terça-feira, 5 de maio de 2020

A Vingança do Porco - Delocher o espírito assassino que aterrorizou Dublin


Os frequentadores do movimentado bairro de Cornmarket, na cidade de Dublin, Irlanda, sequer imaginam que esse lugar, famoso por atrair turistas e visitantes, possui uma história incomum e absurdamente bizarra. No passado, todo o quarteirão era conhecido pelo ameaçador nome de Prisão do Cachorro Preto (Black Dog Prision).

Ali havia uma temida Casa de Detenção, construída no século XVII e cuja existência se tornou sinônimo de corrupção, má administração e abuso. O propósito da prisão era receber criminosos que aguardavam julgamento no tribunal de justiça no outro lado da rua. A cadeia funcionava como um empreendimento de negócio, onde tudo nela era pago. O prisioneiro tinha que pagar pelo seu espaço, pela sua comida e pelo tempo que ficaria aguardando o julgamento no local. Aqueles que podiam dispensar algumas moedas eram levados para uma das celas e ficavam lá à espera de seu julgamento. A proposta da Cadeia era desafogar o sistema prisional da cidade e garantir que os acusados que não tivessem ainda sido condenados ficassem em um local adequado até sua sentença ser proferida. Mas é claro, a proposta justa acabou sendo desvirtuada pela ganância humana.

O diretor e os guardas logo viram na Prisão uma oportunidade para explorar os prisioneiros e extorquir deles até o último centavo. As condições de vida na Black Dog eram deploráveis, para dizer o mínimo. Os prisioneiros pagavam por acomodações infestadas de pulgas, piolhos e carrapatos, recebiam comida estragada e ficavam longos períodos trancafiados em solitárias. Quanto mais tempo os presos passassem na cadeia, mais teriam de pagar pelas acomodações. Aqueles que não possuíam dinheiro ou que não podiam pedir a parentes, eram enviados para uma área subterrânea abaixo do complexo. No passado, o lugar havia funcionado como masmorra medieval, e acabou sendo convertido uma vez mais em prisão. A masmorra era úmida, suja, repleta de ratos e com um ar estagnado difícil de respirar.

Os prisioneiros enviados para esse lugar o chamavam de Inferno, enquanto que as celas pagas eram apelidadas de Purgatório. E realmente, essa parecia ser a melhor comparação. Um homem podia resistir alguns dias nas celas, mas nas condições insalubres da masmorra mal iluminada, era questão de tempo até o acusado definhar ou contrair alguma doença que se provava fatal.

Em 1788 um interno conhecido apenas como Olocher foi enviado para a Prisão para aguardar julgamento. Ele era acusado de estupro e assassinato de uma jovem mulher, mas havia a suspeita de muitos outros crimes semelhantes. Ele aguardava que o juiz lhe desse a sentença e todos esperavam que ele fosse mandado para a forca pelos seus horríveis crimes. Olocher tinha algum dinheiro guardado e assim pagou para ficar em uma cela e receber comida ao longo de pelo menos duas semanas como hóspede da Black Dog. Os carcereiros o detestavam e o tratavam com desprezo, mas aceitavam suas moedas que eram entregues diariamente por um primo que vinha trazer o pagamento.

Alguns dias depois, um Juiz ordenou que Olocher fosse levado à sua presença para receber a pena. Conforme esperado, ele foi condenado a ser conduzido ao patíbulo de Gallows Green onde deveria ser enforcado até a morte. Como já estava tarde para transportar o preso, ele foi colocado novamente em sua cela na Black Dog para aguardar transferência.


Na manhã seguinte, um dos carcereiros, um homem que atendia pelo nome de Charles Hard foi inspecionar a cela de Olocher e o encontrou morto. Hard já havia tido desentendimentos com Olocher e em uma ocasião o agrediu com um porrete, de modo que ele não se importou em absoluto com o destino do prisioneiro. No entanto, as pessoas ficaram indignadas já que o homem escaparia à sua justa punição. Se os presos pudessem cometer suicídio antes da execução, esta acabaria perdendo o seu sentido punitivo. Para resolver a situação e dar alguma satisfação à família da jovem assassinada por Olocher, um juiz decidiu levar à cargo a sentença.

