O século XIX foi uma época marcada pelo avanço científico e racionalidade; contudo, a superstição continuou reinando no dia a dia das pessoas.
Antes de Jack, o estripador espreitar pelas ruas escuras de Whitechapel, um tipo diferente de terror supostamente vagava pelas ruas da Inglaterra Vitoriana. As estórias falavam de uma figura alta, usando um sobretudo comprido e com olhos vermelhos brilhando na escuridão. Uma visão apavorante, uma figura misteriosa capaz de saltar incríveis alturas e que ameaçava, perseguia e segundo alguns, até matava aqueles que tinham o azar de encontrá-lo.
Era a década de 1830, e aqueles foram os tempos do Spring-heeled Jack (Jack dos saltos de mola, um nome horrível dolorosamente traduzido ao pé da letra).
No momento em que essa estranha figura fez a sua primeira aparição, o fenômeno agarrou a imaginação da nação e até hoje deixa historiadores sem palavras, pois o mito resistiu por mais de sessenta anos. Batizado pelos jornais e pelos tabloides interessados em lucrar com a estória de um monstro super-humano, este personagem fantasmagórico permanece até os dias de hoje como uma das mais longevas lendas urbanas da Inglaterra.
A mais antiga narrativa sobre essa criatura menciona o Vilarejo de Barnes, um lugar notoriamente perigoso para se viajar à noite. Esta área remota de Londres (hoje em dia um belo subúrbio) foi onde o Spring-Heeled Jack foi visto pela primeira vez.
Era uma noite fria em abril de 1837 e um vendedor itinerante não identificado voltava tarde de seu trabalho. Em determinado momento, ele decidiu pegar um atalho que passava através do cemitério de uma igreja. Ciente do risco que estava correndo naquele lugar insalubre, ele acelerou o passo. Foi então que uma figura escura saltou do alto do campanário da igreja, caindo diretamente sobre as costas do pobre homem. No momento em que o comerciante viu os olhos vermelhos do fantasma, ele reuniu suas forças e correu sem olhar para trás. Este foi o primeiro testemunho a respeito do Spring-Heed Jack. Alguns relatos menores foram publicados em jornais nos meses seguintes após o ataque em Barnes, entretanto poucos identificavam a figura misteriosa como sendo o mesmo agressor.
Em 19 de fevereiro de 1838, o Spring-heeled Jack fez outra aparição, dessa vez nos arredores de Old Ford, próximo ao centro de Londres. Por volta das 21 horas, uma jovem de 18 anos chamada Jane Alsop ouviu uma batida na porta da frente de sua casa. Estranhando a presença de alguém a essa hora, ela ficou relutante em atender as insistentes batidas. Ela concordou em fazê-lo apenas quando o homem do outro lado se identificou como um policial.
"Pelo amor de Deus, mulher," disse a voz aflita do outro lado, "traga uma lanterna aqui fora, nós capturamos Spring-heeled Jack aqui na ruela."
Jane correu para pegar uma vela e abriu a porta. Entretanto, no momento que destrancou o ferrolho, a porta abriu de supetão e a atirou no chão. Ao erguer a cabeça, ela se deparou com uma figura incrivelmente alta, vestindo um sobretudo escuro e segurando uma lanterna com uma luz tênue. Da sua boca aberta emanava uma fumaça azulada e fria. A luz da lanterna iluminava a sua face maligna e a jovem mulher foi capaz de ver os olhos de cor escarlate, as orelhas pontudas e um tipo de chapéu estranho em sua cabeça.
