Concluindo a resenha de Unhallowed Metropolis.
Uma das coisas que me atraiu nesse RPG - que preciso reconhecer, ainda não tive a chance de narrar ou jogar, foi o fato dele abrir um leque de muitas opções. Ao meu ver, embora as hordas de Mortos sejam algo central na ambientação, não é preciso recorrer apenas ao batido expediente do Apocalipse Zumbi a cada aventura. Um narrador com recursos é capaz de escrever uma crônica inteira usando outros temas presentes em Unhallowed Metropolis, sem recorrer diretamente a mortos vivos ou criaturas assustadoras para contar sua estória de horror. Eu fiquei muito interessado pela sociedade Neo-Vitoriana, pelo desejo deles de se espelhar em algo que, ao seu modo, era decadente e corrompido.
Pessoalmente eu adoro esse período e as imagens de soldados britânicos vestindo máscaras de gás, atirando com armas de Tesla e lutando contra vampiros armados com Kukri, teve um apelo muito forte para ignorar. Comprei esse jogo faz uns meses e fiquei bastante satisfeito.
Publicado originalmente pela Eos Press em 2007, o Livro Básico de Unhallowed Metropolis recebeu uma Edição Revisada em 2012, quando foi publicado pela Atomic Overmind Press, mais conhecida por ter lançado o título "The Day After Ragnorak" de Ken Hite. Esta é sem dúvida uma boa notícia pois o material da Eos era difícil de ser obtido já que a editora inglesa é bem pequena.
Como o título sugere, Unhallowed Metropolis, Revised, é um livro que passou por uma revisão completa, o sistema de criação de personagens e combate foram drasticamente modificados a fim de se tornarem mais intuitivos e fluidos; as informações sobre a ambientação foram expandidas para incluir o restante da Europa, dos Estados Unidos e outras nações que também passaram pela Praga; foram adicionados novos Callings (Chamados, algo semelhante a classes) para os personagens, além de farto novo material que foi incorporado de suplementos previamente publicados pela Eos. O resultado é satisfatório com melhorias significativas nas regras e ambientação, mas como veremos em seguida, nem todos os problemas da edição original foram sanados. Mas vamos com calma.
Em termos de personagens, Unhallowed Metropolis, Revised oferece oito Chamados – dois a mais do que a edição original. Estes Chamados não apenas determinam o status social do personagem, mas também a sua Classe em termos de jogo. Os oito chamados são Aristocrata, Criminoso, Soldado da Deathwatch, Detetive, Caçador de Vampiros Dhampir, Médico, Carpideiro (foi o mais próximo que consegui cegar de Mourner, algo como lamentador) e Coveiro. Além disso, as regras permitem que o jogador crie classes específicas sem usar os Chamados disponíveis. Embora um chamado conceda ao personagem um determinado número de habilidades e vantagens, cada um deles abre opções para que o jogador diferenciar seu personagem de outros que tem o mesmo chamado.
Por exemplo, o Chamado Aristocrata garante as vantagens "Sangue Azul" e "Deferência", típicas para todos aristocratas, mas o jogador poderá escolher entre outras treze características que podem ser acrescentadas, preservando a individualidade do personagem. Com isso, seu Aristocrata poderá ser tanto um Grande Caçador, interessado em viajar pelo mundo em busca de perigos e emoções, ou quem sabe um Casanova dedicado a arte da conquista ou ainda um Oficial Militar que recebeu um posto graças a ligações e contatos familiares. Cada escolha durante a criação do personagem garante bônus aos rolamentos, uma lista de habilidades ou a vantagem de re-rolar dados em caso de falha. Todo esse parênteses para dizer que o repertório de personagens é extremamente variado e dificilmente dois jogadores acabarão criando personagens semelhantes. Mesmo que TODOS os jogadores desejem fazer Soldados do Deathwatch, dificilmente eles terão as mesmas características, pontos fortes e fracos.
Uma vez que o Chamado é selecionado, cada jogador deve distribuir vinte e cinco pontos em seis atributos - Vitalidade, Coordenação, Raciocínio, Intelecto, Vontade, e Charme; e outros vinte e cinco pontos em habilidades. Tanto os Atributos quanto as Habilidades variam entre um e cinco, e com a pontuação disponível durante a criação, a maioria dos personagens terá uma média de 3 ou menos, com talvez um atributo um pouco mais alto, enquanto que as habilidades devem ficar na mesma média, sendo que uma ou duas vão ser mais elevadas. Cada jogador possui mais cinco pontos com os quais podem customizar seus personagens, escolhendo Qualidades (que funcionam como Vantagens) ou Impedimentos (que são o mesmo que desvantagens).
