Folie à Deux (fala-se Foli a du) é um termo originário da psiquiatria que soa sofisticado e elegante o bastante para ser usado no dia a dia como algo positivo. Na verdade, isso está longe da realidade. A psiquiatria trocou o termo oficial em francês que significava "loucura à dois" pelo mais correto "desordem de psicótica compartilhada", que é bem menos simpático, mas muito mais acurado na descrição dessa condição mental.
Essa rara doença se manifesta quando os sintomas psicóticos de um indivíduo acabam sendo transmitidos para outra pessoa, em geral alguém muito próximo com quem existe um forte vínculo social. Em termos leigos, é como se a loucura manifesta de uma pessoa fosse transmitida - como uma doença, para outra pessoa, e este, que era perfeitamente saudável, passa a apresentar o mesmo quadro patológico delirante.
Os franceses cunharam o termo original para descrever o estranho caso do casal Margaret e Michael, sobretudo porque ao se deparar com ele, não tinham muita certeza do que estavam encarando. Os especialistas não eram capazes de determinar qual dos dois havia iniciado um crescente ciclo de psicose, mas estavam certos de uma coisa: a loucura de um, ajudava a alimentar a do outro em uma espécie de bola de neve psicótica que continuou aumentando até assumir proporções absurdas. Os dois acreditavam que a casa onde viviam vinha sendo alvo de pessoas desconhecidas. Esses indivíduos misteriosos nunca roubavam ou destruíam nada na casa, de acordo com o casal. Ao invés disso, os invasores deixavam sinais de sua passagem mudando objetos de lugar, abrindo portas, deixando pegadas de lama nos cômodos ou virando roupas do avesso. Margaret começou a trancar as portas, fechar as janelas e bloquear até a saída da chaminé. Michel espalhava ratoeiras, deixava armadilhas e ficava acordado até tarde esperando flagrar o invasor. Tudo em vão! os sinais continuavam aparecendo e os objetos eram manipulados por alguém.
A psicose foi aumentando de tamanho a medida que eles começaram a creditar as invasões não a seres humanos, mas a seres sobrenaturais. Afinal, apenas um fantasma ou espírito seria capaz de superar suas tentativas desesperadas de capturar seja lá quem fosse. Margaret entrou em um crescente surto psicótico abraçando a crença de que havia algum ser demoníaco na casa, isso motivou Michel ao passo seguinte.
Em uma noite ele ficou pronto para agir. Quando ouviu um som do lado de fora da casa, correu para fora com uma faca e atacou mortalmente um transeunte. Ele o arrastou para dentro da casa para que a esposa pudesse participar do linchamento. Os dois fizeram o suposto invasor em pedaços com porretes e facas. O corpo foi tão depredado que as autoridades tiveram enorme dificuldade em fazer o reconhecimento da vítima. Por fim, o pobre coitado nada mais era do que um cidadão que passava pela frente da casa empurrando um carrinho, fazendo barulho.
O mais surreal é que quando os psiquiatras começaram a analisar a loucura do casal em separado, descobriu que o invasor misterioso jamais existiu. Não apenas um, mas os dois, criavam os indícios da passagem do invasor, abrindo coisas, mexendo nos objetos e aumentando a paranoia um do outro. Por fim, a loucura foi se retroalimentando de uma maneira que nem eles próprios percebiam que tudo aquilo era criado por eles mesmos.
Maridos e esposas estão entre as relações que costumam desenvolver a desordem psicótica compartilhada, mais frequentemente, contudo, não são os únicos. Pais e filhos, avós e netos, tios e sobrinhos, irmãos... a loucura compartilhada pode "estar no sangue", como diziam os antigos pesquisadores, ou ser dividida por pessoas que possuem um grau de ligação muito próximo.
Um caso envolvendo irmãos se tornou emblemático. Dois irmãos de sexo masculino, de 22 e 17 anos respectivamente, resolveram se mudar para uma casa menor após a morte da mãe. Ao alugar a casa, eles registraram que eram casados para receber um benefício estendido a casais. Um dos rapazes passou a usar roupas femininas e se travestir para enganar os vizinhos. Para alimentar a mentira, os dois começaram a dormir no mesmo aposento, usar alianças e se apresentar como senhor e senhora. Em algum momento os dois começaram a acreditar que realmente eram um casal e que precisavam preservar a mentira a qualquer custo. Eles esqueceram o que eram e passaram a adotar a noção delirante que construíram, inventando um histórico que pudessem compartilhar com os amigos.
