Horror Cósmico é um tema riquíssimo.
Ele é o tema central nas histórias do meu RPG favorito. Pode-se entender Chamado de Cthulhu como um banquete requintado no qual o Horror Cósmico é trazido para mesa: preparado, fatiado, servido e consumido sem moderação pelos convidados do Guardião.
Mas muitas pessoas interessadas em jogar ou mesmo narrar Chamado de Cthulhu, às vezes não tem uma noção muito clara do que é o Horror Cósmico, quais os seus princípios, seus fundamentos e as suas bases. E sim, você até pode jogar Chamado sem conhecer à fundo o Horror Cósmico, mas assim que você o conhecer e saber transmitir suas muitas nuances para os jogadores, suas histórias irão alcançar um novo patamar.
Eu não quero me colocar como um "especialista no assunto", mas já jogo e brinco de contar histórias envolvendo os Mythos de Cthulhu faz um tempinho, e portanto acredito ter uma ou outra ideia sobre como usar o Horror Cósmico em RPG. É claro, estas são ideias e conselhos, mas usar ou não, fica inteiramente a seu encargo. Se você prefere algo mais leve, algo mais "player friendly" fique à vontade para ignorar e investir naquilo que você e seu grupo se sentem mais à vontade.
Mas se você quer mergulhar de cabeça no Horror Cósmico, aqui tenho algumas sugestões, muitas delas bastante perversas, incômodas e que vão fazer os personagens (e quem sabe seus jogadores) encarar o que há de mais terrível e assustador no universo dos RPG. E se eles gostarem, vão voltar sempre...
Bem, antes de entrar na parte das sugestões, acho que é bom a gente definir em linhas gerais o que é esse tal de Horror Cósmico para começo de conversa. Ele não nasceu exatamente com a obra de H. P. Lovecraft, como a maioria das pessoas acredita, mas se Lovecraft não foi o primeiro a usar o horror cósmico, foi ele quem melhor o traduziu para a literatura. Lovecraft tomou emprestado noções vindas de Dunsany, de Bierce, Blackwood e de Machen, todos autores do século XIX que ele admirava.
Lovecraft sempre deixou claro que nada o deixava mais aterrorizado do que o imponderável desconhecido. E é justamente essa sensação que ele destilou cuidadosamente em seus contos.
O ponto central do horror cósmico lovecraftiano é a ideia de que o universo é incrivelmente vasto, absolutamente indiferente e completamente ininteligível para os seres humanos. Essa vertente do terror se baseia no desconhecido, no oculto e no imponderável. É aquilo que repousa além da fronteira que causa o verdadeiro pavor. Diferente de outros horrores, não se trata apenas de monstros assustadores, espíritos ou seres sobrenaturais, mas de algo mais profundo: a sensação de insignificância diante de forças incompreensíveis.
O Horror Cósmico é uma vertente do terror literário e filosófico que coloca o ser humano diante de forças que ele não é capaz de compreender. Seu coração não é apenas o medo de monstros, mas o pavor existencial frente a vastidão de um universo brutal em sua indiferença.
Enquanto outras formas de horror giram em torno do mal (um vampiro que seduz, um fantasma vingativo, um assassino cruel), o horror cósmico elimina até essa lógica moral. O universo, nesse paradigma, não é maligno nem benigno — o Universo apenas é. Ele independe totalmente da existência humana para persistir. Enquanto o terror clássico se baseia na percepção do indivíduo diante do horror, na essência do Horror Cósmico o ser humano é um observador impotente que sequer é capaz de descrever o que está diante dos seus olhos incrédulos. Sua participação ou sua passividade são inconsequentes no grande plano cósmico, ele estar ali ou não é algo desprezível.
Isso, por si só, é o maior dos horrores: a revelação de que a vida, a razão e a moralidade humanas, tudo aquilo que nos faz (em teoria) especiais e únicos não têm significado intrínseco. No Horror Cósmico, a raça humana é um acidente biológico: não há um Deus que nos criou, um mundo que nos pertence ou uma esperança de coerência no caos que sustenta as bases do universo.
O horror cósmico é também um contundente comentário existencial.
Ele reflete um niilismo profundo: a ideia de que o universo não tem sentido ou propósito definido. Lovecraft e seus sucessores exploraram esse vazio, antecipando temas que depois seriam delineadores do existencialismo filosófico.
Enquanto a maior parte da literatura de horror fala do antagonismo entre polos distantes: bem contra mal, o horror cósmico nos diz: "não existe bem, não existe mal, não existe centro — existe apenas o vazio imenso do cosmos.
Não se trata apenas de uma estética de deuses, criaturas e horrores indescritíveis com muitos tentáculos e olhos. O horror cósmico em sua essência surge de uma maneira de encarar a dureza do mundo. O verdadeiro terror não está num "inimigo", mas na percepção de uma realidade hostil aos sentidos, e que a mente humana se mostra incapaz de encarar na sua plenitude. Nesse contexto, apenas tentar compreendê-lo pode ser fatal.
O saber indescritível é uma espécie de radiação para a mente: uma energia que perverte a percepção, causa estupor e por fim obriga quem dela se alimenta a abandonar a racionalidade em benefício da completa insanidade.
O horror cósmico ressoa nesse ponto nevrálgico: quanto mais se "desperta" para a verdade, mais terrível ela se torna. A derradeira revelação não leva à liberdade (como em Camus ou Sartre), mas conduz à loucura e ao desespero. Filósofos mencionam um "salto de fé" como resposta ao questionamento do desconhecido — Lovecraft, materialista, nega essa saída de forma veemente.
O salto leva apenas ao abismo e a uma queda eterna.
Diferente das religiões tradicionais, em que o universo é ordenado por deuses que se importam, que criaram tudo e que vigiam sua obra, aqui o cosmos é uma máquina cega com engrenagens que não se encaixam perfeitamente. A cada giro dessa máquina colossal explodem faíscas e o ranger de um mecanismo prestes a se desmontar.
As entidades lovecraftianas (Azathoth, o deus idiota cego; Cthulhu, sonhando nas profundezas, Yog-Sothoth, o tempo e espaço, Shub-Niggurath a força do ciclo) são indiferentes e não poderiam se importar menos com nossa existência. Sua percepção para conosco é a mesma que temos de germes inócuos em uma bacia de poeira. Isso encontra eco nas ideias contemporâneas de cosmologia: somos apenas poeira cósmica em um universo que seguirá com ou sem a nossa presença, rodopiando no infinito perpétuo.
Ainda conosco?
Ainda interessado em se aprofundar nessas noções vertiginosas e descer rumo às latitudes dantescas? Então fique conosco, essa é a primeira parte de algo maior. Em seguida falaremos dos princípios que norteiam o horror cósmico e de como usá-lo em nossas mesas de Chamado de Cthulhu.
Ótima iniciativa, to ansioso pra continuar esse quadro e pegar dicas.
ResponderExcluirEspero que abordem como criar o clima de terror, como criar a atmosfera cósmica e levantar até através das eras (medieval, periodo romano, vitoriano, classico, atual)