Por que o Julgamento de Scopes foi considerado tão importante a ponto de ser chamado de "O Julgamento do Século"?
Ele foi um marco que expôs aos americanos uma profunda cisão em seu país: entre ciência e fé, modernidade e tradicionalismo, cidade e campo. Mais do que isso, revelou a faceta conflituosa no seio de sua nação para um número sem precedente de espectadores, na forma de um drama transmitido ao vivo pelo rádio.
O Julgamento de Scopes, também chamado de "O Julgamento da Evolução de Scopes" ou "O Julgamento do Macaco de Scopes", teve início no dia 10 de julho de 1925. O acusado era John Thomas Scopes, 24 anos, um simples professor do ensino médio que foi processado por violação ao Ato Butler que proibia ensinar a teoria da evolução de Charles Darwin em escolas. O famigerado Ato Butler aprovado pela Junta de Educação Norte-Americana vedava aos professores o direito de ensinar qualquer teoria capaz de contrariar o conceito bíblico do Criacionismo. Meramente falar a respeito da Evolução e expor a existência de uma teoria afirmando que o homem descendia de macacos, era o suficiente para quebrar a lei. Scopes foi preso em sala de aula, fichado em uma delegacia e colocado em uma cela para aguardar julgamento.
O julgamento teve lugar em Dayton, Tennessee, e foi o resultado de uma cuidadosa série de eventos orquestrada para trazer publicidade ao Ato Butler e expor seu caráter absurdo. Scopes já havia sido avisado de que deveria se abster de lecionar as "teorias conflituosas" de Charles Darwin. Inclusive, havia recebido ameaças de grupos religiosos contrários a disseminação daquilo que consideravam uma "ofensa à Bíblia, à lei dos homens e ao próprio Deus".
Cruzadas para banir o Darwinismo das escolas públicas americanas eram algo frequente. Em 1917 seus defensores conseguiram sucesso nos estados do Sul, onde protestantes controlavam as assembleias. Em 1923 a teoria evolucionista foi banida dos Estados da Flórida e Oklahoma que as julgou impróprias e subversivas, uma vez que atendiam a interesses exclusivos de grupos "ateus" e "agnósticos". Para os fundamentalistas, que defendiam a interpretação literal da Bíblia, não havia espaço na criação unilateral de Deus para uma suposta evolução das espécies ao longo de milhões de anos. "Para o Inferno com a Ciência se ela vai condenar as nossas almas" era um dos slogans usados pelos criacionistas. Com base nessa defesa fervorosa, o Senador William Butler conseguiu aprovar a lei que proibia o ensino das teorias de Darwin em escolas públicas.
Quartel General da Liga anti-evolução |
O Julgamento de Scopes atraiu centenas de jornalistas de todo o país, e se tornou uma sensação da noite para o dia. No coração do Tennessee, diziam as manchetes, havia se formado uma verdadeira Inquisição que freava o conhecimento científico com base em princípios religiosos medievais. O que estava em julgamento não era apenas um professor que ousara ensinar uma matéria proibida, mas a própria liberdade para que crianças tivessem acesso a teorias aceitas em outros países.
Viajantes que passavam pela pequena Dayton, naquele mês de Julho de 1925 poderiam pensar que a cidade estava sediando algum tipo de evento religioso. As ruas estavam abarrotadas de pessoas, o comércio prosperava com a presença de forasteiros e gente vinda de todo canto, uma feira havia se formado na praça central, pastores de pé sobre púlpitos improvisados gritavam sermões e eram acompanhados por fiéis recitando salmos e cantos religiosos - repetindo Hosanas e Améns. Livros de ciência e biologia eram atirados em grandes fogueiras para arder no fogo da expiação. Dayton havia se tornado um enorme tabernáculo a céu aberto, a capital da Fé, com os muros cobertos de pôsteres exortando a população a "Ler a Bíblia" para assim evitar as chamas da danação.
"Leia a sua Bíblia" |
A ACLU contratou o renomado advogado criminal de Chicago, Clarence Darrow, para ser o defensor de Scopes. Darrow era considerado uma das mentes jurídicas mais brilhantes de sua geração, um liberal reformador que havia livrado da cadeira elétrica os acusados Leopold e Loeb, um sensacional caso de homicídio, poucos anos antes. Seu nome ainda atraía a atenção da mídia e despertava interesse do público. Darrow aceitou assumir a defesa sem cobrar nada pelos seus serviços, ele acreditava na importância do caso e tudo que ele representava.
Do outro lado, o Promotor público de Dayton se cercou de autoridades religiosas, pastores, educadores e do ex-candidato Democrata à presidência dos Estados Unidos, William Jennings Bryan - que seria seu conselheiro direto no correr do caso. Bryan era uma figura carismática na América do começo do século. Um estudioso religioso que defendia fervorosamente os ensinamentos estritos da Bíblia. Era também um congressista pelo Estado do Nebrasca. Bryan definiu o julgamento como um "duelo de vida e de morte" – que colocaria cientistas ateus contra o povo simples e temente a Deus. A sentença final iria determinar não apenas o currículo das escolas em todo país, mas definiria o futuro da nação.
