Localizada no litoral do estado de Massachusetts, apenas a alguns quilômetros de Salem, Kingsport fica a pouco mais de 10 quilômetros ao sul de Arkham. A cidade pode ser acessada a partir da Peabody Avenue no sentido oeste da cidade por intermédio da rodovia interestadual A1. É uma viagem tranquila com belas paisagens de praias e rochedos.
A cidade está aninhada em uma depressão em formato de ferradura que margeia a Baía de Kingsport com suas águas profundas e escuras. Para o norte se ergue uma cadeia de penhascos rochosos que culminam na estonteante Kingsport Head (o ponto mais alto da cidade). Para o oeste e sul da cidade há um bom número de montes. O maior deles, chamado Monte Central, é onde os antigos cidadãos enterravam seus mortos e a base para um sem número de lendas e superstições. A pouco mais de dois quilômetros mar adentro jaz o Recife de Jersey que protege a cidade das devastadoras ondas do Oceano Atlântico.
As ruas de Kingsport são estreitas e sinuosas, torcendo-se abruptamente através de aclives para formar um labirinto de passagens e caminhos difíceis de navegar. Edificações estão alinhadas em diferentes alturas e ângulos, distribuindo-se ao longo das ruas lado a lado. Boa parte desses prédios e casas são antigos, remontando ao período colonial, particularmente no Monte Central e nos distritos ao norte do porto e das docas. Muitos deles tem o típico estilo de construção inglesa do século XVII com arquitetura georgiana do período.
Digna de nota é a estranha casa de um cômodo que se ergue no alto da Kingsport Head em uma altura considerada inacessível para os habitantes. Pergunte a qualquer morador e ele dirá que a casa sempre esteve lá, pendendo perigosamente no alto de uma ravina. Desde que Kingsport foi fundada, ela existe. Quem a construiu, como e com qual propósito, é tema de debate. Fala-se de um eremita misterioso que teria erguido a casa, de uma congregação de bruxas que lá se encontrava e de um misterioso ancião que viveu, e ainda viveria lá à despeito da passagem dos séculos. Apesar das muitas teorias, a casa continua lá, e muitos defendem que sempre estará. O marco é famoso pelas muitas lendas e pelas histórias que a cercam.
Kingsport tem um clima similar ao de Arkham, mas tende a ser mais fria graças aos ventos oceânicos soprando do mar aberto. O sempre presente nevoeiro e a maresia tornam o ambiente ainda mais úmido. O nevoeiro aliás é uma das marcas registradas de Kingsport: denso e onipresente, ergue-se do litoral e se derrama sobre as praias, ganhando ruas e casas. Dizem que na calada na noite, as névoas cinzentas são tão volumosas que um andarilho não habituado pode se perder ou se descobrir estranhamente transportado de um lugar para o outro. Exagero naturalmente, mas fato é que as névoas são muito famosas e concedem a Kingsport o apelido de "Cidade das Brumas".
No auge do inverno, as temperaturas podem cair consideravelmente chegando a zero, mas durante o dia é difícil que baixem dos 10 graus. A neve costuma chegar em meados de novembro criando um tapete branco nas ruas da cidade e se acumulando pelas ruas. No verão e primavera, Kingsport tem uma temperatura aprazível, com média de 25 graus, havendo registros de ondas de calor de 30 ou até mais. Essa temperatura elevada tende a atrair turistas e visitantes que buscam a cidade como um destino preferido para férias.
Kingsport é um balneário muito popular na Nova Inglaterra. As paisagens marinhas são atraentes e o cenário bucólico parece o ideal para quem deseja paz e tranquilidade. Nos meses de maio até julho multidões de visitante chegam para aproveitar as praias de areia escura e as águas de temperatura agradável. Pensões e Hotéis oferecem acomodações das mais sofisticadas até as mais modestas, enquanto restaurantes e cafés abrem suas portas para receber os turistas. A cozinha de Kingsport favorece um vasto menu de frutos do mar e peixe fresco pescado diariamente. Reservas feitas com antecedência tendem a ser necessárias para os meses de maior movimento, ainda que nos demais a procura caia vertiginosamente e alguns estabelecimentos fechem as portas com o fim da temporada. Considerada uma estância hídrica, Kingsport possui fontes minerais com propriedades terapêuticas. A lama escura das praias também ajuda na recuperação de várias enfermidades e não é estranho ver turistas se cobrindo de lama ou se enterrando até o pescoço na areia. Os locais olham incrédulos para os turistas enlameados abanando a cabeça negativamente.
Existe uma hierarquia social bem estabelecida em Kingsport. No topo da pirâmide estão as famílias mais antigas e tradicionais, incluindo sobrenomes notáveis como Norton, Weiss, Cabot e Pickering. Todos estes fizeram suas fortunas com a indústria pesqueira que ainda constitui a atividade principal da cidade e a principal fonte de lucro. Mais recentemente os Turner, outra família proeminente, construiu fortuna com comércio, enquanto os Mercer ergueram um império com construção naval. Os membros mais antigos da sociedade se orgulham da história de seus antepassados e são capazes de traçar sua árvore genealógica até o velho continente. Muitos deles vivem nas decadentes mansões e casarões que pertenceram a gerações de seus antepassados.
