O relato a seguir foi feito por exploradores no ano de 1909 que informaram de forma dramática os acontecimentos de que tomaram parte.
Esses acontecimentos foram registrados no diário oficial da expedição liderada por William Leydell Sandhurst, antropólogo da Universidade de Montreal e explorador com ampla experiência no norte do Canadá. Os demais membros da expedição eram o médico Richard Musgrave, o Tenente Joseph Benson da Polícia Real Montada, o botânico e geólogo Dieter Kunrad e o Professor Stanley Fredericks especialista em zoologia.
A expedição partiu de Manitoba seguindo para os territórios do Norte com objetivo de mapeamento e exploração da flora e fauna local. Também visava fazer um reconhecimento das tribos nativas e assentamentos além da fronteira.
O caderno de notas a seguir foi transcrito na íntegra a partir do vigésimo terceiro dia de exploração que até então transcorria sem incidentes. Ele marca a chegada do grupo ao território norte de Nunavut, província mais setentrional do Canadá.
12 de Julho de 1909
Deixamos a aldeia Iqaluit, habitada majoritariamente por esquimós (Inuit) com quem conseguimos estabelecer uma relação cordial. Os nativos ficaram bastante curiosos a respeito de nossa presença em seu território. De fato, poucos deles pareciam já ter tido contato com indivíduos de descendência européia, e mesmo assim através de postos na fronteira mais ao norte de Manitoba.
Os Inuit nos trataram com gentileza e permitiram que ocupássemos uma de suas cabanas onde pudemos descansar e nos refazer da árdua jornada. Quando perguntamos a respeito de guias para nos ajudar em nossa exploração, a maioria dos nativos se entreolhou e tentou nos dissuadir de seguir pelo caminho que pretendíamos - e que não foi mapeado. Muitos se mostraram extremamente contrariados quando mencionamos nossos planos, e por isso, achamos melhor não insistir.
Crianças e mulheres da vila Iqaluit |
14 de Julho de 1909
Fizemos amizade com Igoolik, um homem da tribo, já de meia idade mas com enorme energia e disposição. Trata-se de um sujeito extremamente jovial, que demonstra curiosidade a respeito de nossos modos quase tão grande quanto nós a respeito dos dele. O Dr. Musgrave parece fascinado pelas tradições e fez vários registros e exames dos membros da tribo, inclusive mulheres e crianças.
Após alguma negociação, Igoolik concordou em nos guiar pelo território. No entanto, ele estabeleceu a condição de não seguir pelo caminho que havíamos traçado, afirmando que isso nos levaria através de uma área considerada perigosa pelos locais. Igoolik, disse que poderia nos conduzir por uma trilha margeando uma floresta de coníferas, cerca de 5 dias para o noroeste. Ele se mostrou irredutível a esse respeito e temendo que nossa insistência pudesse prejudicar nosso acordo acabamos concordando.
Estamos à disposição dele e quando ele escolher partir seguiremos viagem.
Igoolik em foto fita por Kunrad |
15 de Julho de 1909
Ficamos na casa de Igoolik e hoje pela manhã, três membros da tribo apareceram na cabana de nosso anfitrião. Uma vez que falavam em um dialeto próprio, não consegui entender tudo que disseram, contudo foi possível captar um certo grau de animosidade. Os três pareciam contrariados a respeito de alguma coisa e acredito que nós, enquanto forasteiros, possamos ser o motivo dessa altercação.
Em tempo, conseguimos extrair de Igoolik que a razão do debate envolvia o fato de terem descoberto que ele iria nos acompanhar. Alguns pareciam especialmente irritados com isso. Felizmente nosso guia, conseguiu tranquilizar os demais membros de sua tribo. Ele explicou que o território ao norte é uma área de caça tradicionalmente usada por membros de uma tribo rival, os Puytevah que estabeleceram um equilíbrio delicado com o povo da aldeia.
Segundo o guia não haverá problemas, desde que não entremos no território dos Puytevah.
