Nos meandros de Kingsport, sonhos e realidade se misturam.
A Cidade das Brumas esconde um sem número de segredos e mistérios. Ocultos sob as névoas cinzentas permeiam horrores e maravilhas impronunciáveis que escolheram se abrigar nesses recantos lúgubres e cenários idílicos. Este é o lar de pescadores e de artistas, marinheiros e empreendedores. De pessoas atraídas por sonhos e de outras prisioneiras de pesadelos. Alguns encontram consolo nos sonhos, outros acham neles tão somente terror e morte.
Em Kingsport convivem cultos ancestrais de feiticeiros, coisas profanas que habitam a fronteira dos sonhos e personagens peculiares de um passado remoto, cuja existência se estende de modo não natural por décadas à fio.
Os membros mais antigos daquilo que muitos chamam de Culto de Kingsport chegaram a essa terra por volta de 1640, acompanhando os primeiros colonos que se estabeleceram na região. Essas famílias originalmente habitavam as Ilhas do Canal Britânico, mas eram provenientes do sul da Europa. Sem que os vizinhos soubessem, eles haviam sido expulsos de sua terra natal após sofrer perseguições pelas suas crenças nefastas. Eles cultuavam uma divindade obscura e maligna: um Deus de chamas esmeralda que habitava um grande complexo de cavernas abaixo da Lombardia e do Languedoc (respectivamente na Itália e na França).
Esses devotos haviam aprendido rituais e práticas que os levaram a uma trilha de completa corrupção, não apenas da alma, mas da própria humanidade. Tal corrupção promovia a liberdade das limitações do corpo e da mente, além de sedutoras promessas de vida eterna. Eles honravam os poderes negros da Chama Esmeralda com celebrações tão blasfemas quanto nauseantes. Haviam aprendido com seus ancestrais a arte da necromancia e dos augúrios da morte. Eram feiticeiros poderosos detendo em suas mãos ambiciosas o poder de perverter a natureza para operar milagres de magia.
O Deus Exterior a quem rendiam devoção era chamado de Tulzcha. Ele se manifestava na Terra como um imenso pilar de fogo vivo com uma coloração verdejante doentia. Nas chamas rodopiantes surgiam faces cadavéricas e formas dantescas. Auxiliado por uma congregação fanática disposta a honrar seu Senhor com sacrifícios e rituais pérfidos, Tulzcha obtinha sustento, drenando energias necróticas que lhe eram ofertadas. Para isso usava vermes que se alimentavam da carne dos mortos que apodreciam em suas tumbas. Onde quer que o Deus se manifestasse, esses vermes pálidos e inchados o seguiam em quantidade absurda brotando do solo como uma infestação apocalíptica.
Em troca de sua nutrição, Tulzcha recompensava os seguidores com uma existência longa e sobrenatural. Quando um cultista finalmente morria e era considerado valoroso pela divindade, seu corpo era levado a um dos fossos onde pululavam seus Vermes. Após passar por um extenso ritual de preparação, o corpo era mergulhado nesse fosso para que as criaturas cobrissem e devorassem inteiramente a carcaça. No processo simbolicamente também se alimentavam de sua alma e espírito. Em seguida, esses vermes que haviam digerido o cadáver por inteiro eram misticamente conectados desenvolvendo autoconsciência e conservando as memórias do morto. Eles se arrastavam para fora do fosso como uma horrenda nova forma de vida composta de milhares de pequenas criaturas, cada uma carregando uma parcela de sua vivência. Assumindo uma forma mais ou menos humanoide, esses horrores genericamente conhecidos como "Aqueles que Rastejam" podiam se passar por humanos vestindo mantos para esconder suas feições hediondas.
Não por acaso essas práticas repulsivas inspiravam revolta e faziam com que o culto fosse expulso mesmo da terra dos etruscos onde uma infinidade de seitas, cada uma mais medonha que a anterior, floresciam. Tornaram-se párias sem uma terra e por isso acabaram se estabelecendo nas Ilhas do Canal Britânico. Quando a notícia de que uma vastidão territorial havia sido descoberta, os cultistas da Chama Esmeralda se misturaram ao fluxo de colonos que desejavam tentar a sorte no Novo Mundo. Ao menos três famílias de devotos empreenderam a viagem e ajudaram a fundar a Vila pesqueira batizada como Kingsport.
Não demorou para que estes cultistas encontrassem as cavernas existentes abaixo do Monte Central. É possível até que eles tenham sido levados até elas por sonhos ou projeções mentais de Tulzcha que ansiava por firmar raízes nessas terras inexploradas. O interior oco, repleto de passagens estreitas que levavam às entranhas da terra, era ideal para seus propósitos. Nesse antro subterrâneo os cultistas renovaram suas práticas e invocaram a Chama Esmeralda uma vez mais. Tudo isso acontecia enquanto posavam de respeitáveis cidadãos, comparecendo às missas e reuniões sociais da cidade, jamais fornecendo aos seus vizinhos motivos para suspeitas. A medida que as gerações passavam, membros da seita casavam e se misturavam com as demais famílias de Kingsport permitindo ao culto se expandir. Por volta de 1692, aproximadamente um em cada dez pessoas vivendo na cidade, tinha envolvimento com o Culto.
