quinta-feira, 11 de abril de 2024

Lutando até o último homem - A lenda dos corajosos 21 Sikhs


"Em menor número e cercados
Ainda assim eles seguiram lutando
Com teimosia e orgulho pelo qual
Os Sikhs ficariam conhecidos".

A notável defesa de uma pequena, ainda que essencial fortaleza em Saragarhi é um dos maiores e mais famosos relatos de bravura da historia militar do povo Sikh. A resposta feroz e a coragem de um grupo de 21 homens que mantiveram posição contra uma força esmagadora de inimigos talvez seja o maior exemplo da lendaria capacidade desses soldados.

Na India, a façanha ganhou status de lenda e se tornou um feriado nacional lembrado desde então. Assim como a resistência ferrenha dos Espartanos na célebre Batalha das Termopilas, a insana história de 21 guerreiros enfrentando uma horda de inimigos na Ásia Central recebeu contornos de mito, sendo relembrada em canções, poesias e mais recentemente filmes. 

Tudo aconteceu no final do século XIX, quando o Império Britânico era conhecido como "O Império em que o Sol jamais se põe", uma vez que dada sua extensão territorial e possessões, sempre havia um lugar onde o sol brilhava. Ao menos um quarto do mundo pertencia a Rainha Vitória que impunha sua vontade pela força de sua Marinha e Exército.

De todas as colônias britânicas além mar, a possessão mais valiosa era a Índia. O Raj Britânico governava a Índia extraindo dela incontáveis riquezas que fluíam diretamente para a metrópole inglesa. Navios mercantes faziam a rota do Oriente trazendo mercadorias inestimáveis que ajudavam a encher os cofres da Coroa Real. Por terra, os limites do subcontinente eram defendidos por uma série de fortalezas distribuídas ao longo das montanhas que faziam fronteira com o atual Paquistão e Afeganistão. 


Embora não fosse uma Fortaleza bem guarnecida e protegida, o Posto Avançado em Saragarhi era vital para manter as comunicações entre duas regiões ocupadas pelos Britânicos. Ele era ainda uma posição defensiva vital contra os clãs de Orazakai e Afridi, tribos de guerreiros ferozes que habitavam a Ásia Central. Famosas pela sua selvageria, essas tribos eram conhecidas por saquear além da fronteira, por matar homens, sequestrar mulheres e crianças para servi-los como escravos. Embora ainda estivessem restritos a armamento como lanças, espadas e eventuais armas de fogo ultrapassadas, eles eram um problema constante, sobretudo quando se encontravam em maior número. A tropa estacionada na fortaleza era bem treinada e disciplinada, formada em sua totalidade por soldados da etnia Sikh, um povo reconhecido pela sua seriedade e disciplina, considerado, não por acaso soldados extremamente valiosos para o Exército Colonial.

Os Sikhs já eram bastante prezados pelas suas habilidades marciais. Oficiais britânicos se referiam a eles como guerreiros implacáveis que lutavam com bravura e que jamais se  rendiam, mesmo diante de desvantagens evidentes. Tudo isso já era bem conhecido, mas a capacidade dos Sikhs seria testada ao limite quando as tribos inimigas celebraram uma aliança cujo objetivo era obliterar o controle do Raj e submeter o Oeste da India à sua vontade.

Na manhã do dia 12 de setembro de 1897, um vigia chamado Gurmukh Singh do 36o Regimento Sikh observou o horizonte e para sua surpresa viu um regimento de homens marchando sob bandeiras tremulantes com as cores de vários clãs inimigos. A multidão era assustadora. Um mar de homens levantando nuvens de poeira, conduzindo animais e bradando gritos de desafio para os soldados no pequeno forte. Qualquer soldado ficaria apreensivo diante dessa visão, ainda mais considerando que as tribos da Ásia Central não costumavam fazer prisioneiros, executando todos aqueles que caiam em suas mãos. Singh manteve a sua calma e correu para seu oficial imediato para dar as notícias. Quando perguntado quantos homens se aproximavam, ele disse de forma direta: "Mais do que eu consegui contar".


O oficial de patente mais alta era um sargento chamado Havildar Ishar. Ele subiu até a torre e observou por conta própria, estimando que a massa deveria contar com aproximadamente 20 mil homens. De forma atípica o bando estava equipado com rifles e canhões adquiridos para impulsionar o avanço pelo território do Raj. A guarnição estacionada no forte e comandada pelo sargento contava com apenas 20 homens.