18 de julho de 1909
Depois de uma longa espera, partimos, conduzidos pelo nosso guia. O Tenente Benson ficou responsável pelos suprimentos e ele conseguiu repor a maioria de nossos recursos. Os cães e trenós são de ótima qualidade e estamos plenamente motivados.
Kunrad registrou nossa partida com uma fotografia pouco antes de deixarmos o vilarejo.
20 de julho de 1909
Encontramos rara beleza selvagem nessas terras raramente exploradas ou trilhadas. Trata-se de um território isolado, no qual o povo Iqaluit raramente coloca os seus pés. Nosso guia afirma ter passado por aqui há 12 anos e que conhece o caminho. As diferenças entre seu povo e os Puyvetah se referem principalmente a religião, sendo que eles veneram divindades diferentes, ou foi isso, o pouco que consegui extrair dele.
William Sandhurst e Dr. Musgrave |
22 de julho de 1909
Os dias tem sido de marcha forçada e pouco descanso.
Seguimos pela imensidão gelada nos trenós puxados pelos huskies, encontrando nada a não ser neve, coníferas e de tempos em tempos formações rochosas no horizonte. A vastidão dessa terra nos faz pensar a respeito dos pontos ainda não explorados ou conhecidos do planeta. É um privilégio estar aqui e ver em primeira mão aquilo que se abre diante de nossos olhos atônitos.
O céu de um azul escuro está límpido e ainda que exaustos pelo esforço, estamos confiantes de que nosso guia sabe por onde está nos conduzindo.
23 de julho de 1909
Nosso guia nos trouxe até a margem de uma floresta de coníferas conforme havia prometido. Seu plano é tangenciar essa floresta composta de magníficos Abetos, Chamaciparis, Ciprestes da Caledônia e Cedrus da Nova Escócia. Kunrard, nosso botânico está maravilhado com a flora do ambiente e recolheu algumas folhas para analisar posteriormente. Fredericks também demonstrou interesse na tímida fauna local.
De um modo geral, estamos satisfeitos com o progresso e agradecidos pelo tempo estável.
24 de julho de 1909
Igoolik ficou preocupado a respeito de um avistamento ontem.
Ele acredita ter visto homens da tribo Puytevah nos observado do alto de uma ravina. Sua preocupação era clara, e para evitar problemas, decidiu nos guiar para o leste. Ele espera que assim evitemos qualquer contato.
Quando o antropólogo dentro de mim apelou para fazer contato com essa tribo, explicando nosso interesse de barganhar com eles, o homem me olhou com incredulidade. Ele sequer quis pensar no assunto e disse que a expedição deve evitar qualquer aproximação. Uma vez que dependemos dele, não quis argumentar.
William Sandhurst escrevendo em seu diário |
Uma descoberta inusitada!
Encontramos uma clareira vasta com aproximadamente 400 metros de diâmetro na borda da floresta. É um espaço onde a neve parece ter sido profundamente remexida, talvez por uma tempestade ou vendaval. Não apenas os arbustos e a vegetação mais frágil foi afetada, mas árvores de tamanho considerável foram arrancadas da terra com raízes e tudo. O fato mais surpreendente é que a área fustigada pela tempestade parece ter se confinado nesse ponto em especial, com o entorno dos limites da clareira preservados ou pouco incomodados pela estranha perturbação climática que aqui se abateu. Não sou glaciologista, mas minha suposição é que a tempestade deve ter desancado há menos de 72 horas. Seria difícil não captar esse grau de atividade climática, mas ainda assim, nada percebemos.
Igoolik não parecia interessado em revistar a área. De fato, ele tentou nos afastar dela e apenas com grande negociação concordou em nos conceder algumas horas para explorá-la. Ainda assim, ele preferiu se afastar e fazer um reconhecimento do terreno adiante à pé, prometendo voltar antes do anoitecer.