Há uma pequena e afluente classe média formada por profissionais liberais, com advogados, engenheiros e médicos que foram atraídos pela estabilidade financeira de Kingsport. A oferta de emprego é generosa e os salários tendem a ser satisfatórios. Essas pessoas vivem na parte alta da cidade em casas confortáveis com solários que deram origem a uma das vizinhanças mais atraentes da cidade. Aqueles que conseguem se acostumar com os ares provincianos fincam raízes na cidade, mas alguns acham os modos dos locais um tanto quanto estranhos.
No extremo oposto, próximo ao porto e das docas, residem operários e trabalhadores em pequenas casas de madeira que mais parecem cabanas. Os residentes com sobrenomes yankees são mais afortunados - tendo chegado primeiro, puderam escolher as áreas da cidade baixa que não estão sujeitas aos frequentes alagamentos. Os irlandeses, espanhóis e holandeses, seguido de italianos e portugueses disputam as áreas menos nobres formando pequenas comunidades etnicamente fechadas. Há poucos negros na cidade e menos ainda descendentes de asiáticos. Quase todas essas pessoas trabalham na indústria pesqueira, com cerca da metade deles fazendo a pesca propriamente dita e a outra parte tratando, limpando e empacotando frutos do mar.
Nas últimas décadas o ambiente cênico começou a atrair uma nova classe de habitantes que se estabeleceram na pequena cidade. São artistas de todos os tipos - de pintores a poetas, de escultores a musicistas que se sentem compelidos a buscar inspiração no balneário e que decidiram ficar e se tornar habitantes permanentes. Não é estranho encontrar nas ruas cavaletes com telas parcialmente completas ou grupos tocando violões ou dançando nas ruas. Alguns residentes locais se animaram com essa pequena comunidade, mas outros os veem como uma presença perniciosa e indesejada. Alguns os encaram como boêmios na melhor das hipóteses e como vagabundos, na pior.
Diferente dos muitos assentamentos soturnos que pontilham a geografia antiga da Nova Inglaterra, Kingsport parece um lugar consideravelmente mais amistoso e menos opressivo. A presença de turistas serviu para diminuir, ao menos em parte, a desconfiança intrínseca que é um dos traços do povo local. Em Kingsport é possível encontrar pessoas mais simpáticas e joviais, mas ainda assim, a cidade guarda sua parcela de estranheza e bizarrice. Com aproximadamente 30 mil habitantes, o balneário é um lugar pitoresco.
Mas nem tudo é o que parece ser, como veremos através da história de Kingsport.
Kingsport foi originalmente fundada em 1639 por fazendeiros e pescadores vindos do sul da Inglaterra e das ilhas do Canal Britânico. Um povo menos rígido que os puritanos que fundaram Salem, eles eram vistos como mais abertos e receptivos. O assentamento pioneiro surgiu na margem norte do porto, mas não demorou até outro se formar nas áreas mais elevadas e protegidas no entorno do Monte Central. Apesar da maior tolerância religiosa, os colonos de Kingsport também se viram dominados pela febre da caça às bruxas. Em 1698, apenas quatro anos depois da loucura que se espalhou por Salem, oito mulheres foram acusadas de feitiçaria, sendo que metade delas foram executadas. Conluio diabólico era a acusação principal.
Apesar desse evento traumático, a cidade seguiu se desenvolvendo, passando de um pequeno vilarejo pesqueiro a um centro de construção naval e porto de comércio marítimo. O comércio com a Europa trouxe riqueza para algumas famílias empreendedoras, mas as taxações impostas pela Coroa Britânica eram um obstáculo para o desenvolvimento da cidade. Os Capitães de Kingsport, um bando de destemidos homens do mar se aventuravam em jornadas distantes para os mares do sul em busca de novos mercados. O comércio com as Índias Orientais, China e África abriu as portas para enormes fortunas despejadas nos portos na forma de mercadorias exóticas trazidas do outro lado do mundo.
No final do século XVII e início do XVIII, o vilarejo se tornou um movimentada centro que se estendia por toda orla da baia. A margem sul foi aos poucos sendo ocupada e as pequenas casas deram lugar a enormes propriedades, chácaras e sítios. As empresas de fundo de quintal também cederam espaço para indústrias pesqueiras. Galpões de madeira se transformaram em enormes depósitos ladeando as docas apinhadas de marinheiros morenos falando várias línguas e dialetos. No porto, veleiros e cargueiros com bandeiras de nações distantes disputavam espaço para descarregar suas mercadorias. Foi uma época de grandes oportunidades para os bravos e empreendedores.