Mas nem sempre as coisas funcionavam conforme eles desejavam.
Um cultista que virou as costas para a seita foi um navegador e explorador chamado William Haines, descendente das famílias fundadoras de Kingsport. Durante uma viagem às Índias Orientais ele descobriu a existência de Seitas similares à que operava em sua cidade natal e se sentiu enojado por algumas práticas extremas. Em 1690, Haines retornou de viagem, vendeu suas terras e denunciou os cultistas para autoridades religiosas no povoado vizinho de Salem. A reação foi imediata, os pastores se sentiram ultrajados com as denúncias e exigiram uma investigação. Oito mulheres foram presas, acusadas de conluio demoníaco, contudo provas só foram encontradas contra quatro. Metade delas foram sentenciadas à morte e as demais libertadas.
Embora a população estivesse assustada, ela era bem mais tolerante que seus vizinhos de Salem. Após as execuções, a comunidade não tinha estômago para novas mortes. Declarou-se que o mal havia sido extirpado do seio da comunidade e que não havia mais razão para perseguições de qualquer tipo. Mal sabiam que os cultistas ainda estavam vivendo secretamente entre eles, dando margem a planos que começavam a frutificar.
Ainda que a maior parte da população ignorasse as práticas que ocorriam no povoado, era inegável que havia algo sinistro na cidade. Temiam o cemitério do Monte Central considerando um lugar maldito. Passaram a enterrar seus mortos mais além, num terreno a oeste, permitindo que o complexo de cavernas ficasse totalmente à mercê dos cultistas. Havia suspeitas de encontros sinistros ocorrendo nesse lugar e para dissimular as atividades, os cultistas ordenaram a construção de um templo - a Igreja Congregacional cuja fachada era de um tabernáculo convencional de inclinação protestante. Contudo, abaixo da Igreja haviam túneis e caminhos tortuosos que se conectavam ao Monte Central e às câmaras onde ardia a Chama Esmeralda. Dezenas de cultistas se reuniam ali sem chamar a atenção e sem serem perturbados.
Apenas em meados de 1720, rumores sobre uma Seita Secreta vieram à superfície novamente. Uma das acusações era que pessoas que participavam do culto tinham uma existência incrivelmente longa, com muitos sendo octogenários ou nonagenários sem no entanto aparentarem ter mais de 50 anos. Outra suspeita surgiu quando uma epidemia de estranhos vermes eclodiu do solo escuro ao redor do Monte Central chocando a população.
No inverno de 1722, durante uma celebração com as portas fechadas na Igreja Congregacional, algo maligno foi testemunhado por vários cidadãos. Eles descreveram o surgimento de uma nuvem verde pestilenta que se manifestou nos céus de Kingsport como uma presença diabólica. Dela emanava uma luz verdejante que se derramava pelo firmamento com um brilho espectral. Esse fenômeno foi acompanhado de sons guturais e tremores vindos das profundezas do Monte Central. Um contingente de bravos voluntários - membros da milícia, marinheiros e pescadores - foi reunido pelo prefeito Eben Hall e estes cercaram a Igreja armados com mosquetes. Na manhã seguinte, quando os cultistas abriram as portas receberam ordem de prisão. Levados sob custódia, três dúzias de pessoas - muitas delas, cidadãos acima de qualquer suspeita, foram acusados de práticas anticristãs, roubo de sepulturas e outras práticas perniciosas. Multas, prisão e banimento foram as penas impostas, uma punição leve, mas que serviu para quebrar a espinha dorsal do culto.
Certos livros estranhos e outros itens suspeitos foram confiscados e destruídos em fogueiras após analisados, enquanto outros foram encaminhados à autoridades acadêmicas em Arkham para serem avaliados. A estrutura da Igreja Congregacional foi cuidadosamente explorada e os túneis subterrâneos de onde emanava um fedor nauseabundo foram selados com paredes de tijolos. As criptas, apinhadas daqueles horrendos vermes inchados também foram lacradas para que ninguém tivesse acesso a elas. A despeito das acusações nenhum acusado chegou a enfrentar a pena capital e um número surpreendente deles continuou a viver em Kingsport, ainda que fossem vistos com desconfiança. A influência de Tulzcha diminuiu, mas não desapareceu por completo. Embora apenas um pequeno grupo de cultistas ainda atendesse às reuniões secretas no Monte Central, eles conseguiram preservar sua religião profana agindo de forma muito discreta.
