Indivíduos que matam repetidas vezes sem aparente motivo ou por motivos torpes não são uma exclusividade de um determinado lugar, de uma determinada condição social ou mesmo de uma determinada época.
Infelizmente eles podem surgir em qualquer lugar e qualquer época.
No início do século XIX, Lisboa, a Capital de Portugal era um lugar seguro e pacífico que atraía viajantes e comerciantes de toda Europa. Embora o Império Ultramarino português já estivesse em franca decadência se esfacelando e perdendo suas mais importantes possessões Além Mar, o Reino ainda guardava uma aura cosmopolita graças ao influxo de estrangeiros aos portos, misturando seus costumes, tradições, cores e idiomas.
Mas em 1837, os habitantes de Lisboa foram apresentados a um horror sem nome que os aterrorizava e deixava a cidade em um estado de profundo medo e paranoia. Lisboa de uma hora para outra se transformava na capital do crime e de assassinatos, algo sem precedente até então.
Cidadãos ricos e pobres eram as vítimas. Homens, mulheres, velhos e crianças, gente de rua, lisboetas e estrangeiros de passagem, mercadores, mascates, marinheiros, prostitutas... em suma, qualquer um podia ser vítima do maníaco sem face que atacava na área do Aqueduto das Águas Livres. As vítimas do louco eram estranguladas e então atiradas do alto do Aqueduto, vindo a se estatelar no piso de pedras dezenas de metros abaixo. Alguns caíam ainda aos berros, ecoando seu grito pesaroso enquanto mergulhavam. As cabeças batiam e se estraçalhavam no pavimento como melões maduros, lançando miolos e fragmentos de ossos, espirrando sangue que lavava os azulejos e ladrilhos.
As autoridades lisboetas pareciam sempre um passo atrás na caçada pelo culpado.
Cartão com a imagem do Aqueduto como era no século XIX |
De nada adiantava dispor guardas armados ou homens à paisana nas ruas e arredores se misturando aos andarilhos que frequentavam o lugar. O matador continuava a ludibriar a todos. Logo após arremessar uma nova vítima, desaparecia sem deixar pistas como se fosse feito de fumaça, conforme sugeriam algumas pessoas. Logo se espalhou o boato de que não se tratava de um homem, mas de um demônio perverso, saído do próprio Inferno para testar a fé dos religiosos portugueses.
Pessoas rezavam e pediam proteção aos seus santos de devoção. À noite, ninguém saía sozinho, qualquer expedição às ruas desertas de Lisboa era feita em grupos que gritavam escandalosamente logo que avistavam alguém vindo no sentido inverso. Em mais de uma oportunidade, inocentes foram acusados de serem o louco e surrados pela turba aterrorizada. Mas a despeito dos esforços, as mortes continuavam acontecendo fora de controle.
O Aqueduto era um caminho vital para os lisboetas, sobretudo os que viviam do comércio de hortaliças. Cruzar o Aqueduto era um atalho para o centro da Capital; estudantes passavam apressados e mercadores carregando cestas, sacas e caixas de um mercado para outro usavam as escadas para cortar caminho. Ao regressar para suas casas, muitos faziam o mesmo percurso, trazendo nos bolsos o dinheiro ganho durante o dia de trabalho árduo. Alguns estavam cansados e desatentos o que os tornava presas fáceis para o louco.
O modus operandi do assassino era sempre o mesmo. Ele esperava em um dos vários recessos e cantos pouco iluminados do Aqueduto. Quando escolhia uma presa, atacava com precisão, às vezes com uma facada precisa na garganta para limitar os pedidos de ajuda, em seguida capturava a vítima e à arrastava para um dos nichos escuros onde a estrangulava ou apunhalava outras vezes. Ali o desacordava e o deixava entre a vida e a morte. Em seguida, apanhava o pobre coitado e o lançava para uma morte certa. Antes disso, o assassino removia tudo que fosse de valor, dinheiro e jóias se as tivesse. O roubo parecia motivar a maioria das mortes, contudo, em alguns casos, o louco parecia agir apenas pela maldade em sua alma, matando mendigos sem um tostão.
Sem conseguir dar uma solução para as mortes, a polícia decidiu fechar o Aqueduto das Águas Livres e proibir o acesso dos transeuntes após o cair da noite, medida que se prolongou por vários anos. As mortes nesse caso cessaram, ainda que apenas o modo de atuação do criminoso tenha mudado, ele continuou matando indiscriminadamente pela cidade.
Ninguém sabia, mas o assassino estava bem de baixo do nariz de todos, um homem forte de nome Diogo Alves que trabalhava carregando mercadorias de um lado para o outro do Aqueduto e que já havia feito serviço no porto como estivador.