Durante os anos da Guerra Revolucionária, Kingsport foi o centro de muita atividade. Servindo como porto para vários corsários, os navios locais foram responsáveis pelo afundamento e captura de mais de cinquenta embarcações britânicas. Isso, combinado com o fato de que novos navios estavam sendo construídos rapidamente em Kingsport, fez com que o Rei George atacasse a cidade. Em 1778 uma armada de Navios de Guerra Britânicos bloqueou a cidade e abriu fogo contra o porto. Uma dezena de embarcações que estavam ali ancoradas foram destruídas, bem como alguns prédios que ruíram com a barragem de artilharia. Os patriotas de Kingsport, liderados por um corsário chamado Argus Blaine posicionaram canhões nos montes da cidade responderam ao ataque expulsando os invasores. Embora o porto tenha sido avariado pela batalha os navios de Sua Majestade foram obrigados a retroceder. Até os dias atuais bolas de canhão ainda são ocasionalmente desenterradas na cidade ou na lama das praias.
Após a Guerra, Kingsport teve um período de grande desenvolvimento com a Indústria Pesqueira que trouxe ainda mais fortuna para uma classe de hábeis capitalistas. À luz da Revolução Industrial, a cidade começou a desenvolver outras atividades mercantis com o surgimento de empresas explorando tecelagem, confecção e aviamentos. Kingsport, entretanto, continuou casada com o mar, confiando largamente na pesca e comércio marinho como fonte primária de sua riqueza.
O século XIX trouxe os primeiros sinais de revés para a economia local. Numerosas restrições mercantis impostas pelo governo criaram obstáculos para os negócios com a Inglaterra e França. Com o comércio estrangulado e sanções para os que tentavam burlar as leis, muitos capitães locais se entregaram a pirataria criando uma péssima imagem para os navegadores locais. Em 1816, a marinha bloqueou a entrada da baía em perseguição a capitães acusados de terem se tornado piratas. Alguns homens do mar foram capturados, julgados e enforcados nas docas para horror da população local.
Em 1835 veio um grande golpe que impactou a economia local de forma decisiva. A construção de um grande porto em Gloucester desviou parte das embarcações para essa enseada mais tranquila que se tornou um enorme mercado para o rentável negócio de caça de baleias. Pouco depois, o Porto de Boston também foi expandido e modernizado fazendo com que Kingsport se tornasse cada vez mais obsoleto. Por algum tempo considerou-se trocar o nome da cidade para Georgetown, mas a ideia foi abandonada, sobretudo depois que muitos residentes se mostraram ressentidos coma forma como eram tratados pelo novo governo.
Para piorar as coisas, desastres naturais se somaram aos problemas econômicos. Fortes tempestades varreram a costa em 1847 e 1852 destruindo parte da frota pesqueira e arrasando a indústria que já se encontrava decadente. Tempestades estranhas, que pareciam se erguer repentinamente atingindo com vigor a cidade passaram a ser uma ocorrência frequente e alguns dos marinheiros supersticiosos culpavam a ousadia de alguns capitães audaciosos que exploravam os mares em busca de riquezas.
A Guerra Civil deu um novo alento a Kingsport, e nos dias do conflito entre os Estados a cidade contribuiu com a causa da União fornecendo embarcações que foram reforçadas e guarnecidas de canhões. Um total de 17 homens perderam suas vidas, todos eles travando batalhas em alto mar. Nos anos que se seguiram à guerra, parecia que o mar havia virado suas costas para Kingsport. Uma nova série de poderosas tempestades causaram grandes danos entre 1878-1888. Muitos prédios foram avariados e alguns cidadãos perderam suas vidas em inundações.
No início do século XX, a má sorte de Kingsport parecia continuar. Em 1905, uma devastadora epidemia de febre tifoide que começou em Arkham atingiu a cidade colhendo várias vítimas. Em 1920, foi a vez da Gripe Espanhola mostrar sua face nefasta. Hospitais foram construídos às pressas e sanatórios surgiram para combater a doença. Um dos únicos lados positivos é que eles foram mantidos posteriormente e se tornaram institutos de ponta.
Nos últimos anos, o desenvolvimento do turismo deu um alívio à combalida economia da cidade e atraiu investimentos. Mesmo nos anos austeros da Grande Guerra, Kingsport manteve sua recém conquistada estabilidade. Embora a pesca ainda seja a atividade principal, discute-se que o turismo possa nos próximos anos se tornar a fonte principal de divisas.
Mas essa é apenas a história conhecida de Kingsport.
Há segredos fervilhando e acontecimentos aterrorizantes tanto no mundo desperto quanto nas sendas oníricas da Terra dos Sonhos. Lugares ermos, assombrados e tenebrosos, além de indivíduos perigosos, cultos e sociedades secretas operando nas sombras. Kingsport é um lugar de maravilhas e horrores inenarráveis, como veremos na continuação desta série sobre a Cidade das Brumas.