sábado, 2 de maio de 2020

A Besta dos Esgotos - A fera que aterrorizou os subterrâneos de Londres


Nos séculos XVIII e XIX existia um mundo estranho e proibido abaixo das ruas movimentadas de Londres. Os habitantes da grande metrópole caminhavam sobre esse mundo, ignorando sua complexa vastidão. Mas nas profundezas da terra, milhas de túneis de esgoto, criados ao longo dos tempos se estendiam até distâncias inimagináveis. Túneis que foram construídos sem grande planejamento, com o propósito de despejar a maré de detritos e sujeira o mais longe possível da cidade. Uma teia infindável de caminhos e corredores, verdadeiro labirinto subterrâneo, esquecido e inexplorado. 

Em meio a essas misteriosas profundezas, dominadas pela escuridão perpétua e tomadas por um fedor atroz, surgiram lendas, mitos e histórias selvagens, incluindo a medonha fábula de uma espécie de sanguinários e ferozes suínos gigantes. As Bestas do Esgoto de Londres alimentaram rumores e tiraram o sono de muita gente.

Esses rumores vieram à superfície, ou melhor foram trazidos à luz da civilização por exploradores dos esgotos conhecidos como "toshers". Os Toshers eram caçadores dos túneis, chamados dessa forma por conta do apelido dos tesouros que eles buscavam nas profundezas, o "tosh". Eram homens e mulheres desesperados, que vasculhavam os caminhos escuros caminhando em meio aos restos da civilização, desviando-se de ratazanas e perigos inimagináveis, resgatando qualquer coisa valiosa que tivesse sido perdida do mundo acima: o Tosh. Artefatos antigos, pedaços de metal, cobre, prata, moedas, jóias, praticamente qualquer coisa que pudesse ter escoado pelos bueiros e fossas da cidade na superfície e que tivesse se alojado nos refugos. Tiravam desse perigoso ofício seu sustento, empilhando sucata e restos em feiras clandestinas onde o Tosh, era apresentado a compradores em potencial. Em uma cidade antiga como Londres, marcada por antas transformações e períodos, era surpreendente o que os Toshers encontravam nas profundezas - de artefatos romanos a jóias saxãs, de moedas estrangeiras a talheres de prata. 

Era um trabalho extremamente perigoso e nem sempre recompensador. Um Tosher podia passar meses sem encontrar nada de valor, tendo de sobreviver com sucata e restos de metal, mas aqueles que tinham sorte, podiam encontrar algo valioso que alimentaria suas famílias por um bom tempo. Com uma população cada vez maior, o trabalho de Tosher atraia mais e mais pessoas e por conta do grave risco que essa ocupação impunha, o governo a tornou ilegal em 1840. A proibição, no entanto, serviu apenas para tornar ainda mais desejados os artefatos resgatados pelos Toshers.

Na metade do século XIX, o jornalista Henry Mayhew, que documentou a degradação e miséria da Londres Victoriana num livro intitulado "Trabalhadores de Londres", dedicou algumas linhas a respeito desses exploradores que mais pareciam criaturas dos subterrâneos do que homens. 

Ele escreveu sobre os toshers:

"Eles são conhecidos e vistos ao longo do curso do Tâmisa, especialmente na margem escuras do Surrey. Vestem longos mantos ensebados de lona reforçada, com bolsos profundos costurados ao longo de toda extensão. Os membros são protegidos por tiras de couro, luvas e botas grossas, enquanto o rosto fica atrás de máscaras de tecido e a cabeça coberta por chapéus ou capacetes improvisados de couro ou metal... vestem por cima do conjunto um imundo avental pesado de couro cru e carregam lanternas semelhante à dos policiais. Estas podem ser presas em cinturões ou fixadas no topo dos capacetes para iluminar o caminho, deixando as mãos livres afim de manipular e esquadrinhar os arredores. Caminham arquejados pelo peso desse traje, olhando para o chão em busca de algo de valor em meio à água cinzenta e refugo decomposto que os cerca. São conhecidos com trazer uma grande bolsa nas costas para reunir sua coleta e por carregar uma longa vara ou cano de metal que serve tanto para sondar o caminho quanto para golpear os ratos".        