Mais tarde - Escavamos a área e descobrimos atônitos alguns objetos enterrados - uma bolsa rústica e uma cacimba de água feita de terracota. Essas descobertas nos levaram a outro achado muito mais impressionante, provavelmente o dono desses itens. Encontramos o cadáver de um homem de 30-35 anos que estava soterrado sob a neve a uma profundidade de 1,20 metros. Trata-se obviamente de um nativo, e o Dr. Musgrave supõe que ele esteja morto há pelo menos um ano. O corpo apresenta, segundo seu exame preliminar, sinais evidentes de hipotermia e tudo indica ele tenha sido apanhado por uma forte nevasca. Não se trata de algo estranho, visto que aqui, as condições climáticas oferecem variações perigosas.
Ainda assim, havia outro detalhe no mínimo peculiar no que diz respeito a causa da morte. O Doutor acredita que ele tenha sofrido impacto condizente com uma queda. Sem um exame mais profundo, não havia como saber com certeza, mas o Doutor insiste que as fraturas no corpo remetem a uma queda de uma altura considerável. Como tal coisa pode ter ocorrido em uma região de planícies nos escapa à percepção.
Outro detalhe a respeito do pobre diabo é sua aparência geral, que não condiz com a de nenhuma tribo local. Francamente, tudo me leva a crer, e o Tenente Benson partilha dessa opinião, que não se trata de um Inuit, mas de um Cree Naskapi, habitante dos Grandes Lagos. Ainda que a distância crie dúvidas sobre essa presunção. Além disso, os objetos incomuns que ele carregava, nos deixaram desconcertados. Os trajes do homem não se assemelham ao das tribos que encontramos na área e o couro do animal que do qual confeccionou a roupa não condiz com o de animais aborígenes. Para falar a verdade, nem mesmo Fredericks foi capaz de determinar de que couro batido suas roupas eram feitas. Os calçados dele também parecem impróprios para a neve densa dessas paragens perpetuamente congeladas. Mais estranho (!), em suas roupas haviam sinais de grãos que não existem nessa região. Por estranho que possa parecer, tudo indica que o homem é proveniente de terras muito distantes, o que o tornaria tão forasteiro nessas paragens quanto nós.
Em seu pescoço, Fredericks encontrou um estranho colar ou amuleto onde pendia uma pedra escura - uma turmalina bruta em formato de bala, que nos chamou a atenção por claramente ter sido talhada e polida. Ainda que trabalhada de forma rústica, a peça denotava talento artístico, permitindo intuir que se refere a face de um homem com evidentes traços antropo-zoomórficos - "algo ferais", como sugeriu o Dr. Musgrave.
Enquanto estudava-mos o objeto, Igoolik retornou e ao perceber que havíamos encontrado um corpo reagiu com nervosismo. Compreendo que os costumes tribais podem ter falado mais alto e que ele viu nosso ato como um tipo de profanação. Contudo foi quando viu o amuleto que que realmente ficou inquieto. Entre gestos e passes de proteção, exigiu que colocássemos a coisa no lugar e enterrássemos o cadáver sem demove-lo de suas posses. Eu e Fredericks tentamos argumentar com nosso guia, mas ele se mostrou irredutível. À contra gosto, meu colega devolveu o objeto ao cadáver e este à sua cova natural que foi coberta.
Uma visão do vazio ártico |
28 de julho de 1909
Houve uma mudança acentuada no clima e estamos em uma corrida para buscar abrigo. Não consegui arranjar muito tempo para escrever nesses últimos dias. Os cães tem agido de moo arredio e parecem incomodados pela mudança súbita.
Ontem pela manhã ficamos incapacitados de prosseguir devido a uma forte nevasca que surgiu do nada e nos forçou a montar acampamento. Igoolik nos incentivou a continuar assim que a tempestade diminuiu, ele afirma que estamos atravessando um território perigoso e percebi repetidas vezes que ele olha com uma expressão preocupada para o céu. Parece estar estudando as nuvens cinzentas que se formaram de uma hora para outra.
Francamente nunca vi uma mudança climática acentuada assim, em tão pouco tempo.
Sem data
Avançamos sem parar, com o guia nos forçando a andar rápido. Ele espera chegar a um local onde afirma ter encontrado abrigo na última vez que passou pela área. O som dos trenós e dos cães em esforço é tudo que ouvimos por horas.
