Originalmente publicado no Blog Miskatonic Museum
Texto de Ahtzib
Texto de Ahtzib
Um dos mais infames livros citados nos trabalhos de H. P. Lovecraft é Regnum Congo, a peça central no conto "The Picture in the House" (A Estampa na Casa Maldita).
Nota: Eu uso a tradução da edição da Francisco Alves, que embora eu tenha de admitir, não é a mais correta, é a que estou mais familiarizado.
O próprio Lovecraft reconheceu em suas correspondências que jamais havia lido o livro verdadeiro, escrito em 1591 por Filippo Pigafetta, que teve edição publicada em inglês, sob o extenso título, "A Report of the Kingdom of Congo, and the Surrounding Countries, Drawn Out of the Writings and Discourses of the Portuguese, Duarte Lopez" - traduzido como "Uma Narrativa sobre o Reino do Congo, e países vizinhos, retirado dos escritos e discursos do português Duarte Lopez".
Ao invés de ler esse livro, Lovecraft teve acesso ao volume editado por Thomas Huxley, "Evidence to Man's Place in Nature" (Evidências do lugar do Homem na Natureza) que menciona longamente a obra de Pigafetta. Em seu livro, Huxley não economizou nas descrições dantescas ao falar da tribo congolesa dos Anziques, canibais que defendiam ferozmente seu território contra as investidas de outras tribos e de estrangeiros europeus. Huxley não destacava como incomuns os costumes dos Anziques, afinal, muitas tribos na região praticavam o canibalismo. O costume era recorrente em períodos de guerra e usado como forma de intimidação dos inimigos. Várias tribos consideravam que devorar seus inimigos lhes garantia força e habilidade. O que tornava os Anziques únicos era o fato deles canibalizarem os membros de sua própria sociedade, revogando um tabu humano ancestral, o de não se alimentar de seus semelhantes.
Do Capítulo 5 do livro, podemos extrair o seguinte parágrafo:
Nota: Eu uso a tradução da edição da Francisco Alves, que embora eu tenha de admitir, não é a mais correta, é a que estou mais familiarizado.
O próprio Lovecraft reconheceu em suas correspondências que jamais havia lido o livro verdadeiro, escrito em 1591 por Filippo Pigafetta, que teve edição publicada em inglês, sob o extenso título, "A Report of the Kingdom of Congo, and the Surrounding Countries, Drawn Out of the Writings and Discourses of the Portuguese, Duarte Lopez" - traduzido como "Uma Narrativa sobre o Reino do Congo, e países vizinhos, retirado dos escritos e discursos do português Duarte Lopez".
Ao invés de ler esse livro, Lovecraft teve acesso ao volume editado por Thomas Huxley, "Evidence to Man's Place in Nature" (Evidências do lugar do Homem na Natureza) que menciona longamente a obra de Pigafetta. Em seu livro, Huxley não economizou nas descrições dantescas ao falar da tribo congolesa dos Anziques, canibais que defendiam ferozmente seu território contra as investidas de outras tribos e de estrangeiros europeus. Huxley não destacava como incomuns os costumes dos Anziques, afinal, muitas tribos na região praticavam o canibalismo. O costume era recorrente em períodos de guerra e usado como forma de intimidação dos inimigos. Várias tribos consideravam que devorar seus inimigos lhes garantia força e habilidade. O que tornava os Anziques únicos era o fato deles canibalizarem os membros de sua própria sociedade, revogando um tabu humano ancestral, o de não se alimentar de seus semelhantes.
Do Capítulo 5 do livro, podemos extrair o seguinte parágrafo:
"Eles tinham cabanas para o abate de outros seres humanos, como nós temos para animais. Eles comiam os inimigos mortos no próprio campo de batalha, mas por vezes os capturavam como escravos para tentar vendê-los. Se no entanto, não conseguiam um bom preço; ficavam satisfeitos em levá-los até o açougueiro da tribo, que os matava, cortava em pedaços, cozinhava ou curava sua carne em troca de uma fatia. É um fato peculiar da história desse povo, que quando cansados da vida, ou desejando se provarem bravos e corajosos, era tido como um ato de grande honra sujeitar-se a morte ritualística nas mãos de um desses açougueiros. Assim, eles compareciam voluntariamente para o matadouro, oferecendo não apenas a sua vida para o restante da tribo, mas sua própria carne para ser devorada pelos demais. É verdade que muitos povos tem o costume de comer seres humanos, como nas Índias Orientais, no Brasil, e outros lugares, mas devorar a carne de amigos, vizinhos e até parentes, é algo sem paralelo, ocorrendo apenas entre as tribos Anzique".