O encontro desses dois Titãs seria nada menos do que sensacional segundo os jornais da época. O confronto entre os brilhantes advogados disputaria as atenções não só do juri, mas de todo país. Darrow e Bryan, eram, além de tudo, antigos aliados, separados por diferenças políticas que os transformou em ferozes adversários.
Os principais personagens do julgamento do Macaco |
No dia anterior ao início ao início dos procedimentos, as partes selecionaram os jurados. Aproximadamente 600 espectadores - incluindo muitos jornalistas e repórteres de rádio, bem como uma significativa porcentagem de residentes de Dayton, tiveram acesso a Corte de Justiça. A lotação e as discussões inflamadas faziam com que a temperatura no tribunal se tornasse quase insuportável.
A estratégia da promotoria era clara. Ela não tencionava discutir o valor ou importância do Ato Butler, apenas o fato de que Scopes o havia transgredido. Para a acusação o caso era simples: o réu havia quebrado a lei ensinando uma matéria proibida, portanto deveria ser declarado culpado. As testemunhas, os alunos e as autoridades que prenderam Scopes, estavam de acordo que o professor havia iniciado a aula a respeito das teorias de Darwin, não havia dúvidas portanto que ele havia agido deliberadamente contra a lei.
A defesa do professor era consideravelmente mais complexa. Um pedido de anulamento do julgamento foi negado o que fez Darrow atacar diretamente a validade do Ato Butler que ele chamou de "injusto, tolo, ridículo e enaltecedor de um obscurantismo digno da Era das Trevas". Por isso, Darrow recebeu uma sonora vaia que quase impossibilitou a continuação do julgamento naquele dia. Parecia que o advogado de Chicago não conseguiria granjear simpatia.
No segundo dia de julgamento, Darrow focou seu argumento na necessidade de haver imparcialidade entre as leis e a religião. Mais cedo naquele mesmo dia, o defensor havia objetado o fato do Juiz iniciar os procedimentos da Corte, como de costume, com uma oração. Ele também exigiu que uma enorme faixa na entrada da Sala de Julgamento, onde se lia "Leia a Bíblia" fosse removida, ou outra do mesmo tamanho escrita "Leia Darwin" fosse pendurada no mesmo local. O Juiz negou os dois pedidos. Além disso, a Corte também considerou inadmissível o depoimento de doze cientistas e especialistas em Evolução que haviam sido chamados para testemunhar sobre a validade da teoria considerada ilícita.
Com a causa dependendo desses experts, a defesa ficou de mãos atadas. Tudo levava a crer que não haveria como absolver o acusado, uma vez que o Juiz impugnou todas as testemunhas. Sem ter a quem recorrer Darrow formulou uma estratégia genial; ele chamou como testemunha ninguém menos do que seu adversário, William James Bryan para falar a respeito da Bíblia e da sabedoria contida no "bom livro". Bryan não se deixou intimidar e subiu ao banco de testemunhas com entusiasmo, jurando que responderia as perguntas com total isenção tendo como base seu extenso conhecimento das sagradas escrituras.
Darrow entrevistou Bryan por quase duas horas, sem se concentrar em momento algum no caso contra Scopes. Seu objetivo era demonstrar que muitas passagens da Bíblia contrariavam a lógica e portanto não deveriam ser aceitos textualmente.
O advogado iniciou a sua inquirição perguntando se Bryan acreditava em todos os fatos contidos na Bíblia. O que ele respondeu entusiasmado: "tudo o que está na Bíblia corresponde à verdade, e nada menos que a verdade". Darrow acenou com a cabeça e começou a apresentar vários elementos conflitantes no livro sagrado: "O senhor acredita que Jonas foi realmente engolido por uma baleia"? "O Senhor realmente acredita que Adão e Eva foram os primeiros habitantes no planeta"? "Que todos os idiomas conhecidos se originaram com a Torre de Babel"? "Que o Mundo foi criado em apenas seis dias e não ao longo de milhões de anos"? "Que o Rei Davi conseguiu fazer o sol parar de girar no céu"?
Bryan se limitava a dizer que "tudo o que está na Bíblia deveria ser interpretado como verdade inquestionável". Mesmo diante das explicações de Darrow da impossibilidade física de vários detalhes, Bryan não se deixava abater. "Eu aceito a Bíblia inteiramente!". Mas a medida que Darrow prosseguia em seu questionamento, Bryan começou a demonstrar que sua aceitação não era tão literal: ele concordou que talvez o mundo não tivesse sido criado em seis dias, mas que esse período de tempo poderia corresponder a períodos de tempo maiores, séculos, milênios, milhares de anos...