Antes de poder reagir, a figura macabra se agachou sobre ela segurando seus braços e a impedindo de levantar. A seguir o monstro começou a arrancar as roupas da moça usando uma navalha extremamente afiada. Os gritos de Jane acabaram atraindo suas duas irmãs que viram a cena medonha e começaram a implorar pelo socorro dos vizinhos. O agressor então se levantou e escapou fugindo pela rua enquanto as meninas batiam a porta. Como resultado do ataque, Jane foi ferida por vários cortes produzidos pela navalha do monstro. Em estado de choque ela contou às autoridades - que foram imediatamente chamadas - o que havia acontecido. As três irmãs deram o mesmo depoimento e descreveram o agressor com as mesmas características perturbadoras. Da casa da frente, uma viúva chamada Freda Carrington contou ter visto toda a cena. Segundo ela, assim que as meninas bateram a porta, Spring-Heeled Jack correu para as sombras e saltou habilmente no teto da casa, desaparecendo em seguida.
Em 28 de fevereiro, o facínora atacou novamente. As vítimas dessa vez foram duas jovens chamadas Lucy e Sarah Scales, irmãs que andavam pela Green Dragon Alley, uma área respeitada de Limehouse. Por volta das 20 horas, uma figura escura confrontou as jovens saindo de dentro de uma viela e tentando agarrar Lucy pelo braço. Elas descreveram o sujeito como sendo muito alto e coberto dos pés a cabeça por um sobretudo de veludo preto. Na outra mão ele tinha uma lanterna. Lucy tentou resistir batendo na figura, mas ele a puxou com violência para a viela onde ambos desapareceram. Sarah correu aos gritos tentando encontrar ajuda e por sorte foi ajudada por dois soldados que estavam de folga. Os dois correram para o lugar onde tudo aconteceu e ao entrar no beco viram a jovem caída de costas desacordada. O atacante havia sumido. Lucy se recuperou dias depois do choque, suas roupas estavam rasgadas e ela sofrera cortes semelhantes a última moça atacada, mas o monstro não a havia ferido gravemente. Sua descrição foi semelhante a dada pelas demais testemunhas. Tudo levava a crer que se tratava do mesmo agressor.
Em 9 de janeiro de 1838, poucos meses depois da aparição no cemitério e antes do ataque envolvendo Alsop e as irmãs Scales, o Spring-heeled Jack já havia se tornado uma preocupação genuína, sendo tema de uma sessão oficial da Mansion House.
Sir John Cowan, Lord Prefeito de Londres, recebeu uma carta anônima assinada por alguém que se identificava apenas como "Morador de Peckham." O autor relatava que havia tomado conhecimento de uma aposta firmada entre um grupo de jovens nobres. De acordo com o "Morador de Peckham", a aposta envolvia um nobre vestir uma espécie de fantasia de fantasma ou demônio afim de assombrar vilarejos próximos. Esses jovens eram, nas palavras do autor da carta, "moleques de famílias importantes que apostaram 5 mil libras em uma brincadeira inconsequente".
A carta ia mais longe, descrevendo lugares onde pessoas deveriam ser atacadas pelo "fantasma". Bastou o até então cético Lord Cowan mencionar a questão em uma sessão, para dezenas de outras cartas inundarem a prefeitura, todas alegando onde, quando e como aconteceriam ataques perpetrados por indivíduos vestindo fantasias diabólicas. Cowan estava inclinado a acreditar que os ataques não passavam de uma brincadeira bem elaborada e de extremo mal gosto. Ele ordenou a criação de um inquérito policial que deveria solucionar o caso o mais rápido possível, antes que alguém acabasse machucado seriamente.
Duas investigações tiveram início, uma delas conduzida pelo escritório da Polícia Metropolitana e a outra por James Lea, um membro estimado da Patrulha de Bow Street. Lea havia conquistado certa reputação e era considerado o melhor detetive da Inglaterra, tendo resolvido o notório caso do assassinato de Maria Marten em 1827.
Lea entrevistou Jane Alsop e conclui que "em seu medo, a senhorita deve ter confundido a aparência de seu agressor". O detetive conclui ainda que a moça "havia bebido na véspera, ainda estando sob efeito enebriante do álcool". Apesar de ter chegado a essa conclusão, Lea continuou procurando evidências de um criminoso, prendendo e interrogando dezenas de suspeitos. A pista eventualmente acabou esfriando e a maioria dos suspeitos foram inocentados como meros bêbados, a maioria deles inofensivos. Insatisfeitos pelo procedimento empregado, o detetive foi removido do caso e o inquérito encerrado sem uma conclusão.