Os homens estão cansados, e a marcha acelerada tem causado danos ao moral. Fredericks reclama constantemente de Igoolik, referindo-se a ele como "nosso cruel feitor".
A equipe da Expedição 1909 - Sandhurst, Musgrave, Kunrad e Fredericks |
30 de julho de 1909
Kunrad desapareceu!
Uma forte nevasca nos atingiu em cheio e ficamos temporariamente perdidos, sem conseguir ver um palmo diante de nossos olhos. A geada surgiu repentinamente! Tivemos de preparar um acampamento às pressas, proteger os animais e graças à presteza dos homens conseguimos nos refugiar nas barracas corta-vento, mas fomos divididos em dois grupos.
Quando a tempestade amainou, cerca de 7 horas depois, descobrimos que Kunrad não estava conosco! Cada grupo achava que ele estivesse com o outro. Como pudemos ser tão descuidados?
Quando a nevasca cedeu, fizemos um reconhecimento e procuramos pelo Professor, mas não encontramos sinal dele. Lamentável, um homem tão capaz provavelmente enterrado nesse lugar esquecido por Deus. A despeito dos pedidos de Igoolik para continuarmos, dei ordens para que os homens continuassem a busca pelo corpo dele.
Mais tarde: Nada encontramos... Fizemos um enterro simbólico. O Tenente Benson tomou a câmera de Kunrad e disse que assumiria o papel de fotógrafo no lugar de nosso colega.
1 de agosto de 1909
Uma discussão acalorada entre o Dr. Musgrave e Fredericks. Por pouco não chegaram às vias de fato.
Nenhum dos dois quis explicar as razões para essa ríspida discussão e o Tenente teve de separá-los. Depois de discutir nossa situação, decidimos retornar para a aldeia Iqaluit de onde partimos e lá esperar por condições melhores. Nessa época do ano o tempo não deveria estar tão ruim, essas nevascas são atípicas e quem sabe no mês que vem, já tenham melhorado.
Creio que todos ficaram aliviados com essa decisão.
Mais tarde - A nevasca continua forte e impede nosso progresso. Estamos fazendo uma distância cada vez menor, a cada dia. O retorno deve demorar mais do que imaginamos...
2 de agosto de 1909
Ontem vimos nativos da tribo Puytevah, estavam nos observando novamente em cima de pedras. Tentei sinalizar para eles, mas não me devolveram o sinal, ficaram observando por mais algum tempo e quando fizemos menção de nos aproximar (a despeito dos protestos de nosso guia), eles se esconderam. Eu os estudei pelo binóculo: são Inuit, mas de uma tribo diferente, mais baixos e corpulentos, com a pele escura e cabelos lisos. Seus trajes são rudimentares e percebi que carregavam lanças e arpões.
Ao chegar ao local onde estavam, não achamos sinal deles. Contudo, encontramos uma curiosa formação rochosa na forma de pedras empilhadas formando o que parecia ser um tipo de totem. O estranho monumento media quase dois metros de altura e foi erguido com pedras empilhadas e troncos atados com cordames. A figura era estranha, um animal selvagem, ou espírito protetor de algum tipo. É inegável que guarda semelhança com a coisa representada no amuleto do homem que achamos morto dias atrás. Haviam símbolos estranhos desenhados na coisa, espirais em sua maioria.
Pode parecer tolice, mas não quis me aproximar ainda que a descoberta fosse notável. A coisa me deixou apreensivo! Havia manchas de sangue em sua base, em quantidade considerável.
Benson se aproximou para examinar aquela maldita coisa. Cavando na base do ídolo grosseiro, fez uma descoberta aterradora, um cachecol que parecia muito com o que Kunrad usava quando sumiu. Estava enrolado e ensanguentado. Foi impossível pensar no pior.
Igoolik assumiu uma expressão taciturna e não se pronunciou a respeito, apesar de eu tentar extrair dele alguma coisa. Ele apenas disse uma palavra em seu idioma e se afastou fazendo seus passes de proteção.