Quando um conhecido da família os encontrou por acaso na rua e reconheceu um deles, o "casal" surtou. Elaboraram então um plano no qual convidaram o sujeito para uma visita e o envenenaram. Em seguida, desmembraram o cadáver e o enterraram em um porão. Mas esse foi apenas o início da escalada, já que a paranoia que os afligiu começou a se intensificar. Na prática eles acreditavam que os vizinhos poderiam descobrir seu segredo e ameaçar sua estabilidade e união familiar. Um dos irmãos, por fim, acabou mutilando a si mesmo com uma tesoura para se tornar aquilo que desejava ser - uma mulher. Após sua morte por hemorragia, o outro irmão se entregou. Entrevistado por psiquiatras ele continuou negando a identidade de sua "esposa" e tudo que havia acontecido.
Os vizinhos jamais desconfiaram de nada. Os irmãos eram para todos os efeitos um perfeito e amoroso casal. Lembraram até que a "esposa" havia perdido dois bebês em abortos espontâneos, período no qual ele/ela usou provavelmente um travesseiro para simular uma gravidez. Assistentes sociais que prestaram apoio, chegaram a diagnosticar que ela sofria de um legítimo quadro de depressão, motivado pela "perda de seu filho".
Um outro impressionante caso de desordem compartilhada ocorreu em 2008, envolvendo duas irmãs gêmeas, Ursula e Sabina Erikson, na Suécia. As duas estavam embarcando em um ônibus e se negaram a abrir suas bagagens depois que um cão da polícia farejou algo estranho no interior delas. Eventualmente as irmãs foram liberadas pelos policiais, mas estes colocaram um agente à paisana para segui-las durante a viagem e assim descobrir se elas entregariam drogas para um receptador. Durante a viagem as irmãs começaram a ficar paranoicas acreditando que alguém as estava seguindo. Em um local de parada na estrada exigiram que o motorista abrisse o compartimento de bagagem para que elas pudessem reaver suas malas. Quando finalmente conseguiram fazê-lo, as duas saíram em disparada com o policial atrás delas ordenando que parassem. Sabina foi atropelada por um carro depois de correr para a estrada e sua irmã escapou.
Enquanto o policial e a equipe da ambulância tentava prestar o socorro, Sabina não parava de gritar e pedir socorro. Gritava que sabia quem eram na verdade aquelas pessoas e que elas estavam tentando roubar seus órgãos. Sabina foi tratada e depois transferida para uma cela por ter agredido um policial. Dentro de sua mala não havia nada estranho ou ilegal. Ela relatou que não queria saber o que encontraram na sua bagagem e mesmo quando o psiquiatra assegurou não haver nada, ela continuou manifestando seu desespero.
Quando foi liberada da cadeia, Sabina vagou sem destino procurando sua irmã. Semanas depois ela esfaqueou um homem na rua, após perguntar a ele como chegar a uma estação de trens onde esperava encontrar a irmã. Sabina foi presa novamente e dessa vez colocada em uma instituição para doentes mentais onde permanece até hoje. No furor da cobertura da mídia a respeito do caso, a imprensa descobriu que as gêmeas tinham um irmão mais velho. Quando contatado ele contou que as irmãs estavam desaparecidas há anos e que alegavam "fugir de maníacos que planejavam matá-las e arrancar seus órgãos". As duas haviam fugido, adotado nomes falsos e viviam clandestinamente. O paradeiro de Ursula continua desconhecido e ela está na lista de procurados na Suécia.
Mas o que causa a desordem?
Embora existam condições pré-existentes como depressão profunda, alucinações e paranoia associados aos que sofrem de folie a deux, o que realmente se faz necessário é isolamento social e uma conexão muito forte firmada entre duas pessoas. O elo formado é tão forte e indissociável que muitas vezes os indivíduos desenvolvem uma percepção quase sobrenatural e empatia com seus parceiros. Eles são capazes de dizer o estado de ânimo, saber se estão felizes ou tristes e compreender suas motivações sem externar nada, a não ser a linguagem corporal. Em alguns casos, alegam sentir até desconforto quando o parceiro é submetido a alguma dor física. São pessoas que acreditam saber o que o outro está pensando e que muito frequentemente completam as frases uns dos outros. Em geral, esse grau de cumplicidade não significa que as pessoas são predispostas a desenvolver folie a deux, sendo necessário algo mais profundo e drástico.
