segunda-feira, 11 de maio de 2020

Médico da Peste - Aqueles que lidavam com a Morte Negra


É interessante questionar o fascínio que a Idade Média exerce sobre nós hoje em dia. 

Não foi, nem de longe, o momento mais iluminado da humanidade, muito pelo contrário. O que marcou esse período, não por acaso chamado de Idade das Trevas foi violência, ignorância, superstição, privações e é claro, doenças. 

Em meio a todo o horror da Idade Média, poucas coisas poderiam ser mais aterrorizantes do que a Peste Negra. A doença, que viríamos a conhecer como Peste Bubônica (a bactéria Yersina pestis), era transmitida pelas pulgas que infestavam os ratos pretos comuns. Viajando nos porões de navios mercantes, ela se espalhou velozmente graças às condições degradantes na qual boa as pessoas viviam. Sozinha a peste foi responsável por dizimar boa parte da população da Europa no século XIII e XIV.

A terrível doença era capaz de esvaziar cidades inteiras, matando indiscriminadamente ricos e pobres, os que acreditavam em Deus e os que o renegavam, homens e mulheres, jovens e velhos. Em sua sanha assassina, a doença não ignorava ninguém. Ela não escolhia um alvo em particular, mirava em uma região e nela todos morriam. A Peste não obedecia aos limites traçados pelo homem: cruzava territórios invadindo feudos e atravessava as fronteiras penetrando nos reinos. Sua passagem pelo mundo ocidental deixou sinais vívidos na arte, na escrita e na memória coletiva das gerações que se seguiram. 

Por muito tempo acreditou-se que era o Apocalipse. E por pouco não foi!

A Peste devasta a Cidade francesa de Marselha
A peste surgia, e devastava rapidamente a população, e tão rápido quanto aparecia, cessava inexplicavelmente de um momento para outro. Mas não demorava a ser sucedida por outra onda devastadora. Para a maioria das pessoas era uma provação. O auge da pandemia ocorreu entre 1347 e 1351. Estima-se que ela matou algo entre 75 e 200 milhões de pessoas na Europa, Oriente Médio e Norte da África. Apenas na Europa as mortes atingiram entre 40% e 60% da população.

Dentre os personagens que viveram nesse período dramático, os Médicos da Peste permanecem como um estranho símbolo de tempos sombrios onde a vida podia ser abreviada pela foice invisível da morte.   

A figura do Médico da Peste era singular sobretudo pelas suas vestimentas. Sua imagem é universalmente conhecida e documentada em gravuras e descrições de época. A representação mais famosa, sem dúvida é Der Doctor Schnabel Von Rom de Paul Furst, mas existem centenas de outras imagens dessas figuras de aparência sinistras. Uma rápida busca no Google por "plague doctor" resulta em inúmeras fotos de fantasias e máscaras, além de fontes históricas. 

A indumentária foi provavelmente o primeiro traje primitivo de proteção contra contaminação na história. Naquela época, ninguém, nem mesmo os médicos, tinham ideia de como se dava a transmissão da doença. Tudo era um grande mistério! A teoria mais popular era que a praga seria transmitida através do ar contaminado ou por algum tipo de veneno que os doutos chamavam de Miasma.

A famosa representação de Paul Furst dos Médicos da Peste
O origem do miasma variava de acordo com cada estudioso ou sua escola de pensamento. Alguns supunham que ele provinha das profundezas da terra, exalando através de fissuras no solo que chegavam até as profundezas do inferno. Respirar o ar contaminado da corte satânica causava a doença e significava a morte. Outros supunham que o miasma era proveniente dos cadáveres insepultos e moribundos que se agarravam à vida na vã tentativa de superar a doença. Era popular a teoria de que o miasma surgia em áreas pantanosas com grande concentração de água parada. Mas existiam teorias ainda mais estapafúrdias que atribuíam a geração do miasma à flatulência de bodes e cabras negras, a maresia formada após uma forte ressaca e até a ingredientes usados nas cozinhas medievais.

De qualquer forma, os estudiosos e acadêmicos medievais concordavam que o problema deveria estar no ar.