Os Tosher corriam riscos imensos em seu ofício. A morte podia se apresentar na forma de desabamentos, fumaça tóxica, explosões de metano ou buracos escondidos pela água. Havia ainda a possibilidade de se perder nos labirintos e não encontrar o caminho de volta. A perspectiva de vagar à esmo pelos túneis sem jamais ver a luz do sol novamente. Por vezes, os tosher seguiam um túnel e penetravam em uma área infestada por imensos ratos de esgoto dispostos a lutar pelo seu território. Tinham então que esmagar os animais, enfrentando garras e presas afiadas para escapar. Esses roedores não temiam invasores e suas mordidas conseguiam atravessar até a lona reforçada dos trajes. 

Mas pior que tudo isso, se sujeitavam às inúmeras doenças boiando na água pútrida e nos restos descartados por homens e animais. De fato, entre os requisitos essenciais para a ocupação de Tosher, estavam ter estômago para suportar esse ambiente nauseante e uma resistência fora do normal às doenças que ali proliferavam. Era frequente, entretanto, que um Tosher carregasse no corpo as marcas de seu horrendo trabalho, na forma de incontáveis moléstias. Muitos tinham a face marcada por doenças, a pele descamada, mãos e pés com feridas que jamais fechavam, dificuldades respiratórias e alergias das mais variadas. Anos e anos na cloaca da civilização tornava alguns deles especialmente resistentes, mas o abuso do corpo cobrava seu preço. O fedor acabava com seu paladar e olfato, o tempo na escuridão os deixava sensíveis à luz, carregavam um fedor indescritível e aos olhos das pessoas civilizadas pareciam apenas semi-humanos.

Para os que se dispunham a ouvir, compartilhavam toda sorte de relato fantástico das suas jornadas pelos túneis. Uma dessas fábulas obscuras mencionava um horror que habitava as profundezas e disputava aquele território insalubre conectado por infindáveis corredores limosos. Eram monstros de grande porte, criaturas selvagens habituadas a viver na escuridão perpétua, se alimentando do lixo e resíduos levados pela maré. Segundo rumores, a área da cidade conhecida como Hampstead era seu domínio e os Tosher que entravam lá se arriscavam a cruzar com essas grandes bestas - Porcos do Esgoto.          

A maioria das pessoas desconhece a ameaça que esses animais representam. Um suíno selvagem possui muita força e esta, combinada à voracidade, o torna uma máquina de matar e comer. Porcos podem comer virtualmente qualquer coisa e quando sujeitos a condições adversas se adaptam facilmente. Um porco perdido no esgoto pode disputar o espaço com ratos se alimentando deles e tornando-se instintivamente carnívoro. Dali a se converter em um caçador é um passo.


Toshers afirmavam que nenhum perigo nas profundezas era maior que os Porcos do Esgoto. Os olhos dessas feras reluziam na escuridão, instantes antes deles avançarem ferozmente. Qualquer pessoa derrubada por um desses suínos demoníacos podia ser mordida ou esmagada. Os toshers estavam sempre vigilantes da presença desse inimigo natural. Alguns desciam às profundezas carregando cutelos, machadinhas e lanças para enfrentá-los. Uma luta contra esses porcos era sempre sangrenta e desesperadora já que as feras eram incrivelmente tenazes.

Mas como esses porcos teriam ido parar nos esgotos em primeiro lugar? A ideia mais frequente é que os porcos teriam entrado por algum túnel em busca de comida e se perdido. No século XIX, porcos ainda podiam ser encontrados andando livremente pelas ruas de distritos mais pobres e se alimentando do que escorria pelas sarjetas. Havia ainda fazendas nos arredores da metrópole, de onde porcos podiam se desgarrar e seguir o curso do Tâmisa até alguma fossa e dali para a boca de um cano de despejo. Se uma quantidade de porcos se perdeu nos túneis, não seria de se espantar que eles pudessem ter se reproduzido, gerando espécimes naturalmente adaptados a esse ambiente. A mistura desses espécimes daria ensejo a defeitos genéticos e anormalidades. Isso poderia explicar as descrições de bizarros porcos albinos, com a pele branca como leite e olhos vermelhos que jamais haviam visto a luz do dia. Além de animais horrivelmente deformados, verdadeiras monstruosidades.