Em seguida, o jogador deve escolher um tipo de Corrupção que corresponde a uma fraqueza ou tentação que costuma ser recorrente na existência do personagem. A sociedade Neo-Victoriana é cheia de armadilhas morais e a decadência pode ser um grande perigo, fazendo um herói se comportar como um vilão, sobretudo quando suas paixões vem à tona. Há três diferentes Caminhos de Corrupção - Física, Desejo e Foco. Personagens recém criados começam com apenas um ponto em um desses caminhos e uma aflição correspondente, mas no decorrer das seções de jogo, o compasso moral e as atitudes podem levar o personagem a adquirir outras aflições e desenvolver um caminho de corrupção do qual não há retorno. E quanto mais Corrompido for o personagem, mais difícil será manter afastados os horrores que rondam as trevas e se sentem compelidos a buscar indivíduos de moral duvidosa. De certa forma, o sistema me lembrou bastante a Corrupção e os Rolamentos dos Poderes Negros de Ravenloft. Da mesma maneira que nessa clássica ambientação de horror, um personagem que envereda pelos caminhos das trevas pode acabar se transformando em algo perverso e monstruoso se não tiver cuidado.
Um dos elementos mais interessantes a respeito da Corrupção é a tentação que ela impõe... um personagem pode refazer rolamentos em que tiver falhado adquirindo pontos extras de Corrupção. Pode ainda conscientemente aceitar uma "ajudinha das trevas", para escapar de uma enrascada ou situação crítica, ganhando uma vantagem momentânea ao custo de mais corrupção (porque afinal de contas, nada é de graça quando se negocia com as trevas). Com o tempo, a sorte do personagem pode acabar e eventualmente ele terá de sacrificar um pouco de sua pureza para triunfar, mas sempre com um custo. A mecânica por trás do Sistema de Corrupção é bastante elegante e sem dúvida é uma das que mais chamam a atenção no jogo.
Vamos falar da mecânica de Unhallowed Metropolis.
O sistema usa um par de dados de 10 lados, esses são rolados e somados com algum atributo ou habilidade que precisam alcançar um Nível de Dificuldade. Uma dificuldade fácil seria algo em torno de um 11, um teste complexo exigiria um 14, um difícil 16 e um muito, mas muito difícil estaria na casa dos 18. Embora a média nos rolamentos seja 11, com o personagem adicionando o atributo ou habilidade pertinente a variação não será muito grande (lembrando que estes vão de 1 a 5 apenas). Isso nos diz que rolamentos são bastante complicados nesse sistema e que mesmo os de dificuldade moderada podem representar um desafio considerável. Para ajudar um pouco, alguns Chamados e Qualidades permitem que o personagem obtenha alguns bônus ou que rolem novamente o dado em busca de um resultado melhor. Há ainda as "Segundas Chances" que representam um perigo por atrair corrupção.
Essa questão a respeito da dificuldade da mecânica é exacerbada quando se trata de combate, que nesse jogo é sempre potencialmente letal. É preciso lembrar que nem todos os Chamados são orientados para o combate e que personagens sem grande capacidade combativa estarão em maus lençóis quando tiverem de arregaçar as mangas e lutar por suas vidas. Para ajudar um pouco os personagens podem recorrer a Façanhas (Stunts) que são manobras específicas que permitem ao personagem fazer algo notável. Vamos a um exemplo, existe um stunt chamado "Snap Reaction" (Pronta Reação) que permite ao personagem reagir imediatamente logo após seu inimigo fazer um ataque, enquanto "Fast Aim" (Mirar Rápido) permite ao personagem disparar com maior precisão recebendo benefícios, sem precisar mirar por uma rodada inteira. Há uma longa lista de stunts que podem ser adicionadas ao repertório do personagem e que vão ser de suma importância para o progresso (e é claro, sobrevivência) dele.