Com isso em mente, os médicos do século XIV começaram a vestir os famosos trajes de proteção para evitar contaminação. Sua criação foi atribuída a Charles de Lorne, médico particular de Luis XIII de França. Ao longo dos anos, as roupas usadas pelos médicos da peste mudaram bem pouco. 

O chapéu preto de aba curta era tipicamente usado pelos praticantes da medicina. Quando um médico saía à campo ou para realizar um exame, o chapéu era uma espécie de identificação para que fosse reconhecido por guardas e vigias noturnos que poderiam interpelá-lo em um momento de urgência. O corpo era protegido por um grande manto geralmente preto para que as manchas de sangue não ficassem evidentes. Sobre o manto vestiam um avental coberto de cera ou parafina que o tornava à prova d'água. O colarinho do traje era suspenso e amarrado por um cordão que servia também para proteger a cabeça. Sapatos com solas reforçadas eram usadas nos pés, junto com caneleiras de couro reforçado quando não haviam botas disponíveis. As mãos eram protegidas por luvas grossas que se estendiam até o antebraço e eram amarradas às mangas do manto.

O médico carregava uma mochila trespassada no peito por cima do avental. Ali levava seus instrumentos, que incluíam vidros para coleta, bandagens, facas afiadas e vários ingredientes na forma de poções e unguentos. Fora essa mochila levavam a mão um tipo de bengala de madeira indispensável para realizar os exames de uma distância segura. A bengala era usada para apontar, tocar e manipular os doentes de uma distância segura. À elas podia ser acoplada uma faca para furar e perfurar cadáveres quando o médico buscava sinais da doença nos mortos (marcas escuras e feridas no pescoço, axilas e virilha). A bengala além disso, podia ser usada como uma arma eficaz para golpear pessoas enlouquecidas pela doença. 


Entretanto, era o rosto do Médico da Praga que mais chamava a atenção. Sobre a face eles usavam uma grotesca máscara confeccionada de tecido ou couro, dotada de uma longa protuberância similar a um bico. No interior deste eram depositadas ervas aromáticas (menta, mirra, sândalo, láudano) e temperos fortes (pimenta limão, canela e junípero) que supostamente filtravam e diminuíam a potência dos miasmas. No melhor dos casos, essa medida servia para reduzir o fedor, mas na prática era pouco eficaz contra a doença. 

Os olhos eram protegidos por aros de vidro grosso, associados a saber e aprendizado. Alguns médicos defendiam que vidro vermelho era o ideal para essa proteção, uma vez que ele permitiria enxergar com mais clareza as emanações miasmáticas no ar. A máscara era amarrada ou costurada no manto para evitar que se desprendesse da face. O pescoço era considerada uma área sensível, por isso ele era envolvido por um cachecol de tecido embebido em cânfora. Nenhuma parte do corpo ficava à mostra, mas toda essa proteção era extremamente desconfortável.

O Médico da Peste geralmente contava com um assistente de confiança que o acompanhava em seus trabalhos de campo. Este em geral era um aprendiz que tencionava também exercer o ofício de seu mestre. Muitas vezes eram jovens, não raramente crianças. Eles não contavam com um traje igual ao do médico, por isso, muitas vezes a carreira era abreviada pelas circunstâncias. A função do assistente era conduzir o praticante, já que a visão deste ficava comprometida pelas lentes que acabavam embaçando. Outra atribuição era falar com as pessoas já que muitas vezes estes não conseguiam ouvir o que o médico dizia por trás da máscara. Era comum que Médicos e ajudantes desenvolvessem uma forma de comunicação através de sinais para facilitar sua interação.    

O conjunto era impressionante e transmitia à população uma aura de austeridade e seriedade. Há relatos de que a mera visão de um médico era suficiente para conjurar pânico e fazer com que as pessoas fugissem assustadas. Em algumas partes da Europa eles eram chamados de Corvos, Gralhas e Aves Negras e sua aparição representava a certeza de que o pior estava à caminho.