Hoje em dia, o povo que já foi conhecido como Anzique é chamado Bateke, e vive na República Democrática do Congo e no Gabão. Eles fazem parte do grupo linguístico Bantu e são uma minoria étnica. Como ocorria em muitas estórias a respeito de canibalismo, os cronistas europeus exageravam nas descrições de seus "costumes selvagens", tornando a veracidade de tais estórias questionável, sem evidências adicionais.
Mas isso não impedia que as estórias continuassem a se espalhar ao longo dos séculos.
O famoso ilustrador Theodor de Bry foi um dos que se deixou influenciar por essas estórias. Foi De Bry quem criou a imagem usada por Huxley em seu livro, a mesma que inspirou o macabro conto de Lovecraft sobre uma casa na Nova Inglaterra onde as práticas dos Anzique vigoravam. Ilustrações como a de De Bry eram exploradas em cartões postais muito populares na Europa do século XVII. Ele dava forma às narrativa de vários viajantes e exploradores que se embrenhavam na África ou nas Américas. Suas imagens eram sempre perturbadoras e fascinantes, com um realismo primitivo. Seus estudos dos nativos da Virginia se encontram em várias galerias de arte e na Universidade da Carolina do Norte.
Theodor de Bry também ilustrou uma edição de Bartolome de las Casas, intitulada "A Brief Account of the Destruction of the Indies" (Uma breve narrativa da Destruição das Índias), um polêmico trabalho a respeito das cruéis práticas coloniais dos espanhóis nas colônias americanas. As imagens nesse trabalho estão entre as mais medonhas assinadas por de Bry, o que não é pouca coisa, considerando a gravura sinistra que influenciou Lovecraft a escrever "The Picture in the House". O livro e principalmente as gravuras foram instrumentais para estabelecer a terrível fama dos espanhóis, retratando-os como verdadeiros monstros, endossando tortura e genocídio. Sem dúvida, houve uma boa dose de crueldade e destruição, mas é importante salientar que os espanhóis não detinham o monopólio dos massacres praticados pelas nações europeias em sua busca por riquezas no Novo Mundo. Além disso, havia um fundo depreciativo e propagandista em mostrar os espanhóis como tiranos, já que eles competiam diretamente com várias outras nações. É fato que os excessos perpetrados pelos espanhóis na América se tornaram conhecidos em toda Europa, uma notoriedade que continuou presente nas guerras religiosas do século XVI, XVII e que chegou até o século XX através da Guerra Civil que varreu a nação.
O famoso ilustrador Theodor de Bry foi um dos que se deixou influenciar por essas estórias. Foi De Bry quem criou a imagem usada por Huxley em seu livro, a mesma que inspirou o macabro conto de Lovecraft sobre uma casa na Nova Inglaterra onde as práticas dos Anzique vigoravam. Ilustrações como a de De Bry eram exploradas em cartões postais muito populares na Europa do século XVII. Ele dava forma às narrativa de vários viajantes e exploradores que se embrenhavam na África ou nas Américas. Suas imagens eram sempre perturbadoras e fascinantes, com um realismo primitivo. Seus estudos dos nativos da Virginia se encontram em várias galerias de arte e na Universidade da Carolina do Norte.