O corpo sem vida de Olocher foi carregado até o Patíbulo em uma maca improvisada, recebendo cusparadas, xingamentos e uma chuva de frutas podres. Ao chegar lá, foi acomodado em uma cadeira e a corda posicionada em torno de seu pescoço, como se ele estivesse vivo. Quando o cadafalso se abriu, a cadeira despencou no buraco, mas o cadáver ficou pendurado conforme o desejado. Ele balançou na ponta da corda por alguns instantes, sem qualquer reação e conforme o protocolo foi deixado ali por mais alguns instantes. Um médico verificou a pulsação e declarou que ele estava morto. A seguir, o cadáver foi mandado para ser enterrado no cemitério próximo.

Esse poderia ser o final da história, mas ainda havia muitas coisas estranhas para acontecer.

Na noite seguinte, o carcereiro Charles Hard saiu de um pub próximo de Cork Street após beber algumas cervejas. Momentos depois seus gritos foram ouvidos ecoando pelas ruas desertas. Ele foi encontrado inconsciente, estirado em uma poça de seu próprio sangue e para todos os efeitos parecia ter sido atacado por um algum animal grande e selvagem. Quando retomou a consciência, insistiu que havia sido vítima da investida de um enorme porco, com a face deformada de um homem. Hard continuou jurando que seu agressor tinha essa forma medonha e quando fechava os olhos era acometido por delírios nos quais via a criatura. Ele resistiu por dois dias, mas morreu em um quarto de hospital, febril e aterrorizado demais para se recuperar dos ferimentos impingidos por seu misterioso assassino.

Nas noites que se seguiram, guardas escalados para patrulhar as ruas se recusaram a cumprir sua tarefa. Vários deles disseram ter visto um imenso porco correndo pelas ruas em um tropel barulhento de cascos batendo contra as pedras do calçamento. Nos arredores da Casa de Detenção, o ruído foi tão alto e apavorante que presos e guardas tamparam os ouvidos para se proteger da algazarra.     

A histeria se espalhou entre a população que logo relacionou a aparição da besta com o suicídio de Olocher. Afirmavam que a sepultura do homem, havia sido escavada e de dentro dela seu corpo sumira. Na concepção das pessoas do distrito, o inferno havia recusado o homem e o devolvido ao mundo dos vivos na forma de uma entidade demoníaca. Eles começaram a chamá-lo de "Delocher" e temiam sua vingança.


Os arredores da prisão pareciam ser o território de caça da alegada criatura diabólica. Com os guardas se negando a patrulhar Cork Street, um homem se voluntariou para fazê-lo, ganhando aplausos e incentivo de todos os demais. Entretanto, na manhã seguinte o bravo guarda havia sumido do posto, seu rifle e roupas foram achados caídos no chão. Todos imediatamente assumiram que ele teria sido morto pelo Delocher, que o teria carregado para algum covil onde o devorou, corpo e alma.

Seguiu-se nova noite de terror, e na manhã seguinte uma mulher da vizinhança disse ter sido atacada pelo Porco Delocher. O animal lhe deixou duas feridas feias ao mordê-la, mas ela conseguiu escapar aos trancos e barrancos, gritando em desespero.

Isso foi apenas o começo - noite após noite, essa área importante de Dublin era assolada pela criatura e por gritos de mulheres que pareciam ser as vítimas preferenciais do Dolocher que desaparecia na noite. "Mulheres", alguém inferiu, "como aquelas que o criminoso estuprou quando estava vivo".

As autoridades e residentes viviam aterrorizados, com o inverno as ruas ficavam desertas após o anoitecer. A medida que os dias se tornavam mais longos e a Primavera deu lugar ao Verão, os ataques cessaram e Dublin respirou aliviada. Mas o retorno das noites mais escuras e enevoadas, marcou a volta do Delocher uma vez mais. Como havia acontecido um ano antes, as pessoas se trancaram em suas casa, sem ousar sair até o raiar do sol. Mesmo assim, a besta continuava à solta espreitando em busca de vítimas. Uma, duas, quatro, dez... o número variava de acordo com a pessoa a quem se perguntava. Mas com certeza, todos sabiam de um ataque especialmente selvagem que teve como alvo uma mulher grávida que perdeu seu bebê.