Havildar convocou a guarnição para uma reunião de emergência. Diante dele, no minúsculo pátio cercado por um muro de barro e pedra, estavam os membros do 36º Destacamento Sikh. Calmamente, sem demonstrar qualquer sinal de medo em sua voz, o suboficial contou às suas tropas que elas eram provavelmente o único bastião de defesa entre aquela multidão fervilhante de guerreiros sedentos de sangue e o coração da Índia. Os 21 soldados eram a única coisa capaz de conter uma invasão coordenada que certamente pegaria o Raj de surpresa e que causaria estragos em todo o país. Havildar disse que embora a guarnição estivesse em desvantagem colossal, ele não estava disposto a entregar a posição, ainda que eles não tivessem chance de sobreviver. Sendo um comandante justo, ele deu aos homens uma  escolha: aqueles que quisessem tentar fugir poderiam fazê-lo escapando por uma passagem no portão.  Mas aqueles que ficassem para defender a Índia contra esta invasão teriam a chance de morrer bravamente em batalha. Ele colocou a questão em votação para seus comandados.

Todos os vinte homens decidiram ficar.

A calma que antecedeu o avanço foi marcada pelos Sikh se preparando para empreender uma resistência ferrenha. Os soldados se distribuíram pelas muralhas com cartuchos de munição que haviam sido entregues na semana anterior e que deveriam ser distribuídas por outras guarnições na região. Os soldados dispunham de rifles Martini-Henry, a arma mais eficiente do exército britânico na época, além de um estoque considerável de munição. Uma semana antes a guarnição havia recebido um carregamento de pólvora e balas que seriam compartilhadas com as demais guarnições servindo ao longo da fronteira. O Regimento tinha treinamento com essas armas e sabia bem como utilizá-las no máximo de suas habilidades.


Um ultimato exigindo a rendição da fortaleza foi transmitido por um mensageiro. O sujeito se aproximou envergando uma bandeira branca com a intenção de descobrir quantos soldados estavam mantendo a posição. Ele teria gargalhado quando constatou que eram apenas duas dezenas de homens e que eles dispensavam sua proposta. O mensageiro retornou aos seus chefes afirmando que os defensores deviam ser loucos ou que estavam alucinando.

Por volta das 9 horas, o primeiro movimento de ataque foi sinalizado. Havildar Singh emitiu a ordem para que seus soldados atirassem à vontade, e os 21 homens do 36º Sikhs deram início a uma das resistências mais épicas da história militar. Um soldado do exército regular disparava uma média de 7 vezes por minuto, mas acredita-se que os Sikhs conseguiam executar até 16 disparos em menos de 60 segundos. Junte a isso uma precisão mortal que maximizou os danos produzidos.  

Os Orakazai e Afridi fizeram o tipo de coisa que você esperaria de uma força esmagadoramente superior atacando um pequeno posto avançado com uma vantagem absurda. Eles atacaram ao estilo do Imperador Xerxes, tentando atropelar os defensores lançando onda após onda de homens contra as paredes. Essa horda gigantesca de fanáticos imaginou que iriam arrasar completamente os Sikhs. Mas não foi bem isso o que aconteceu!

Contrariando toda a lógica, os defensores conseguiram conter a primeira onda de guerreiros abatendo centenas deles. Os Orakazai se lançaram contra as muralhas de Saragarhi, usando escadas e cordas para tentar escalar o paredão de 9 metros de altura. Os chefes tribais não queriam gastar munição e por isso enviaram a tropa sem apoio de artilharia e com poucos rifles. Esse foi seu maior erro!

Com os soldados atirando sem parar de suas posições defensivas, a ofensiva acabou sendo rechaçada. Em meio a confusão, os invasores começaram a recuar tropeçando em cadáveres e feridos que se amontoavam sangrando e engasgando. A nuvem de fumaça produzida pela pólvora deflagrada criava um fog cinzento que pairava no alto das muralhas.


Os Sikh ganharam confiança e bradaram desafiadoramente para os inimigos. Um soldado chamado Gurmukh que era sinaleiro da guarnição se destacou. Ele se posicionou no alto da torre de vigília com um rifle de mira telescópica, uma tecnologia recém criada e uma sacola com 500 projéteis. De lá começou a alvejar os chefes tribais que observavam de uma distância que julgavam segura - mas que se provou ilusória. Segundo testemunhas, ele teria abatido mais de 50 homens com disparos precisos sempre visando a cabeça de seus alvos.