O abrupto encerramento da investigação foi muito criticado pela população que desejava saber mais a respeito do Spring-heeled Jack. A histeria fazia com que as pessoas enxergassem o criminoso em todo canto. Relatos de pessoas que haviam visto o misterioso criminoso se multiplicavam nos jornais. Diversas edições de Penny Dreadful dedicavam suas páginas a estórias envolvendo a terrível criatura, transformada em uma assustadora ameaça, chamada repetidamente de "O Terror de Londres."
Em primeiro de março de 1838, houve um relato - até hoje questionável, de que três mulheres haviam sido atacadas por um agressor ao longo da mesma semana. As testemunhas descreveram o criminoso como um homem alto, vestido com um manto e com chifres na cabeça. Em Woodham, um vilarejo nos arredores de Londres, três homens teriam atacado uma mulher e a violentado em um celeiro. A mulher relatou que um dos agressores disse ser o Spring-heeled Jack e que voltaria se ela falasse a respeito do que aconteceu. Em outro povoado, um homem quase foi linchado por uma multidão, apenas por dirigir a palavra a uma jovem. Capturado e arrastado para a praça o pobre diabo escapou por pouco de ser morto pela turba. Depois se ficou sabendo que ele era um marinheiro e que estivera longe da Inglaterra nos últimos anos.
Com o temor crescendo entre a população, as teorias mais absurdas afloravam: o Spring-heeled Jack seria um demônio que havia escapado do porão de uma igreja, para outros o fantasma era um espectro pertencente a um conhecido estuprador, morto um século antes. Para outros ele era de carne e osso, o filho degenerado de um Lorde da cidade, interessado em satisfazer seus desejos carnais. Mas em todos os casos, o nome Spring-heeled Jack havia se tornado sinônimo de "bicho papão".
Eventualmente, o temor público foi diminuindo a medida que as pessoas foram esquecendo da estória. Spring-heeled Jack foi lentamente esquecido, substituído pela iminência de outras preocupações e de outros problemas numa sociedade em acelerada transformação. É possível dizer que ele chegou perto de desaparecer por completo, tornar-se apenas uma estranha lembrança, uma nota de rodapé, o equivalente a um vilão de contos de fadas...
Em 12 de novembro de 1845, houve um último sopro que revigorou ainda que parcialmente a sua identidade. Tudo ocorreu em Jacobs Island, no embarcadouro ao sul do Rio Tâmisa. Uma figura misteriosa se aproximou de uma prostituta conhecida como Maria Davis. A figura encapuzada, trajando um sobretudo arranhou a mulher com garras afiadas com navalhas e ela sobreviveu apenas por que saltou do alto de uma ponte. A mulher foi retirada do rio e confusa deu a descrição do monstro que havia deixado cicatrizes em sua pele: um homem alto, de aspecto diabólico, com chifres na cabeça. Ele saltou do alto de um prédio e a atacou com garras afiadas. Alguns jornais falaram a respeito do caso, alguns lembraram do Spring-heeled Jack, mas não houve maiores consequências.
O caso seguinte teve lugar em meados de agosto de 1877, no
Quartel de Aldershot em Surrey, a 60 quilômetros do centro de Londres. Aldershot era o centro de comando do Exército Britânico, o lar de 10,000 soldados que protegiam a capital. Em uma tarde, um jovem sentinela estava guardando o portão norte quando percebeu um estranho movimento. Era uma figura encapuzada e muito alta. O guarda lembrou mais tarde que ouviu o som de molas de metal enquanto a estranha figura se movia saltitando. No exato momento em que o soldado deu ordem para o sujeito parar, ele executou um salto que o lançou além do muro que cercava o quartel. O guarda imediatamente acionou o alerta e outros soldados correram para capturar o invasor.