Um grupo de vigilantes se organizou após essa tragédia. Depois de beberem num bar, desceram a Cork Street em bandos, matando e mutilando todos os porcos que encontravam pelo caminho. Com machado e facão, cutelo e porrete deixaram um rastro rubro de suínos massacrados nas ruas tortuosas da cidade. Havia a suposição de que o demônio procurava porcos para possuir, como fizera a Legião de demônios na passagem bíblica do Milagre de Gadareno. Um pastor havia afirmado tal coisa no púlpito e os fiéis tomaram como verdade. Os pobres porcos pagaram.

Uma semana mais tarde, numa noite desagradável, marcada por chuva torrencial, um ferreiro muito querido na cidade terminou sua caneca habitual de cerveja e começou a andar para casa. Um amigo lhe emprestou um manto com capuz para que ele chegasse em casa o mais seco possível. O homem cortava caminho pela área da Prisão do Cachorro Negro quando ouviu passos e um grunhido medonho vindo de uma viela. Virou-se a tempo de ver uma figura se esgueirando para atacá-lo - um homem com a cara de porco.


O ferreiro se engalfinhou com o agressor, os dois rolaram no chão. Os gritos atraíram algumas pessoas na vizinhança que vieram ver do que se tratava e estes se depararam com a cena. Assustados ajudaram o ferreiro, batendo na criatura meio-homem-meio-porco até ela parar de se mover. Logo a notícia se espalhou pelo distrito, o Dolocher havia sido subjugado pelo ferreiro e meia dúzia de corajosos.

Descobriram então que a criatura não era monstro e menos ainda demônio, mas um homem que vestia uma máscara feita com o couro curtido da face de um porco. Levaram o sujeito, com múltiplos ossos partidos para o hospital mais próximo onde ele começou a relatar sua história. Lá ele foi reconhecido como o guarda que havia desaparecido na estação anterior e que sozinho havia se oferecido para vigiar as ruas. 

Ele confessou ter planejado cada passo de seu ardil, tendo ajudado Olocher a se suicidar, ocasião em que decidiu se valer das histórias sobre o porco demoníaco para atacar mulheres inocentes e colocar Dublin num estado de pânico jamais visto. O guarda assumiu cada um dos ataques, afirmando que a máscara de porco lhe dava a segurança para praticar os crimes impunemente, sobretudo porque ninguém o reconheceria. Após seu "desaparecimento" ele viveu por meses numa fazenda próxima, indo a Dublin apenas depois do anoitecer para fazer seus ataques e depois se esconder novamente. Valendo-se do pânico que sua imagem conjurava, ele vitimou ao menos uma dúzia de mulheres e planejava fazer o mesmo na noite em que foi pego. O manto fechado do ferreiro fez com que ele o confundisse com uma mulher. 

O motivo para a onda de mortes e ataques? Loucura pura e simples! Vestir a máscara e se fazer passar pela criatura lhe dava um prazer macabro.

O criminoso morreu em decorrência dos múltiplos ferimentos recebidos quando foi capturado. Alguns disseram que a justiça havia sido feita, mas outros exigiram que a sentença fosse cumprida como mandava a lei. Dois dias depois do homem ser enterrado num jazigo, uma multidão desenterrou o corpo e carregou até o patíbulo da Cadeia onde pediram que ele fosse pendurado na ponta da corda e enforcado como cabia a um criminoso vil. Em seguida, o corpo foi descido e massacrado pela turba feroz que o despedaçou e ateou fogo até que nada mais restasse além de más memórias.

Com isso, o reinado de terror do Dolocher, o Porco Diabo, chegou ao fim na velha Dublin.

3 comentários:

  1. História fantástica! Incrível o nível de demência que um ser humano pode ter.

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  2. Adorei a história! Morei pertinho da região do Black Dog Prision, entre o Cornmarket e Maryland. Andei por essas ruas de madrugada várias vezes e poderia ter sido atacado pelo Delocher :&

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