O mesmo jornalista Henry Mayhew ouviu esses relatos fantásticos quando entrevistou alguns Toshers: 

"Alguns deles (toshers) acreditam que esses animais surgiram por acidente, acabaram descendo aos esgotos em busca de comida e lá se perderam. Os rumores envolvem ainda a história de uma imensa porca grávida que teve sua ninhada nos esgotos e estes se espalharam pelos túneis alimentando-se do lixo abundante. Lá, eles teriam se multiplicado, tornando-se ferozes". 

Segundo Mayhews que alegadamente conversou com Toshers, o número de porcos de Esgotos era superior a duas dúzias, mas poderiam haver mais nas partes mais profundas, onde apenas alguns poucos exploradores ousavam ir. A história, trazida aos jornais acabou se tornando popular entre os londrinos do período. A ideia de enormes e brutais suínos vagando pelos subterrâneos parecia algo tirado de uma história de horror, e isso manteve o interesse do público. Outros jornais sensacionalistas se alimentaram dessa história e um artigo apareceu no Daily Telegraph em 10 de outubro de 1859 mencionando os Porcos de Esgoto num editorial.  

"Londres é uma amálgama de mundos dentro de mundos, e as ocorrências do dia a dia nos convencem de que existem as mais diferentes na cidade, muitas das quais absolutamente desconhecidas. Há muito exagero e superstição, mas há também desconhecimento do que vaga sob nossos pés. Alguns afirmam que bestas espreitam nos túneis subterrâneos responsáveis por escoar os restos da civilização para longe. Nos esgotos de Hampstead, enormes suínos habitam em meio a feculência, prosperando nesse ambiente com seus horríveis grunhidos abaixo de Highgate".


Histórias a respeito de Porcos de Esgoto em Hampstead circularam por muitos anos, tornando-se de certa forma bastante similares a alegada existência de jacarés nos esgotos de Nova York. As histórias apenas começaram a desaparecer quando em 1858, os esgotos de Londres passaram por uma extensiva reforma estrutural. É preciso dizer que embora existissem várias narrativas sobre porcos de esgoto, jamais um deles foi apresentado para validar as histórias sobre sua existência. É possível, até provável, que os Porcos de Esgoto tenham sido uma manchete sensacionalista explorada até a exaustão pelos jornalistas da época, interessados em espalhar um rumor. O próprio Mayhew terminava o capítulo de seu livro dizendo que "a história era apócrifa e havia sido ouvida da boca de toshers que muitas vezes tendem ao exagero".

É bem possível que porcos tenham de fato entrado pelos esgotos abertos e que tenham vivido nos subterrâneos, é possível que alguns espécimes também tenham se tornado selvagens e que estes se eram perigosos, mas não há como dar crédito aos rumores sobre dúzias deles. Por outro lado, quem pode afirmar com certeza? Os Toshers que trouxeram essa história fantástica à superfície eram as únicas testemunhas do que existia e do que vagava pelos túneis.

Seja lá qual for o caso, a história continua sendo fascinante e macabra. Uma narrativa quase perdida de uma época sinistra e especialmente dura, na qual homens se sujeitavam aos trabalhos mais perigosos para sobreviver. Quando existia de fato uma cidade secreta repleta de mistérios por baixo da maior Metrópole do mundo.  

9 comentários:

  1. Muito show, não esperava que criatura de bloodborne tivesse uma origem dessas

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  2. Acabou de me dar uma ideia de megadugeon para Shadow of the Demon Lord!!!

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  3. Muito interessante. No texto fala "imensos ratos de esgoto dispostos a lutar pelo seu território". Além do porco gigante do esgoto, lembrei dos "ratões" de Bloodborne.

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    1. Pensei nos porcos de bloodborne também que ficavam sob os esgotos

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  4. cara, teu blog é sensacional, parabens!

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  5. Muito bom, me deu ideias, usar os Tusher como NPCs em um RPG medieval e os animais do esgotos como desafio.

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  6. Que bela estória de terror londrina.

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  7. kkkk eu não consigo ler esse texto e não pensar no bluezão,javali que atacava pessoas nos esgotos

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