Não por acaso, o traje logo foi incorporado pelas companhias itinerantes de artistas mambembes, em especial a Commedia dell'Arte que criou um personagem chamado Medico della Peste. A máscara é uma peça até hoje popular no Carnaval de Veneza.


Curiosamente quando os Médicos da Peste apareceram, sua função não era tratar dos doentes ou mesmo reduzir o grau de contaminação. Ninguém esperava que eles pudessem fazer tal coisa. A função dos médicos era basicamente observar a ação da doença, verificar como ela se espalhava e principalmente contabilizar os mortos. Acreditava-se que a observação poderia de alguma forma resultar em uma maior compreensão do desenvolvimento e progressão da epidemia.

De fato, bem poucos Médicos da Peste podiam ser realmente chamados de médicos pois sequer exerciam esse ofício. Em geral, os homens que vestiam a máscara e entravam em lugares devastados pela Peste, não possuíam educação formal. Quando se metiam a tratar a população afligida, o faziam através de métodos torpes como a realização de sangrias e o uso de remédios caseiros. Era comum o uso de sanguessugas e sapos que supostamente tinham a faculdade de sorver os miasmas responsáveis pelas moléstias. 

Eram quando muito médicos de segunda categoria ou recém formados em busca de um trabalho estável. Na França e Países Baixos atendiam pelo nome de Empíricos que auxiliavam aos médicos oficiais que jamais iriam se arriscar em um trabalho tão perigoso.

Isso não significava que os Médicos da Peste não conseguissem obter resultados graças ao seu trabalho. Foi através da observação deles que muitos progressos foram feitos, sobretudo no que diz respeito a transmissão e proliferação da doença. Foram Médicos da Peste os primeiros a fazer uma relação direta entre condições de alimentação e higiene com a taxa de mortalidade. Com o tempo, eles ganharam respeito e admiração, chegando a obter inclusive a permissão clerical para realizar autópsias e conduzir cremações, dois fortes tabus religiosos. Graças ao aconselhamento de Médicos da Peste, partes de cidades foram colocadas em quarentena como medida de segurança. Eles também instruíam a população sobre como se comportar durante a epidemia.  

No século XV, os Médicos da Peste já eram contratados por governantes que pagavam a eles salários consideráveis. Praticantes famosos eram especialmente requisitados e certas cidades consideravam uma questão de prestígio contar com mais de um desses profissionais quando havia uma peste à caminho. Veneza, com seu rico comércio chegou a contar com um plantel de dezoito Médicos da Peste em 1348. O Papa Clemente VI contratou uma equipe de 10 desses profissionais para auxiliar em uma epidemia que atingiu Avignon.


Em 1650, dois importantes Médicos da Peste de Barcelona foram sequestrados por bandidos de estrada quando estavam a caminho de Tortosa onde havia eclodido uma epidemia. Um resgate foi exigido e após grande pressão popular, a cidade acabou pagando o que era demandado pelos criminosos garantindo assim o regresso de seus médicos. Com efeito, muitos Médicos da Peste se tornaram exclusivos das cidades que os contratavam, como o respeitado Matteo Angelo que em 1348 ganhava quatro vezes mais do que qualquer médico convencional.

Com o passar dos séculos, a medicina progrediu e a ciência foi capaz de compreender as causas das epidemias e como lidar com elas para diminuir as fatalidades. Mas à despeito disso, Médicos da Peste ainda podiam ser encontrados ao longo do século XVIII, XIX e até o início do XX, acompanhando o rastro das grandes epidemias modernas. Em plena década de 1920, Médicos da Peste ressurgiram (com direito a máscara e manto) tentando auxiliar o combate da Gripe Espanhola (Influenza) que se alastrou pelo Mundo logo após a Grande Guerra.

Hoje vivemos a realidade de uma nova pandemia, exatamente 100 anos depois da última grande tragédia mundial de saúde. O Covid-19 já escreveu seu nome no rol das doenças que colocaram a humanidade em cheque e que nos desafiam a encontrar maneiras de enfrentar um inimigo invisível. 

Não é a primeira vez, não será a última, mas nós vamos prevalecer.

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