Um fator determinante é algum segredo compartilhado e a paranoia de que ele venha a ser revelado. Outro fator presente é o isolamento e a interdependência que se estabelece, os indivíduos se sentem vazios e incompletos se não estiverem juntos. A dependência entre eles é completa. Por essa razão folie a deux é muito mais frequente entre membros da mesma família. Casais são cerca de 70% dos casos. Pais e filhos e parentes próximos cobrem praticamente todo o restante. Embora a psicose compartilhada seja dividida mais frequentemente entre homens e mulheres, mulheres estão entre as principais vítimas dessa doença. Em certos casos, gêmeos tendem a desenvolver a psicose, sobretudo se eles mantém uma proximidade acentuada ao longo de toda vida.
Três irmãs nascidas nos Estados Unidos, nenhuma delas com histórico prévio de doença mental, se tornaram personagens de um espetacular incidente de desordem psicótica compartilhada - folie a treux, no caso. No início, as irmãs acabaram se mudando para a mesma vizinhança com o intuito de cuidar do filho adoentado da irmã mais velha. Esta vivia com o marido, que trabalhava viajando constantemente, por isso ele concordou que toda ajuda seria bem vinda. As irmãs começaram a ficar cada vez mais próximas e se tornaram devotas religiosas. Eventualmente, a irmã mais jovem começou a manifestar uma preocupação crescente com aspectos da Bíblia que elas usavam. Ela alegava perceber padrões ocultos nos escritos como se alguns trechos se referissem especificamente a elas. Acreditando que havia mensagens cifradas destinadas a elas, as irmãs começaram a rezar em segredo no porão da casa, convertido em um tipo de templo. Lá elas se colocavam nuas diante de um altar bizarro com fotografias e palavras recortadas de revistas. Vertiam sangue das próprias veias, colhendo-o em bacias e tigelas para depois usá-lo na criação de poções curativas. Davam banhos medicinais na criança que deveriam cuidar e acreditavam que os métodos de medicina tradicionais eram ineficazes. A loucura de uma foi alimentando a das demais com elementos cada vez mais perturbadores.
Por fim, elas obtiveram uma nova revelação: o templo deveria ser levado para outro local onde as estranhas "cerimônias sagradas" deveriam ser realizadas. As três encontraram uma casa na vizinhança com a porta vermelha, como haviam visto em suas alucinações, bateram e exigiram que os moradores as deixasse usar o lugar. Quando estes recusaram, as irmãs surtaram e tentaram entrar à força. As autoridades foram chamadas e elas reagiram violentamente agredindo os policiais. As três irmãs acabaram sendo presas e colocadas no mesmo manicômio.
Diante de tudo isso, surge a questão de como combater esse distúrbio?
Especialistas acreditam que cortar o vínculo existente entre as partes é o método mais eficaz. Muitas vezes, quando afastados os indivíduos deixam de manifestar a desordem precisando, é claro, de acompanhamento e medicação em casos mais severos. Muitas pessoas sofrendo de psicose compartilhada são proibidas de se encontrarem, morar na mesma cidade ou procurar sua "cara-metade". Há, no entanto, exceções como no caso das três irmãs. Segundo os especialistas elas jamais conseguiram romper o vínculo que estabeleceram entre si e nas ocasiões em que foram separadas, a psicose apenas se intensificou a ponto delas se tornarem um perigo para si e para os demais internos. Desse modo, as três foram transferidas para as mesmas instalações onde continuaram realizando suas estranhas cerimônias, cantando e implorando nuas, pela ajuda divina.
A ilusão construída é tão real e tão perceptível em alguns casos que ela se torna uma verdade única que não pode ser contestada. Em geral essa ilusão é construída em conjunto, mas imposta por um parceiro dominante que no princípio induz seu subordinado no mesmo caminho. Com o tempo a ilusão vai se intensificando e o subordinado acrescenta elementos de sua própria ilusão.