Nascido na Espanha, ele havia cruzado a fronteira para se instalar em Lisboa com apenas 10 anos. A bela cidade o acolheu de braços abertos nos primeiros anos de 1800, mas o rapaz nãos e dava bem com praticamente ninguém. Era calado, introspectivo e com uma índole violenta que afastava as outras crianças. Dizem que quando criança gostava de encurralar gatos e cães para estrangulá-los. Erguia os animais com as mãos e apertava seus pescoços com força enquanto mirava em seus olhos, observando a vida se esvaindo a medida que aumentava a pressão de seus dedos. Todos eram da opinião que o menino de cabelos loiros e olhos azuis era muito mal. Quando repreendido ficava quieto, olhava para os pés e pedia desculpas sempre dissimulando o ódio que lhe ardia no peito.
Já adulto, Diogo, que era chamado de galego arranjava confusão em tavernas, mas sempre se safava com um talento para arranjar desculpas e culpar os outros. Havia se metido em vários roubos e furtos, mas nunca havia sido preso graças ao talento de se esquivar de qualquer acusação. Nessa época conheceu uma mulher chamada Gertrudes Maria que tinha um estabelecimento na Zona de Palhavã e de quem se tornou amante ocasional, apesar de lhe agenciar como cafetão.
O Aqueduto em fotografia do século XIX |
Imagem de um filme realizado em Portugal no ano de 1909 a respeito dos crimes. |
A carreira de assaltante de Diogo deu uma importante guinada quando ele conseguiu arranjar as chaves que garantiam acesso ao Aqueduto, possivelmente subtraída de um dos vigias responsáveis por preservar o lugar. O aqueduto tinha vários caminhos estreitos, escadarias e acessos muitos deles barrados por portões de ferro batido que geralmente ficavam trancados para evitar a passagem das pessoas. Diego começou a perambular toda noite pelo lugar, descobrindo quais as chaves que abriam as portas e memorizando as rotas de fuga mais rápidas e nas quais não cruzaria com ninguém.
Quando já estava satisfeito, Diogo começou a roubar transeuntes, arrastando-os para dentro de algum corredor, trancando rapidamente a passagem impedindo assim qualquer chance de fuga. Seu objetivo era o roubo, "aliviar" a vítima de qualquer coisa de valor, dar-lhe uma surra, deixá-lo desacordado e escapar pelos corredores. Quando esse plano evoluiu para assassinato não se sabe, mas é provável que ele tenha começado a matar suas vítimas para evitar que elas o reconhecessem. O método de Diogo era rápido e à prova de falhas, o Aqueduto e seus arcos, tinham 65 metros de altura e uma pessoa lançada lá de cima dificilmente sobreviveria à queda mortal.
Fosse para preservar sua identidade ou para eliminar qualquer pista que pudesse incriminá-lo, o fato é que Diogo logo tomou gosto por matar. Como era muito forte, não era difícil para ele erguer as vítimas acima de sua cabeça e lançá-los como se fossem um fardo, da mesma forma que fazia em seus dias como estivador.
Assistir o corpo girar no vazio um instante antes da gravidade puxá-lo para o derradeiro mergulho. Ouvir o som do cadáver se estatelando no piso de pedra. Escutar o burburinho e os gritos das primeiras pessoas a testemunhar o horror. Provavelmente tudo isso o enchia com um prazer mórbido. O mesmo prazer que os serial killers experimentam ao concluir sua sangrenta tarefa, uma catarse emocional, misto de alívio e excitação. Infelizmente, como sabemos através da análise comportamental, essa catarse se torna cada vez mais fugaz e o desejo de reviver a sensação se torna recorrente... em outras palavras, Diego experimentava o que muitos assassinos sentem no auge de seus crimes, o vício de matar.
Picnic aos pés dos Arcos do Aqueduto |
Seu impulso homicida era tamanho que por vezes o roubo era apenas uma desculpa para o que vinha depois. Mesmo quando não lograva êxito no assalto, não dispensava o frenesi do assassinato, talvez por conta disso, o fechamento do acesso ao Aqueduto tenha sido um duro golpe. De nada lhe valia circular pelo lugar deserto, não haviam mais vítimas que ele pudesse roubar e depois arremessar lá de cima. Até então, estima-se que ele já havia feito mais de 70 vítimas e continuava livre.
A despeito disso, continuou em sua carreira criminosa, associando-se a uma quadrilha que perpetrava roubos à casas de famílias de posses. Passou a ser conhecido pelo apelido de "Pancada". Por algum tempo, os roubos sustentaram sua agressividade, mas aquilo não se comparava ao seu desejo de matar. Em um de seus assaltos a quadrilha assaltou a casa de um importante médico de Lisboa. Diogo provavelmente estava no limite, e naquela noite não refreou seus instintos homicidas: a família inteira foi massacrada a golpes de faca e porrete.
