domingo, 31 de maio de 2015

O Cálice Amaldiçoado de H.P. Lovecraft (e outros tesouros menos conhecidos)


Muito se fala a respeito do ardente sentimento materialista e ateísta de H. P. Lovecraft. Para muitos, esse é um dos elementos que definem quem ele foi. Pessoalmente, um dos grandes "e se" da vida de Lovecraft, envolve os planos dele escrever um tratado a respeito da arte de debunk (expor) a verdade sobre superstições, um trabalho que ele estaria realizando para o famoso Harry Houdini - outro grande interessado em revelar um mundo sem crendices.

Mas apesar de estar claro para todos hoje em dia, que Lovecraft rejeitava veementemente o sobrenatural, isso não significa que ele deixasse de lado uma pitada de conhecimento mágico, ao menos, no que tange a origem de sua família.

Em março de 1934, Lovecraft escreveu uma carta para um de seus correspondentes regulares, Robert Barlow, que anos mais tarde seria reconhecido como uma das maiores autoridades em Antropologia Mesoamericana, especialista em raríssimos textos Nahuatl e hieroglifos Astecas. Em sua carta, Lovecraft discute sua genealogia, inclusive a alegada ligação de seus antepassados com a famosa Família Musgrave. Embora Lovecraft frequentemente discutisse o assunto (por vezes exagerando na existência de ancestrais ilustres para satisfazer seus interesses históricos), nesse caso ele traçou uma conexão incomum dos Lovecraft com um valioso tesouro pertencente aos Musgrave: "A Sorte de Edenhall"

Lovecraft escreveu o seguinte a Barlow:

"Essa é a lenda de Edenhall que fica em Cumberland, o berço da Família até tempos recentes. Ele é mencionado em um poema alemão, escrito por Uhland e mais tarde parafraseado em um verso de Longfellow – mas a versão original sobre a origem desse objeto é a seguinte: Trata-se de um cálice de cristal roubado por um membro da família Musgrave diretamente da corte das fadas, que fizeram tentativas improdutivas de recuperar a peça. Furiosa a Rainha das Fadas recitou a seguinte profecia, ou se preferir maldição, indicando que um desastre recairia sobre os Musgrave a não ser que o cálice fosse mantido intacto:

"If the glass either break or fall
Farewell to the luck of Edenhall"

"Se um dia o vidro quebrar ou cair,
Dê adeus à sorte de Edenhall"

Ele continuou na carta:

Na família realmente existem vários cálices de cristal, alguns muito antigos, sendo que um deles com certeza é o citado pela lenda. É claro, por conta disso, ele é guardado com todo o cuidado. Com a venda da propriedade em Edenhall, após a Grande Guerra, o cálice foi entregue aos cuidados do Museu de Kensington, em Londres. Eu espero que eles tomem muito cuidado, uma vez que se ele quebrar eu também seria afetado, já que tenho um pouco dos Musgrave em minha árvore genealógica".

[Correspondência Selecionada: 1932 – 1934. Volume IV. Editado por August Derleth e James Turner. Arkham House, Sauk City, Wisconsin p. 392, Carta 692]

O Luck of Eden Hall em seu primeiro registro no século XVIII
Uma versão mais longa a respeito dessa estória é que o cálice teria sido um tesouro conquistado por um grupo de heróis que desafiaram as fadas e as venceram numa disputa. Esse grupo teria retornado com o valioso tesouro que despertou a ira da Rainha das Fadas. Outra versão conta que o prêmio foi conquistado por um servo da Família Musgrave que de posse do tesouro ganhou a mão de uma das dama da família. As fadas teriam prometido vingança, e teriam tentado raptar o primeiro filho desse casal, sendo que o rapaz resgatou a criança, antes que ela fosse levada para o Reino Silvestre. 

Embora não seja de fato um cálice mágico fabricado pelas fadas, o "Sorte de Edenhall" não deixa de ter uma origem impressionante. Historiadores determinaram que o cálice ornado com prata provavelmente foi feito na Síria no século XIII. Ele parece ter deixado o Oriente Médio não muito depois de ter sido produzido, como evidencia a existência de um estojo criado especialmente para transportá-lo em segurança. Tudo indica que ele tenha feito a longa viagem, chegando a França no século XIV. Não existem informações de como ele foi parar na Inglaterra, mas é provável que ele seja um tesouro conquistado durante as Cruzadas. Sua qualidade superior, é claro, contribuiu para que sua criação fosse atribuída a fadas (elfos), que segundo o folclore britânico possuem uma lendária aptidão para produzir itens de rara beleza. 