O quartel foi todo revistado, mas nenhum sinal do estranho invasor saltitante foi descoberto, muito embora, nas semanas seguintes vários soldados tenham alegado ter visto (e ouvido) coisas estranhas. Temendo que algo sinistro estivesse acontecendo, o comandante do quartel ordenou que fossem distribuída munição entre os soldados e que a guarda fosse redobrada. Dias depois dessa medida, um soldado disparou contra um vulto acreditando se tratar do Spring-heeled Jack. Infelizmente, ele alvejou três cidadãos inocentes; um deles mortalmente.
O famoso tabloide londrino Illustrated Police News, famoso por vender notícias sensacionalistas estampou em sua manchete que aquele era o retorno do Spring-heeled Jack e ofereceu uma recompensa para qualquer pessoa que visse o maníaco. É claro, surgiram incontáveis narrativas em todo canto, algumas mencionando grotescos assassinatos e inexplicáveis mistérios sobrenaturais. Mas após alguns meses, as narrativas foram desaparecendo novamente, junto com o interesse do público.
Três décadas se passaram até o nome do Spring-heeled Jack ressurgir no vácuo de outro acontecimento estarrecedor. Fazia quase 70 anos que uma figura vestindo sobretudo havia atacado um comerciante num cemitério no ano de 1837, e foram necessários outros crimes grotescos para o fantasma se manifestar uma vez mais. Em meio ao reinado sangrento de outro Jack, dessa vez o estripador de Whitechapel, a lendária figura do Spring-heeled foi resgatada. Em 1888, alguns acreditavam que os crimes haviam sido cometidos por uma entidade sobrenatural, o que era condizente com as lendas do criminoso saltitante.
Um jornal da época chegou a cogitar que o assassino de prostitutas conseguia se mover através do East End saltando por cima dos telhados dos prédios e sobrados. Dessa forma, ele conseguia iludir a polícia e seus perseguidores. Mas o horror dos assassinatos conseguiam suplantar até as mais sinistras estórias sobre o Spring-heeled. Em um inquérito público, um dos investigadores da Polícia Metropolitana se irritou quando um repórter perguntou se ele acreditava que os crimes eram cometidos pelo lendário criminoso. "Não temos tempo para esse tipo de bobagem" respondeu o investigador. O assassino real era bem mais assustador do que o da ficção.
Em setembro de 1904, uma nova aparição, dessa vez diante de uma multidão. Uma figura extremamente alta e veloz foi vista por mais de cem pessoas reunidas nos arredores da estação William Henry em Liverpool. A figura saltou do chão até o topo de um prédio e desapareceu diante das testemunhas atônitas que não sabiam o que pensar. Esta aparição, se é que se tratava do Spring-heeled Jack, marcou o primeiro avistamento da figura por um grande número de pessoas em plena luz do dia. Uma ousadia que até hoje permanece sem explicação.
O século XX abraçou o mito do Spring-heeled Jack de tal maneira que ele atravessou um século inteiro de transformações, sem alterar sua forma original. A figura seguiu fazendo aparições ocasionais e sendo frequentemente lembrado pela população. Na década de 1920, em 1940, 1950 e 1960, várias pessoas alegaram tê-lo encontrado nas ruas. Em 1967 ele teria atacado duas jovens em plena Trafalgar Square, em 1976 ele saltou no teto de um automóvel e dali para cima de uma estátua no Hide Park, em 1997, ele foi visto por um grupo de turistas japoneses que tiraram fotografias enquanto ele saltava para uma margem do Tâmisa... e é claro, ele ainda será visto centenas de vezes.
Desde a sua primeira aparição em 1837 o fantasma jamais foi apanhado, mas ao longo das décadas, o Spring-heeled Jack se tornou um termo frequentemente usado pelos habitantes de Londres, para descrever qualquer fenômeno sobrenatural ou de natureza ameaçadora.