segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Lugares Estranhos - Trasmoz: O Povoado mais Herético da Espanha

Continuando nosso passeio pelos recantos mais bizarros da Espanha.

Escondida na sinuosa cadeia montanhosa de Moncayo, na Província de Zaragoza, encontramos o povoado de Trasmoz. O lugar é muito antigo e tem uma longa história, com suas origens datando do século XII. Seu passado colorido e turbulento remonta à conquista de Jaime I, Rei de Aragão, bem como uma notável quantidade de levantes, revoltas e massacres. Esse lugar viu de tudo e se a sua história tivesse de ser escrita talvez fosse melhor usar sangue ao invés de tinta.

Ao longo dos anos a população de Trasmoz sofreu flutuações, mas ela chegou a ter mais de 10 mil habitantes em seu ápice. Hoje, ela não é mais do que um vilarejo aparentemente sem importância com cerca de 200 almas residindo.

A razão para esse decréscimo populacional provavelmente está ligada à história sinistra que afasta candidatos a morar em um lugar comumente associado a praticas de bruxaria, magia negra e rituais pagãos.

Trasmoz é o epicentro de rumores de feitiçaria desde a sua fundação. De fato, mesmo antes do assentamento começar a se formar a área já era considerada como lar de cabalas de bruxas que habitavam as cavernas e grutas que pontilham os arredores. As lendas falam de grandes Aquelares, verdadeiros concílios de feiticeiras que viajavam de longe para participar de rituais profanos. Dizem as lendas que essas reuniões atraiam bruxas de toda Espanha que no período em que estavam juntas incidiam em todo tipo de comportamento lascivo e diabólico. Uma de suas práticas era atrair homens para ter com eles conjunção carnal que seria abençoada pelo próprio Diabo gerando bebês malignos. Outra atividade muito temida dizia respeito a Invocação de espíritos que eram então presos em formas animais, os chamados familiares


Esses sabás de feitiçaria eram tão grandes e contavam com tantas participantes que dizem as lendas as montanhas se iluminavam com as fogueiras acesas pelas bruxas e ressoam com sua cantinela agourenta noites à fio.

Em algum momento do século XIII, um nobre decidiu dar um fim na algazarra e ordenou a construção de um Castelo para proteger a região. O lugar abrigaria um contingente de soldados cuja função era coibir o Aquelare. Supõe-se que deu certo, as vruxas teriam desistido dos seus encontros. Contudo, há dúvidas sobre a própria construção da fortaleza. Para começar, o formato dela já atrai certo grau de suspeita, visto que ele é um hexágono perfeito - o número cabalístico da feitiçaria. Além disso, há uma lenda de que ninguém sabe como o castelo foi construído, o rumor é que ele surgiu da noite para o dia, façanha de um feiticeiro chamado Mutamín que detestava as bruxas que viviam nas montanhas. O povoado começou a se desenvolver pouco depois, colado nos muros do castelo que fornecia proteção aos camponeses.

A fama de assombrado acompanha o Castelo de Tremoz desde sua construção, com relatos de fantasmas habitando seus salões, Torres e o pátio. Não são poucos os que relatam ruídos estranhos e sons anômalos de pancadas surdas e correntes, além de sussurros que parecem vir da masmorra que um dia existiu em suas fundações. 

Segundo historiadores, muitos dos rumores sobre assombrações teriam sido criados pelos próprios habitantes do lugar. Houve um tempo em que o castelo abrigava um covil de criminosos que cunhavam moedas falsificadas com prata e cobre extraídos das montanhas. Para evitar que alguém viesse bisbilhotar, os falsificadores inventaram histórias sobre a presença do sobrenatural rondando a construção. O plano funcionou e as pessoas que viviam no vilarejo evitavam o castelo acreditando que ele era um antro fantasmagórico. 