O estranho Totem de pedra |
Madrugada - Algo medonho ocorreu. Algo para o qual não tenho explicação e nem sou capaz de fazer conjecturas.
Enquanto descansávamos no acampamento, o silêncio noturno foi quebrado por um som aterrorizante que preencheu todo o vale e congelou nosso sangue. Um tipo de grito ou uivo, como jamais ouvi e que ecoou como um mau agouro. Benson apanhou seu Lee-Enfield e disparou para o alto, sem enxergar nada na escuridão completa. Os cães, grandes huskies e mongrels habituados ao mundo selvagem, latiam e ganiam aterrorizados. O Dr. Musgrave pareceu igualmente afetado pelo ruído e caiu de joelhos dizendo tolices, como se de um momento para o outro sua sanidade tivesse desmoronado. Ele começou então a fazer acusações contra Fredericks. Entendi o motivo de sua briga: Fredericks havia guardado consigo aquela maldita peça de turmalina escura que encontramos com o cadáver e que mandei ele deixar para trás. O Dr. Musgrave havia visto a coisa com ele e ficou furioso!
Igoolik ao entender o que se passava, assumiu uma postura derrotada em grave silêncio por longos minutos. Quando Fredericks reconheceu que havia desobedecido minha ordem direta, ele me acusou de dar ouvidos demais a "superstições dos selvagens".
Nosso guia então se levantou e colocou-se de joelhos no solo repetindo alguma ladainha em um dialeto que eu não consegui entender. Me pareceu que ele estava pedindo perdão ou desculpas ao céu, com os braços erguidos em uma posição de absoluta submissão. Tentei despertá-lo daquele transe, mas ele continuou balbuciando aquelas palavras, olhando para o alto, enquanto lágrimas corriam de seus olhos e congelavam em suas bochechas.
4 de agosto de 1909
Correndo contra o tempo.
A nevasca cai pesada e não cessa. É um risco seguir nessas condições climáticas, mas o guia afirmou que nos deixaria para trás se não fossemos com ele. A expressão do homem me levou a crer que ele falava a verdade.
Noite - O maldito uivo novamente! Uivo, grito, brado ou seja lá o que for... que animal produz tal som? Nada que eu conheça seria capaz disso! Alguns cães fugiram, correndo para a imensidão gelada como loucos.
Se havia ainda uma parcela de razão no Dr. Musgrave esta também se esvaiu por completo. Ele começou a gritar como um demente e passou a repetir algumas das estranhas palavras que Igoolik mencionou na noite de ontem.
"Itaqua, Itaqua!" gritava e babava, olhando para as nuvens que se tornavam cada vez mais densas e volumosas. Parecia um demente!
Mandei que ele fosse amarrado pois temia que pudesse ferir a si mesmo, ou quem sabe algum de nós.
Fredericks enterrou a peça de turmalina negra na neve e disse que não falaria mais a respeito do assunto. Ele mencionou que "esse maldito lugar não o deixa dormir e que causa pesadelos". Imagino se ele também tem sonhado com vales de gelo negro, ventos inclementes e algo que vive na nevasca.
A imensidão e desolação |
5 de agosto de 1909
Fredericks também desapareceu. Simplesmente sumiu de nossa barraca como se tivesse sido subtraído na calada da noite. Vi o homem se deitar em seu saco de dormir na noite passada e considero absurdo ele ter levantado e saído por conta própria. Não o faria em meio a essa escuridão e nevasca. Não obstante, ele sumiu sem deixar sinal!
Musgrave não conseguia parar de rir. Uma gargalhada histérica que depois se transformou em um lamento. "É o gigante silencioso, ele nos observa do alto!". Ninguém disse nada.
Não havia rastros ao redor da barraca, a neve e o vento poderiam desfazer uma trilha de pegadas que indicassem a saída de Fredericks, mas ainda assim, teria de haver algo... Igoolik não quis sequer procurar por algum indício e o Tenente Benson nada encontrou.
Quando indaguei o que poderia ter acontecido o Inuit apenas olhou para o céu e Musgrave explodiu em nova gargalhada histérica.