A despeito disso, os resultados de um combate, mesmo contra um inimigo mais fraco, podem ser devastadores. As regras são implacáveis no que diz respeito ao dano sofrido e um único ataque pode levar o seu personagem - mesmo que ele seja um soldado bad-motherfucker armado dos pés a cabeça - a lona rapidamente.
As coisas não seriam tão difíceis se a mecânica permitisse somar os dois dados de 10 lados, o atributo E a Habilidade, mas não é esse o caso. Um dos problemas do sistema ao meu ver é que os rolamentos acabam sendo muito difíceis, o que pode frustrar os jogadores habituados a controlar verdadeiros "moedores de carne". Se esse é o caso, vale a pena conversar com seu grupo a respeito de letalidade, pois na primeira tentativa de correr para cima de uma horda de mortos vivos o grupo pode acabar varrido do mapa e tendo de criar novos personagens. Em Unhallowed Metropolis as coisas não são fáceis e um pouco de autopreservação pode ser o diferencial entre personagens veteranos cheios de cicatrizes e principiantes mortos.
A ambientação é explorada detalhadamente em dois capítulos muito bem escritos que ampliam o leque de possibilidades e concedem várias opções para o narrador.
O primeiro capítulo trata dos "Não Mencionados" as criaturas da morte que continuam vagando pelo mundo arruinado. Ele discute as principais características desses mortos vivos, sua biologia, comportamento, expandindo conceitos que vão muito além do batido tema dos zumbis descerebrados, inserindo uma série de truques para individualizar seus mortos vivos. Além disso, ele apresenta outras ameaças da ambientação, criaturas perigosas cuja existência o narrador deve manter em segredo para aumentar as surpresas em sua campanha.
Contudo, nem só de mortos vivos vive a ambientação, há coisas muito bizarras, aberrações científicas, seres amaldiçoados, anátemas infernais e outros terrores clássicos extraídos da tradição gótica. O livro não oferece um bestiário per se, mas apresenta um rol de criaturas que o narrador pode utilizar como referencial para construir seus próprios monstros com características exclusivas. Um ponto importante é que não se fala a respeito do que provocou a Peste, como todos os bons filmes e jogos sobre apocalipse zumbi, ninguém sabe o que provocou a crise.
Contudo, nem só de mortos vivos vive a ambientação, há coisas muito bizarras, aberrações científicas, seres amaldiçoados, anátemas infernais e outros terrores clássicos extraídos da tradição gótica. O livro não oferece um bestiário per se, mas apresenta um rol de criaturas que o narrador pode utilizar como referencial para construir seus próprios monstros com características exclusivas. Um ponto importante é que não se fala a respeito do que provocou a Peste, como todos os bons filmes e jogos sobre apocalipse zumbi, ninguém sabe o que provocou a crise.
Muitos dos elementos e ameaças são discutidas, exploradas de uma forma que ajuda o narrador a inseri-las na sua crônica. Eu considero esse capítulo "For Eyes Only" uma vez que as ideias aqui contidas são ótimas. Acompanhando essas notas e conselhos há oito plots prontos que podem ser desenvolvidos pelo narrador em sua campanha - note bem, não são aventuras prontas, mas sugestões muito bem vindas de como você pode trabalhar o início de seu jogo.
O outro capítulo interessante é "Combat Corsetry" que se debruça sobre os equipamentos, traquitanas, armas e objetos que os personagens vão utilizar em suas missões. Vou colocar em letras maiúsculas, porque realmente foi o que eu mais gostei no livro - EU AMO TRAQUITANAS VITORIANAS. Sabe aquelas engenhocas esquisitas feitas à mão por armeiros? Aquelas espadas cheias de entalhes, pistolas de Raios Testa capazes de disparar energia concentrada e máscaras de gás essenciais para respirar em pleno smog. Tudo isso está lá, com um inconfundível estilo vitoriano.
Todo esse equipamento é descrito com uma quantidade brutal de detalhes que faz você achar que aquilo é de verdade. Há espaço de sobra para Camisas de Força usadas para prender mortos vivos, maletas com equipamento para caçar vampiros (contendo estacas, martelo, espelhos, alho, água benta etc...) tudo em compartimentos especiais e protetores para pescoço a fim de prevenir de mordidas indesejáveis. Isso sem falar nos uniformes militares, nas magníficas armaduras de proteção e nos vários modelos de armas. Há ainda um sortimento de engenhocas patenteadas usadas pelos intrépidos caçadores de mortos vivos. Cada Chamado possui um arsenal de objetos nos quais os personagens podem se especializar e que ajudam na sua árdua batalha contra as trevas.