Por volta do século XIX, a história sobre a existência do culto se converteu em uma espécie de rumor quase que inteiramente apagado da memória dos habitantes. A Igreja Congregacional foi convertida em uma Igreja anglicana tradicional que assumiu o controle do local, ainda que boatos sobre sons estranhos e o surgimento de vermes pálidos fossem reportados de tempos em tempos.
Traços do velho culto ainda se fazem presentes em Kingsport para quem quiser ver.
Reuniões clandestinas na calada da noite continuaram acontecendo nos túneis e por vezes a comunidade se mostrava chocada com a descoberta de sepulturas violadas. O rumor de que algumas famílias antigas descendem de idólatras e satanistas é uma espécie de tabu local. Fala-se que alguns clãs importantes possuem bruxas e feiticeiros entre seus antepassados, mas a maioria desconsidera essas lendas como mera fofoca. A sétima casa à esquerda da Green Lane, uma construção da época colonial supostamente foi o lar de um poderoso membro do Culto - considerado um feiticeiro. Os supersticiosos de Kingsport afirmavam que a casa é assombrada e que algo não humano vive no porão espreitando na escuridão. Em 1890 houve uma tentativa de desmanchar a casa, mas a ordem de demolição não foi cumprida.
As frequentes inundações de atormentam Kingsport revelaram coisas estranhas enterradas no solo escuro, abundantes ossadas de crianças e até bebês infestam aterros. Alguns suspeitam da existência de um velho cemitério que recebia ossadas de bebês abortados e crianças não batizadas, mas alguns suspeitam de coisas mais sinistras. Os marinheiros falam sobre luzes esverdeadas vistas de longe, como auroras boreais que iluminam o céu noturna e pintam as névoas com um tom venenoso. Em 1905, agentes de saúde que estavam na cidade para combater a epidemia de febre tifóide notaram a presença de vermes de aspecto bizarro brotando nos arredores da Igreja Congregacional. Quando uma sepultura coletiva foi escavada para dispor dezenas de vítimas da Gripe Espanhola de 1922, esses mesmos vermes, alguns de tamanho surpreendente foram achados no solo e outro local foi escolhido para a realização do enterro.
O Culto existe ao longo dos anos 1920-30, ainda que em um nível bem mais discreto.
Apenas alguns membros do Culto do Fogo Esmeralda residem em Kingsport, talvez menos de duas dúzias de indivíduos. Muitos deles viajam pelo mundo buscando obsessivamente satisfazer suas vontades e servir seu senhor. Os membros do Culto raramente se reúnem, reservando esses raros momentos para ocasiões em que algum Ritual vital precisa ser cumprido. O Festival de Solstício, uma as datas mais solenes para o Culto, tende a atrair centenas de cultistas até Kingsport para um enorme ritual que ocorre bem abaixo do Monte Central. Nele, necromancia e necrofilia do pior tipo tem lugar em câmaras subterrâneas iluminadas por luz verde e cobertas por um tapete de vermes de cemitério se contorcendo.
Dois tipos de cultistas existem em Kingsport. A maioria deles são humanos comuns que descendem de uma longa linhagem de seguidores fiéis. Eles seguem as crenças de seus ancestrais, pois foram criados com esse intuito. Alguns forasteiros que descobriram o Culto acidentalmente ou pesquisando a história da cidade também já foram convidados a se juntar ao grupo e aceitaram. Esses indivíduos auxiliam o culto reunindo informações, viajando ou lidando com ameaças menores. São membros que ainda estão estabelecendo seu papel no culto e conhecem seus segredos mais superficialmente. Eles precisam ganhar a confiança dos membros mais antigos para escalar na hierarquia da seita. Conhecimento arcano, a promessa de benefícios e vida eterna podem ser oferecidos para mantê-los motivados a servir seus mestres.
Os membros mais influentes do Culto do Fogo Esmeralda provaram seu valor perante Tulzcha e receberam uma ou mais de suas recompensas. Muitos deles morreram há séculos e foram trazidos de volta à existência física como uma massa coalescente de vermes. Estas abominações renascem com um conhecimento profundo dos segredos mais funestos da vida e da morte, também recebem poderes místicos e são capazes de viver eternamente. É claro, eles não podem transitar livremente pela cidade sem chamar a atenção e por isso ficam ocultos comandando seus asseclas. Nas raras vezes que deixam seus covis subterrâneos, eles usam pesados mantos sobre seus corpos convolutos e máscaras de cera que disfarçam feições humanas. Estes feiticeiros tem uma existência guiada pelo desejo de poder e de controlar quem está à sua volta. Eles servem o Fogo Esmeralda com uma dedicação inquebrantável e são implacáveis em todos os seus atos. Desafiá-los constitui, portanto, imenso perigo.
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