Tarde - Ouvimos o uivo novamente, mais uma vez... aquele maldito som profano! Benson carrega seu rifle e a espingarda que pertencia a Musgrave e diz ter a impressão de ver coisas se movendo na nevasca. Eu gostaria de dizer que é apenas a sua imaginação pregando peças, mas também estou vendo... há algo nos seguindo por essas planícies e nada que se diga pode mudar essa certeza tétrica.
Outro sonho estranho enquanto descansávamos. Despertei em um sobressalto. Eu escrevi sobre isso, mas é absurdo... arranquei as páginas do diário para não ter de colocar no papel tais pensamentos. Não quero pensar em tais coisas! Não devo, em nome de minha sanidade!
O Tenente Joseph Benson em 1906 |
Noite - Igoolik libertou o Dr. Musgrave das cordas que o amarravam e os dois nos abandonaram.
Quando tentei argumentar com o guia e detê-lo, ele explicou que não conseguiríamos retornar: "A Tempestade vem vindo! O Andarilho do Vento está chegando", ele disse, ou ao menos foi o que consegui entender. Musgrave, com uma expressão febril, apenas repetiu aquela palavra estranha no dialeto local, que se refere provavelmente a algum Deus, demônio ou espírito temido pelos Inuit:
"Itaqua".
Por algum motivo não tentei detê-los... nem que quisesse, poderia fazer algo para impedi-los, exceto atirar neles e isso não faria. Os dois se meteram na mata, penetrando na floresta de coníferas que os engoliu rapidamente.
Uma forte tempestade está se formando! O Tenente Benson, meu único companheiro agora foi até lá fora fotografar as nuvens densas que se formaram com a câmera que pertencia a Kunrad. Eu ainda encontrei forças para admirar seu zelo em registrar nossa triste situação.
Quando enfim retornou percebi que sua expressão estava perdida e sua face pálida como a neve. A constatação de nossa condição lastimável o atingiu em cheio. Desde então se manteve silencioso.
Depois eu o ouvi rezando.
Não tenho grandes esperanças! Estou trilhando esses caminhos selvagens a tempo suficiente para saber que nossa situação é desesperadora. Será muito difícil atingir a civilização com os poucos e cansados animais que restaram. Sem um guia, temo que acabamos nos desviando de nossa rota. Talvez tenhamos entrado no território dos Puytevah e precisaremos negociar com eles.
A tempestade já recomeçou... não sei se o que ouço é o vento ou aquele maldito uivo. Os dois parecem a mesma coisa, cada vez mais alto.
Deus tenha piedade.
A equipe ainda em Manitoba, em uma estação da Polícia montada, se prepara para a viagem |
NOTA FINAL
O diário da expedição foi encontrado em 1947 por prospectores, que acharam o caderno nas mãos do cadáver congelado do Professor William Leydell Sandhurst.
O corpo apresentava extensivos ferimentos condizentes com um forte impacto causado por uma queda de altura considerável. De fato, ele foi identificado apenas após a realização de exames que confirmaram se tratar do Professor Sandhurst. A grande dúvida quanto a identificação residia no fato de que o cadáver foi encontrado nos arredores do vilarejo de Kirkland, cerca de 1200 quilômetros de distância da última posição assinalada pelo professor em seu diário. Não se sabe como o cadáver teria chegado a essa localização tão afastada.
O paradeiro do Tenente Joseph Benson da Real Polícia Montada do Canadá e dos demais membros permanece desconhecido.
Contudo, o estojo da máquina fotográfica Weiss que pertencia a Dieter Kunrad e que ficou em poder do Tenente foi achado após uma busca nos arredores. Por milagre a câmera em seu interior ainda estava intacta e foi possível revelar o filme. As fotografias que ilustram essa narrativa foram obtidas nessa câmera.
A imagem mais notável é justamente a última, que supostamente foi tirada pelo Tenente Benson segundo a derradeira anotação do diário. A fotografia está reproduzida abaixo e há mais de 60 anos divide opiniões no que diz respeito ao que ela mostra.
A fotografia final da expedição. |