A segunda investida veio algumas horas depois, iniciada por uma salva de canhões que visava derrubar as muralhas. Felizmente para os Sikhs, as paredes da fortaleza se provaram extremamente resistentes e resistiram. Em seguida, uma unidade de ataque avançou recebendo cobertura de atiradores. Mas apesar de contar com armas modernas as tribos não tinham muita familiaridade com esses rifles e se mostraram pouco eficientes. Os defensores atiravam sem parar e novamente, contrariando toda lógica, conseguiram conter o segundo avanço expulsando os inimigos.  

Claro, eles sofreram algumas baixas, mas mesmo os feridos continuaram a dar apoio atrás das ameias carregando armas, arremessando bombas de pólvora preta ou derrubando as escadas que eram escoradas nas paredes. O mensageiro veio novamente ter uma conversa com os defensores, elogiando sua bravura e prometendo que eles seriam poupados se depusessem as armas. A resposta partiu de um dos defensores que estourou a cabeça do negociante como um melão.

Sem um acordo, a terceira investida veio cinco horas mais tarde com uma enorme multidão de guerreiros furiosos avançando feito um enxame.

Eventualmente, os Sikhs acabaram sendo dominados pelos inimigos atacando de todos os lados. Um bando conseguiu transpor os muros de uma seção menos protegida e deu início a um incêndio. Com as posições cobertas por uma densa fumaça e os Sikhs preocupados em extinguir as chamas, o restante das tropas inimigas conseguiu romper os portões do forte e invadir o pátio.


Mesmo com as paredes da fortaleza desmoronando e fumegando num verdadeiro inferno, os Sikhs não se renderam. Havildar Ishar ordenou que os homens que ainda estavam lutando recuassem para a seção interna do forte, barricassem as portas e continuassem a disparar contra os atacantes que agora pululavam pelas muralhas. O próprio sargento não conseguiu se refugiar - em um esforço para ganhar tempo para seus homens, ele sacou sua espada curva e se lançou contra a horda morrendo em combate corpo a corpo.

Mesmo com o comandante morto e o forte em chamas, os Sikhs continuavam a combater com todas as suas forças. Não demorou muito para que o inimigo encontrasse um ponto fraco nas defesas internas – um frágil portão de madeira. Mas mesmo assim, quando os homens da tribo abriram uma brecha para invadir a defesa final, se depararam com um punhado de sikhs furiosos com baionetas fixas e expressões determinadas. A luta ali dentro atingiu novo grau de selvageria. Os guerreiros tribais decidiram então retroceder e atear fogo ao prédio. Num último ato de coragem, os seis Sikhs que ainda restavam deixaram a construção em chamas bradando "Deus é a Verdade" num derradeiro avanço. 

Todos eles morreram, mas venderam caro sua derrota. Quando o último deles tombou morto, havia uma montanha de inimigos retalhados, baleados e chocados pela resistência empreendida.

A defesa foi tão ferina que os guerreiros tribais tinham medo de entrar no forte e investigar as ruínas em busca de sobreviventes. Espalhou-se o boato de que os Sikhs não eram simples homens, mas Rakshasas - espíritos diabólicos com poderes sobrenaturais, tamanha a sua motivação.

Os defensores de Saragarhi foram vencidos, mas mantiveram sua posição por um dia inteiro atrasando o avanço massivo por tempo suficiente para que os britânicos reforçassem suas posições. Depois de Saragarhi, os Orakazai seguiram para o vizinho Forte Gulistan, mas o atraso custou-lhes o elemento surpresa - os homens no Forte Gulistan seguraram o ataque enquanto a recém-chegada artilharia pesada era preparada. Algumas centenas de projéteis explosivos bem no meio da horda inimiga acabou por frustrar o ataque.


Mais tarde, quando as tropas britânicas chegaram à Fortaleza semi-destruída encontraram os cadáveres dos 21 sikhs e algo entre 500 e 800 guerreiros tribais mortos. O número é debatido porque quando os britânicos apareceram, houve uma segunda rodada de combates pelo forte, e foi difícil dizer quantos inimigos foram mortos entre as duas lutas, mas presume-se que os Sikhs praticamente esgotaram seu estoque de munição e que cada um tinha pelo menos 400 disparos.

Quando a história dos defensores Sikhs de Saragarhi foi narrado no Parlamento, eles foram aplaudidos de pé por todos os membros do governo britânico. Todos os 21 Sikhs receberam a Grande Ordem de Mérito, a maior condecoração militar disponível para eles na época, e cada uma de suas famílias recebeu um terreno e uma recompensa em dinheiro pelos serviços prestados. 

A história é mencionada pela UNESCO como uma das oito grandes histórias de bravura coletiva na história da humanidade, e até hoje, todo dia 12 de setembro, o povo da Índia celebra o Dia de Saragarhi.

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