugn e o atirado em um buraco no Túnel poderia ser algo mais terrível? Ou quem sabe, a chacina promovida na casa dos Sensabaugn poderia ter sido causada por outra pessoa, que não o engenheiro?

Quem pode saber ao certo onde se inicia uma lenda urbana e começa a verdade?

Nesse caso, há muitas estórias e nenhuma delas tem um final feliz.

10 comentários:

  1. As vezes me surpreendo quando me deparo com um blog como este, com toda a qualidade textual e informativa, além de tratar de assuntos que muito interessam, tendo tão pouca visibilidade em meio a tantos outros com conteúdo deveras inferior. Talvez algo como uma página no Facebook, trouxesse um pouco mais do reconhecimento que vocês merecem, até porque, existem outros como eu, que estão por ae, vagando de blog em blog a procura de algo como este bem aqui. Estou comentando para elogiar e também para ajudar no que puder - vi a imagem pedindo por comentários, hahaha -, uma vez que compartilho do mesmo amor que vocês por HP e toda sua mitologia, além de outros assuntos sobrenaturais. Desejo longa vida ao Mundo Tentacular e que se mantenha assim, produzindo textos informativos e gostosos de se ler. Vocês fizeram o diferencial em meio a internet para mim, muito obrigado

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  2. Gostaria de poder conversar melhor com os autores do blog, então caso queiram, segue o meu Facebook: https://www.facebook.com/lukas.almeida.31

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  3. O Senhor Sensabaugn devia ter muitos segredos horríveis e feitos sombrios... sua obra parece cheia de horrores escondidos...

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  4. Excelente texto, inquietante e instigante em igual medida. Por esses e outros sigo fiel a estas leituras daqui. Parabéns!

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  5. Parabéns pelo texto. Ficou excelente.

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  6. Por essa e por outras que eu sou fã do seu blog.

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  7. Sinistro nunca vi nada assim. Um lobisomen nao e . e bem pior. Esse mata por vinganca e prazer.

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