Infelizmente, os rumores parecem ter funcionado bem demais e pelo século XV o reposisionado cerca de um quilômetro e meio para longe do Castelo pois ninguém queria viver próximo a ele. A coisa chegou ao ponto em que os monges da cidade vizinha de Veruela decidiram excomungar Trasmoz e todos aqueles que lá viviam.

A fricção entre o povoado e a Abadia de Veruela continuou por muitos anos, levando a um episodio bizarro. Historicamente Trasmoz controlava um rio o que lhe permitia cobrar taxas daqueles que desejavam apanhar água ou pescar. Os monges não aceitavam isso e objetavam afirmando que uma cidade banida pela Igreja não deveria ter direitos sobre o rio assegurados. Apesar das cortes espanholas reconhecerem o direito de Trasmoz, a Igreja Católica achava aquilo uma afronta. Em um sério encontro distúrbio três monges foram até o rio e começaram a excomungar os cidadãos de Trasmoz. É claro, estes não gostaram nada daquilo e a coisa evoluiu rapidamente para violência. Dois dos religiosos acabaram sendo afogados nas águas.

O fato foi levado até o Papa Júlio II que decidiu punir Trasmoz lançando sobre o lugar uma maldição cristã raramente usada, o infame Salmo 108 um dos únicos trechos da Bíblia que menciona uma maldição divina.

Foi após essa terrível maldição ser lançada que o declínio mais acentuado de Trasmoz teve início. 


As lendas mencionam longos períodos de fome e seca onde colheitas inteiras foram perdidas. Também houve uma sucessão de epidemias devastadoras, culminando com a peste negra que contagiou boa parte dos habitantes. Finalmente em 1520, um incêndio colossal destruiu o Castelo de Trasmoz causando morte e destruição. Os sobreviventes relataram não apenas um fogo de grandes proporções, mas também criaturas de chamas vivas (para alguns demônios) que causaram a conflagração. Após esse incidente traumático, a população começou a diminuir, com muitas pessoas acreditando que o vilarejo não era mais um lugar seguro para se viver.

Com o tempo, Trasmoz foi sendo abandonada até que hoje em dia não resta nada além de ruínas decrépitas, ruas de calçamento rachado e terrenos vazios onde cresce o mato. Para todos efeitos, é uma cidade fantasma, ainda que alguns poucos indivíduos insistam em viver ali apesar da história sinistra e da aura assustadora que recai sobre o local.

Curiosamente, a maldição papal pesando sobre Trasmoz jamais foi removida, e portanto o lugar continua sendo o único assentamento totalmente excomungado da Espanha. Em termos teológicos, Trasmoz está além da proteção divina, é um lugar em que a Igreja não entra (até hoje não há um templo ou pároco) e teoricamente onde Deus não habita. Essa fama, fez da cidade uma espécie de paraíso para bruxas e feiticeiros. Já no século XIX havia a crença de que os únicos que viviam no lugar eram indivíduos que não ligavam para o fato de terem sido alijados da proteção divina e que, portando, viviam além da proteção de Deus. 

Curiosamente em tempos mais recentes, Trasmoz passou a abraçar sua herança profana, declarando-se "O Povoado mais Herético da Espanha" e recebendo a visita de bruxas modernas. Incidentalmente, o lugar recebe anualmente um dos maiores encontros de wiccans da Europa, além de outros festivais de paganismo e feitiçaria como o já tradicional Feria de Brujeria. Essa reputação trouxe muitos turistas para esse pequeno vilarejo, com uma história obscura fazendo a sua fama como a cidade mais herege da Espanha.

Mas esse não é o fim de nossa viagem... ainda há mais.

Um comentário:

  1. Não costumo comentar por aqui mas estou sempre lendo. Você é um dos poucos bastiões que mantém a internet clássica viva, com textos e posts de verdade, bem escritos, bem pesquisados e que não está só enchendo a internet de lixo. De verdade, se um dia esse site morrer, um pedaço de mim vai morrer comigo.

    Por favor, continue publicando sempre! É um prazer poder ler suas matérias.

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