Com a entrevista se arrastando, o debate foi se tornando cada vez mais visceral, e os comentários sarcásticos de Darrow cada vez mais afiados, sobretudo quando Bryan decretou: "Há coisas que Deus não deseja que o homem saiba", ao que Darrow respondeu "Se a humanidade tivesse seu interesse pelo mundo que a cerca, nós ainda estaríamos vivendo no fundo de cavernas assustados com trovões e com a escuridão da noite". Fundamentalistas na audiência ouviam a exposição com desconforto a medida que seu defensor afirmava categoricamente que mesmo os fatos mais questionáveis da Bíblia tinham de ser levados ao pé da letra. Estava claro que Bryan tinha caído em uma armadilha. Foi um duro golpe na brilhante carreira de Bryan. Em cadeia nacional de rádio ele estava literalmente afundando em areia movediça.
Advogados quase trocam socos no Julgamento da Evolução |
Apesar da enorme importância que o caso havia atingido, a pena decretada pelo Juiz foi irrisória. Scopes foi condenado a pagar uma multa de meros US$ 100 dólares o que reforçou o caráter tragicômico do "Julgamento do Macaco". Toda aquela comoção se resumiu a uma multa de pequeno valor.
Após o julgamento, a Junta de Educação se reuniu para decidir se a Teoria da Evolução de Darwin deveria ou não fazer parte do currículo escolar das escolas públicas americanas. A decisão foi negativa e o Ato Butler continuaria em vigor por mais 42 anos, até o ano de 1967 quando enfim foi revogado.
Scopes recebeu convites para lecionar em outras instituições privadas e se tornou professor licenciado de ciências, cargo que manteve até se aposentar. Sua multa foi paga pela Universidade de Baltimore que assumiu todos os custos da mudança de Scopes para outro estado. A Suprema Corte americana também decidiu fechar o caso e declarar as acusações contra Scopes nulas, encerrando assim uma página bizarra nas cortes de justiça do país. Mais nenhum professor foi julgado por ensinar a Teoria da Evolução, e embora a matéria não estivesse em nenhum currículo escolar, ela era abordada extra-oficialmente na maioria das escolas sem prejuízo para os professores.
Clarence Darrow continuou trabalhando como advogado em casos de grande importância e comoção pública. Ele é considerado até hoje um dos maiores advogados da história americana. Quanto a William Bryan, ele morreu três anos depois, enquanto ainda tentava retornar à política. Até o fim de sua vida, ele foi ridicularizado pelos seus opositores pelas suas crenças estritas dos preceitos religiosos.
Graças a esse julgamento e a revogação de sua sentença pela Suprema Corte, esforços por parte de defensores do Criacionismo, tentando banir as Teorias de Evolução de Darwin, foram negados. Por outro lado, a aprovação de teorias controversas a partir do Julgamento de Scopes abriu a porta para defensores da Eugenia nos anos 1930.
Quase 90 anos depois de encerrado o julgamento, o tema continua incrivelmente atual.
O ardente debate entre Evolucionistas e Criacionistas prossegue despertando paixões de ambos os lados e é assunto recorrente nas cortes de justiça. Recentemente pais conseguiram obter o direito de retirar seus filhos de aulas que eles consideravam afrontar suas crenças religiosas.
Ao que parece, a questão ainda irá gerar muita controvérsia.
Ao que parece, a questão ainda irá gerar muita controvérsia.
Excelente post. E, bem como concluiu o texto, o debate continua extremamente atual. Percebo a sutileza de sua palavras e a acidez de sua critica inserida na conjuntura atual do país.
ResponderExcluirParabéns.
Uma das coisas mais bacanas em ciência é que ela apresenta fatos sólidos, quer você acredite em ciência, quer não.
ResponderExcluirGrande tema, e ajuda, também, a esclarecer um pouco sobre a mentalidade americana nos anos 20, para fins de ambientação.
Parabéns.
Ps: Se der, um dia escreva sobre as "Dust Bowl", enormes tempestades de areia que arrasaram a economia do meio oeste nos anos 30.
Abraços
Uma das coisas interessantes a respeito de ambientações como Chamado de Cthulhu é que elas estão em sintonia com os acontecimentos da época em que se passa a estória. É por isso que eu fico à vontade para falar em temas que não são propriamente sobre o jogo, mas que podem tranquilamente ajudar a compor o pano de fundo.
ResponderExcluirSobre os Dust Bowls, já escrevi a respeito, dá uma olhada no link:
http://mundotentacular.blogspot.com.br/2010/07/nevasca-negra-tempestades-de-areia.html
"Meramente falar a respeito da Evolução e expor a existência de uma teoria afirmando que o homem descendia de macacos"
ResponderExcluirNesse texto, eu vi pelo menos duas vezes falando que o homem "descende" de macacos. Na Teoria da Evolução não existe isso, mas sim que o homem e o macaco tiveram um ancestral em comum.
Eu acho que o autor do post quis dizer que a acusação do professor,os criacionistas de modo geral é que queriam afirmar isso de que o homem vêm dos macacos,o que não é verdade,mais do que o próprio Scopes!
ExcluirIsso era ( e ainda é ) o argumento usado propositalmente, ou por ignorância mesmo, pra desqualificar a Teoria...
ResponderExcluirevolucionismo????? Isso é pura bobagem e alienação forçada.
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