Fisicamente, Unhallowed Metropolis, Revised é um livro muito atraente. Capa dura, papel de qualidade e interior em preto e branco. O livro é ilustrado com uma arte competente com desenhos em tinta preta e cinzenta, contrastando com fotografias retocadas de modelos posando como personagens. Muitas dessas imagens vieram de uma página on-line chamada "Gas Mask Chic", que mexe com uma certa aura de fetichismo, capturando imagens de modelos vestindo couro. Pode parecer meio estranho, mas para situar a ambientação é um recurso que funciona muitíssimo bem. Afinal, o que poderia ser mais dentro do contexto do que uma modelo usando espartilho apertado, chapéu coco, máscara de gás e apontando uma pistola de raios?
O livro acompanha um excelente mapa de Londres que é o setting default da ambientação no verso da capa. De um modo geral, o trabalho é bem escrito com vários apêndices, caixas de texto, biografia e um índice bastante útil para encontrar os tópicos já que ele é bem extenso. O único problema que detectei é o tamanho da fonte usada, bem miúda e um pouco cansativa. Felizmente no final do livro consta um resumo das regras para facilitar a vida do narrador. Acredito que não será difícil para ele navegar nas páginas do livro e encontrar uma regra específica durante a narrativa.
Eu gostei da proposta da ambientação e da riqueza de opções para cenários aqui. Vou ser sincero, um dos meus receios a respeito de Unhallowed Metropolis era que ele seria apenas "mais uma" ambientação sobre apocalipse zumbi, com o diferencial de se passar numa sociedade da Era Vitoriana. Se assim fosse, eu preferia muito mais ficar com "All Flesh must be Eaten" e adaptar algo do "Cthulhu Gaslight". Mas não é bem assim, felizmente.
Muito mais do que ser uma ambientação de Zumbis que por acaso tem como pano de fundo a Inglaterra Vitoriana (ou algo semelhante), Unhallowed Metropolis abre as portas para muitas opções. Você pode manter o básico do básico, fazendo uma campanha centrada em uma unidade da Deathwatch vagando pelo Mundo Devastado cumprindo ordens ou quem sabe uma força policial que patrulha as ruas de Londres eliminando problemas que não estará errado. Mas você pode recorrer a outro expediente fazendo uma aventura centrada em intriga e espionagem por exemplo, com heróis interessados em descobrir os planos do embaixador russo que fez um acordo com um Lorde Vampiro. Pode também centrar a estória em política, usando uma abordagem meio V de Vingança, com personagens radicais que lutam contra o Governo Ditatorial. Ou ainda, colocar um toque de sobrenatural, focando nas tentativas de Sociedades Secretas de dominar o mundo usando para isso poderes arcanos, feitiçaria e pactos com seres infernais.
Unhallowed é uma ótima opção para os que estão um pouco enjoados de interpretar monstros góticos, como vampiros, lobisomens e fantasmas, e que preferem ao invés disso assumir a identidade de humanos normais que enfrentam essas criaturas. Para quem gosta da noção de "caçadores de monstros" essa ambientação é altamente recomendada.
Quando Unhallowed Metropolis foi originalmente publicado, muitas resenhas criticaram o sistema e o flagrante desequilíbrio entre os Chamados. Os personagens pareciam muito fracos e levavam muito tempo para progredir, sempre com o risco de serem mortos em combates relativamente fáceis. Todos esses problemas fizeram com que esse jogo ganhasse uma fama ruim entre os que conheceram sua primeira encarnação. O consenso era que a ambientação apesar de muito interessante, não funcionava bem com o sistema quadradão. A edição revisada, segundo consta, reparou muitos desses problemas e tornou o jogo mais vibrante com a adição de stunts que ajudam muito os jogadores e a inclusão de Chamados, material adicional e de novas opções foi muito bem vinda. O sistema ainda não é perfeito, como eu disse, nem todos os jogadores vão ficar satisfeitos com seus personagens achando que eles são muito limitados, mas para o grupo certo, Unhallowed Metropolis tem tudo para agradar.
Ao meu ver, a ambientação é o que realmente torna esse RPG digno de nota, e isso não é pouca coisa.