Sabe-se que os Musgrave levavam muito à sério a lenda e por isso mantinham o cálice protegido em seu estojo, apenas raramente o removendo de seu descanso. Mesmo assim, algumas estórias mencionam ancestrais arremessando o cálice para o ar como forma de desafiar o destino. A peça é mencionada como parte do espólio dos Musgrave desde 1791.

Infelizmente a propriedade de Edenhall foi vendida e demolida em 1934, mas o cálice permanece intacto até os dias atuais, atualmente em exposição no Victoria & Albert Museum. O item foi emprestado ao museu em 1926, e mais tarde se tornou parte permanente da coleção do museu em 1956. 

Uma das condições para a doação do cálice por parte de seus donos, é que o Museu jamais permitiria que ele fosse avariado. A sorte dos Musgrave, afinal de contas, depende disso.


*     *     *

Eu adoro essas pequenas estórias e lendas que fazem parte da origem de certas famílias.

A descoberta desse artigo me lembrou de algo mais...

Em um grau estritamente particular, eu confesso que minha família possui uma tradição semelhante, um presente que passa de mão em mão há pelo menos três gerações e que hoje em dia está comigo.Trata-se de uma espécie de tradição que uma garrafa de vinho - antiga, muito antiga, seja passada de pai para filho. Meu avô recebeu do meu bis-avô (quando casou em 1930), ele passou para meus pai (em 1964) e foi parar comigo quando eu casei (em 2004). Para falar a verdade, meu pai sempre achou bobagem essas coisas, e eu meio que reclamei a garrafa para mim, como forma de preservar a tradição (...)

Quando perguntei a ele se por acaso a garrafa era ainda mais antiga, tendo passado de meu tris-avô para meu bis-avô, ou quem sabe até antes, ele não soube dizer. Eu tampouco saberia determinar, o rótulo na garrafa (que um dia existiu, pois é possível ver as marcas) desapareceu há muitos anos e não deixou pista alguma sobre sua origem. A pergunta seguinte foi: por que diabos, ninguém nunca abriu e bebeu?

Ele contou que em teoria, para o casamento ser feliz, a garrafa não deveria ser aberta. E disse isso com uma seriedade que beirava o tom solene. Ok, considerando que nunca houve caso de separação na família, talvez seja melhor manter a rolha no lugar, mesmo porque, desconfio, o conteúdo da garrafa deve ter azedado há muito tempo.

Enfim, quem somos nós (e quem sou eu?) para lutar contra o poder de uma tradição?

Já que a garrafa está em nossa família há tanto tempo, acho que posso considerá-la como uma pequena tradição. Nosso próprio "Sorte de Giehl Hall". Que jamais se quebre!

2 comentários:

  1. "Heirlooms" sempre trazem ideias e histórias interessantes! Aqui tem uma antiga galheta ( recipiente de água e vinho para a Missa) que já foi um par e pertenceu à minha trisavó - sob meus cuidados hoje em dia. Faltou uma foto da Garrafa de Vinho ( isso mesmo, com letras maiúsculas!). Excelente post!

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  2. Ótimo posto, muito inspirador (tive várias ideias pra ambientações e aventuras).

    A Garrafa de Vinho (bem observado quanto à letra maiúscula), é uma história e tanto!

    Acho interessante itens ligados e importantes para família, mesmo aqueles que só carregam os anos de existência. Desses que não têm nenhum suposto malefício ligada a ela (como no Cálice ou na Garrafa de Vinho), me recordo da tesoura de tosar da personagem Ana Terra, do Tempo e o Vento de Érico Veríssimo, que foi usada para cordar o cordão umbilical de cada bebê recém-nascido na família, mesmo após muito tempo, quando já estava enferrujada (da para pensar em criar efeitos sobrenaturais ligados a ela e tornar um item interessante).



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