Dessa vez o crime atraiu a opinião pública e obrigou as autoridades a flexionar seus músculos. Não se tratava afinal de um pobre coitado que não tinha onde cair morto, mas de um médico influente, sua esposa e jovens filhos que haviam sido chacinados na santidade de seu lar. Uma simples investigação conseguiu descobrir o paradeiro de objetos valiosos subtraídos da propriedade pelos ladrões que se encontravam com um receptador. Este entregou imediatamente quem lhe havia vendido os itens. Os comparsas de Diogo foram ainda mais rápidos em apontar os dedos acusadores para o "Pancada" que havia agido como um animal selvagem na ocasião em que chacinou a família.
Levado a julgamento, Diogo Alves foi acusado dos homicídios e condenado à forca. Na cadeia ele acabou confessando ser também o culpado pelas dezenas de mortes no Aqueduto. Adorando a atenção que havia conquistado, não poupava os interlocutores de descrições gráficas de como havia matado cada uma de suas vítimas. Ironicamente, Diogo não chegou a ser acusado destes crimes que sequer foram incluídos no inquérito. Não havia como ligar seu nome aos crimes, a não ser pela sua confissão e na ausência de ferramentas e técnicas forenses nada foi provado.
O Tribunal da Cidade de Lisboa votou rapidamente a sentença do maníaco, ele seria enforcado em 19 de fevereiro de 1841, no Cais do Tojo. Uma multidão se reuniu para ver a morte do Assassino do Aqueduto das Águas Livres. A essa altura os boatos já circulavam entre a população que revoltada ofendia o matador a caminho da forca. Em resposta, ele sorria ironicamente desafiando a todos.
Mas em meio ao povo que xingava furioso pedindo a morte daquela pessoa vil, estava um homem fascinado pelo caso. Era o médico José Lourenço da Luz Gomes. Cirurgião de grande reputação, tinha enorme influência na Casa Real, uma instituição famosa internacionalmente pelas descobertas e pelas técnicas avançadas de cirurgia com que fazia muitas operações inéditas naquela época.
Lourenço Gomes havia acompanhado o desenrolar de todo caso e quando se deparou com a oportunidade de estudar a mente daquele monstro humano não sossegou até ser atendido. Fundador e diretor da antiga Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, o médico aproveitou sua posição para fazer um requerimento atípico: queria levar consigo a cabeça de Diogo Alves logo após a execução.
Seus motivos eram louváveis, o médico, um entusiasta da frenologia - ramo médico muito em voga no período, esperava desvendar os mistérios contidos naquela mente perturbada examinando o cérebro e descobrindo o que o tornava um assassino. Era uma busca pelas raízes da maldade, talvez alguma má formação ou disfunção demonstrasse a razão de seu comportamento agressivo. Convencido, um Juiz levou o caso ao próprio Rei que deu a autorização necessária.
Logo após a execução no patíbulo, um verdugo dispôs o corpo de Alves sobre uma tábua e usando um machado decepou a cabeça que foi entregue ao médico e mergulhada num frasco com formol. Lourenço Gomes preservou a cabeça de Diogo Alves até o fim da Escola Médico-Cirúrgica e depois a transferiu para a recém-criada Faculdade de Medicina de Lisboa, onde era diretor.
O frasco, claro, foi ganhando fama e acumulando histórias com o tempo. Dizia-se que era algo maldito, que sussurrava nos ouvidos dos vivos memórias sangrentas e reminiscências homicidas na tentativa de convencer outros a enveredar pelo mesmo caminho. Falava-se também de fantasmas e espíritos decapitados espreitando nos lugares onde a coisa era mantida.
Décadas mais tarde, o estranho artefato foi adicionado à coleção do Museu da Faculdade de Medicina, sendo exposto com alguma frequência também no Museu Nacional de Arte Antiga como um verdadeiro tesouro.
Até os dias de hoje, a cabeça de Diogo Alves, o infame Assassino do Aqueduto das Águas Livres existe preservada. Ela está guardada em um armário, mergulhada em um grande frasco transparente contendo formol, e vai circulando pelos museus de Lisboa tal qual uma relíquia profana trocada por Igrejas em dias santos.
A cabeça ainda mantém seus detalhes, perfeitamente preservada: a pele pálida, os traços bem marcados que denotam um indivíduo bem apessoado, os cabelos loiros, o bigode fino e cavanhaque bem aparados, tudo perfeitamente conservado a ponto de se imaginar que a qualquer momento Diogo Alves poderia sorrir através do vidro e orgulhoso compartilhar tudo que fez.
E se você aproximar seu ouvido do frasco, talvez ele o faça.
E se você aproximar seu ouvido do frasco, talvez ele o faça.
Cacete, quando você acha que já viu tudo de bizarro no mundo, pá! A cabeça de um assassino em um frasco com formol, conservada por anos e anos
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