Theodor de Bry também ilustrou uma edição de Bartolome de las Casas, intitulada "A Brief Account of the Destruction of the Indies" (Uma breve narrativa da Destruição das Índias), um polêmico trabalho a respeito das cruéis práticas coloniais dos espanhóis nas colônias americanas. As imagens nesse trabalho estão entre as mais medonhas assinadas por de Bry, o que não é pouca coisa, considerando a gravura sinistra que influenciou Lovecraft a escrever "The Picture in the House". O livro e principalmente as gravuras foram instrumentais para estabelecer a terrível fama dos espanhóis, retratando-os como verdadeiros monstros, endossando tortura e genocídio. Sem dúvida, houve uma boa dose de crueldade e destruição, mas é importante salientar que os espanhóis não detinham o monopólio dos massacres praticados pelas nações europeias em sua busca por riquezas no Novo Mundo. Além disso, havia um fundo depreciativo e propagandista em mostrar os espanhóis como tiranos, já que eles competiam diretamente com várias outras nações. É fato que os excessos perpetrados pelos espanhóis na América se tornaram conhecidos em toda Europa, uma notoriedade que continuou presente nas guerras religiosas do século XVI, XVII e que chegou até o século XX através da Guerra Civil que varreu a nação.
Eu mesmo tive uma experiência que me recordou "The Picture in the House." Antes do meu trabalho como arqueólogo da Conquista Espanhola, trabalhei em uma escavação em El Salvador. Trouxe de lá alguns livros, inclusive uma cópia de "Knights of Spain, Warriors of the Sun: Hernando de Soto" (Cavaleiros da Espanha, Guerreiros do Sol: Hernando de Soto), que apresentavam algumas ilustrações feitas por de Bry. Estas ilustrações me causavam enorme aflição.
Canibalismo também fazia parte das imagens, mas por alguma razão, os pedaços de pessoas e especialmente a face das vítimas esfoladas ou mutiladas, era o que mais me incomodava. Eu sabia das estórias sobre nariz e orelhas cortados como forma de punição por rebelião na Europa feudal, mas quando captados por de Bry aquelas imagens ganhavam vida de forma medonha. Pelo restante de minha estada no projeto, um período de vários meses, aquelas imagens continuavam me atormentando. Eu tentava evitá-las enquanto lia o livro que era importante para o trabalho, ainda assim acabava atraído para elas. Só quando deixei El Salvador, e o claustrofóbico apartamento onde eu morava, que consegui encarar o livro sem a aura de opressão que ele causava. Hoje ele não me incomoda da mesma maneira, mas naquela época de grande incerteza, vivendo em um país estrangeiro, onde aquelas coisas realmente haviam acontecido, as imagens concebidas por de Bry me deixavam apavorado.
Recentemente, eu narrei o cenário "Consumption" de Brian Sammons que busca inspiração direta no conto "A Estampa na Casa Maldita". Para ser mais preciso, a estória é uma espécie de continuação dos eventos narrados no conto original.
Lá pelas tantas, na estória, os personagens conseguem obter não apenas a macabra "Estampa XII" mencionada no conto, mas páginas do Regnum Congo.
Eu achei que essas páginas dariam um prop legal - muito mais interessante do que simplesmente descrever as páginas antigas e cheias de imagens sinistras de canibalismo, morte e corrupção.
Para criar minha versão do Regnum Congo, recorri a imagens colhidas na internet que pertencem a gravuras feitas por Theodor de Bry. Através delas, finalmente consegui ver a imagem original da Estampa XII (o açougue de carne humana que deixou Lovecraft tão chocado).
Também descobri que as imagens mais famosas que ilustram as viagens do aventureiro alemão Hans Staeden pelo Brasil colonial (em especial sua captura por tribos canibais na nossa costa) são de autoria do próprio de Bry. Percebendo essa inevitável conexão inclui na estória uma menção a jornada de pesadelos de Staeden por essas bandas e sua estadia entre os índios Tupinambás.
Estas são a imagens do Regnum Congo que eu usei para Consumption:
* * *
Recentemente, eu narrei o cenário "Consumption" de Brian Sammons que busca inspiração direta no conto "A Estampa na Casa Maldita". Para ser mais preciso, a estória é uma espécie de continuação dos eventos narrados no conto original.
Lá pelas tantas, na estória, os personagens conseguem obter não apenas a macabra "Estampa XII" mencionada no conto, mas páginas do Regnum Congo.
Eu achei que essas páginas dariam um prop legal - muito mais interessante do que simplesmente descrever as páginas antigas e cheias de imagens sinistras de canibalismo, morte e corrupção.