Folie a Deux pode se manifestar entre outros grupos sociais fechados. Modalidades como folie a treux, à quatre, en familie são reconhecidas pela psiquiatria afetando três e quatro indivíduos, ou uma família inteira. É provável que alguns cultos radicais extremistas, adeptos de suicídios em massa e teoristas da conspiração possam ser casos manifestos de psicose compartilhada, chamados de folie à plusiers (loucura de muitos). Casos popularmente reconhecidos como histeria coletiva podem estar associados a essa doença mental.
Uma das histórias mais chocantes ocorridas recentemente ocorreu em Waukesha, Wisconsin quando duas meninas chamadas Morgan Geyser e Anissa Weier esfaquearam um menino de nove anos dezenove vezes na esperança de que isso pudesse manter a lenda urbana da internet o Slender Man afastado.
Morgan Geyser se tornou obcecada pelo mito do Slender Man, acreditando não apenas que a entidade era real, mas que ela a visitava desde que era um bebê. Morgan e Anissa descreviam o que sugeria ser alucinações vívidas nas quais elas conseguiam enxergar o Slender Man. Passaram então a crer que se assassinassem seu amigo poderiam saciar o desejo da criatura de matar suas famílias. Anissa no entanto começou a acreditar que se o fizessem acabariam se tornando escravas do Slender Man, tendo que continuar matando para sempre. Em um diário que as duas compartilhavam, elas escreveram que temiam o que poderiam se tornar caso concordassem em levar adiante o plano homicida. Anissa acreditava que o Slender Man vivia em uma mansão abandonada em ruínas nos arredores de um bosque em Waukesha.
As duas meninas passaram meses planejando o assassinato e decidiram que ele aconteceria no dia do aniversário de doze anos de Morgan, como uma forma de ritual de passagem. Originalmente as duas amigas matariam na casa de Morgan, exatamente às duas da manhã e fugiriam para a mansão do Slender Man. Elas planejavam render sua vítima, amarrá-la com fita e esfaqueá-la com facas trazidas da cozinha. Quando chegou a hora, as duas tiveram medo e cancelaram o plano.
Na manhã seguinte a loucura e paranoia atingiu um novo patamar. As meninas alegavam ver o Slender man em todo canto, como se ele estivesse cobrando seu sacrifício prometido e negado. As crianças disseram que iam brincar em um parque que ficava na floresta próxima. Foi lá que Morgan e Anissa começaram a atacar sua vítima. Elas feriram a menina mais jovem, usando uma faca de açougueiro. Enquanto a menina perdia a consciência, elas disseram mais tarde, ouviram a aproximação do Slender Man e correram acreditando que ele reclamaria o corpo. De alguma forma a criança sobreviveu e rastejou até uma estrada onde foi encontrada por um ciclista. Morgan e Anissa foram presas pela polícia algumas milhas adiante, tentando chegar até a mansão que no seu delírio era a morada do Slender Man.
Depois do incidente, psiquiatras determinaram que Morgan sofria de esquizofrenia. Desde o nascimento a menina era acometida de episódios de doença mental, incapaz de diferenciar realidade e alucinações que sua mente criava. Anissa, no entanto, de acordo com os psiquiatras não tinha nenhum problema. Nas suas próprias palavras tudo que ela queria era "uma amiga para a vida inteira". Elas foram separadas e hoje cumprem penas em lugares separados.
Um dos elementos mais perturbadores e fascinantes a respeito de folie a deux é o fato de que sabemos muito pouco a respeito dela. Casos são raros, tornando o estudo da desordem difícil. Não existe uma fórmula para que ela se manifeste. As pessoas tendem a ser moldadas pelos pais, irmãos e pessoas amadas que convivem com elas. Em geral, esse contato e vínculo é algo positivo e essencial no crescimento afetivo, mas em alguns casos o resultado pode ser trágico e inesperado.
Belo artigo. A folie a deux pode ser um elemento muito interessante para caracterizar cultos, ou mesmo ser usada contra os jogadores, acusados de partilhar uma loucura paranóica ao tentar expôr o segredo dos mythos ao mundo.
ResponderExcluirIntrigante.
ResponderExcluirArtigo muito bom. Dá muita idéias para histórias de horror.
ResponderExcluirUm caso coletivo que poderia estar associado a isso é o templo dos povos, que causou um suicídio em massa. Ou até mesmo a ascenção do Nacional Socialismo na Alemanha. Quanto ao isolamento, eu já li a respeito da chamada febre da cabana, algo similar a isso.
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