Para criar minha versão do Regnum Congo, recorri a imagens colhidas na internet que pertencem a gravuras feitas por Theodor de Bry. Através delas, finalmente consegui ver a imagem original da Estampa XII (o açougue de carne humana que deixou Lovecraft tão chocado).
Também descobri que as imagens mais famosas que ilustram as viagens do aventureiro alemão Hans Staeden pelo Brasil colonial (em especial sua captura por tribos canibais na nossa costa) são de autoria do próprio de Bry. Percebendo essa inevitável conexão inclui na estória uma menção a jornada de pesadelos de Staeden por essas bandas e sua estadia entre os índios Tupinambás.
Estas são a imagens do Regnum Congo que eu usei para Consumption:
Alguns props do cenário |
As páginas com estampas de de Bry no Regnum Congo |
A estampa XII, é claro, merece destaque. |
Essa imagem se refere a viagem de Hans Staeden e o período em que ele foi hóspede dos Tupinambás |
O que não faltam são imagens bizarras sobre canibalismo. |
Informações sobre o livro Regnum Congo |
Os detalhes do Tomo:
REGNUM CONGO
Este
livro com capa de couro e reforçado com placas de metal foi escrito por Filippo
Pigfetta um viajante genovês do século XVI que esteve na África em expedições
coloniais. A edição foi publicada originalmente em Frankfurt na Alemanha, em
1858. Essa cópia amarelada foi avariada pelo fogo e perdeu várias de suas
ilustrações que foram arrancadas. O texto interno foi escrito em Latim e possui
informações de natureza antropológica a respeito de práticas de canibalismo em
várias partes do mundo, com uma visão particular da África oriental. Os
capítulos mencionam práticas funerárias e rituais onde o consumo de carne humana
é o ápice da celebração. A narrativa menciona religiões obscuras, deuses
desconhecidos e crenças primitivas com inquietante riqueza de detalhes. Dois
capítulos se referem especificamente a rituais testemunhados pelo autor
enquanto este viajava pela África, ocasião em que foi capturado por tribos
primitivas. O livro cita outras experiências de viajantes que cruzaram o
caminho com tribos selvagens adeptas da antropofagia – o caso de Hans Staeden,
mercenário alemão que naufragou na costa brasileira e foi capturado dos
Tupinambás e Gregory Cathem “hóspede” de tribos maori na Nova Zelândia.
Finalmente, o livro ensina como conduzir rituais místicos envolvendo
canibalismo.
Regnum Congo,
em latim, Cthulhu Mythos +2%, Custo de Sanidade: 1/1d8, sete semanas para ler e
compreender. Magias: Consumir a Aparência, Consumir a Mente, Devorar a Força do
Inimigo, Ceia da Purificação, Comida da Vida e Segunda Pele. Cada magia carece
de um teste de INT x3.
Esse vídeo explica como o canibalismo em comunidades africanas leva ao surgimento de doenças que podem ser usadas como uma explicação do surgimento de zumbis, o que pode ter um uso interessante. Bem, falando assim fica estranho, mas o vídeo é bem interessante:
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=Cubu-k7kSvw
Oi, Luciano!!! Parabéns, esse texto está sensacional!! O conto The Picture in the House foi um dos que me assustou de verdade quando comecei a ler suas histórias. É muito perturbador porque a sensação de cotidianidade não se perde em nenhum momento... é como se realmente pudéssemos nos deparar com um canibal louco no meio de uma conversa inocente...
ResponderExcluirLuciano, os props ficaram sensacionais! Que técnica você usou para confecciona-los?
ResponderExcluirDruidi - Tudo muito simples de fazer. Arranjei um papel pardo comum, cortei em tamanho A4 para caber na impressora. Busquei imagens condizentes com o tema e imprimi. Para envelhecer o papel e deixar umas manchas de tempo, usei café e um giz de cera marrom para dar um ar "esfumaçado". Para completar, queimei as laterais do papel com um acendedor de fogão. Tudo fácil e rápido.
ResponderExcluirMacabro, porém...incrivel!
ResponderExcluirDesculpe, mas esse livro fez uma confusão total ele mostra a América do Sul. Ou então as gravuras de livros sobre a América do Sul foram utilizadas como se fossem da África. O pior desenharam os índios como se fossem brancos.
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