domingo, 23 de novembro de 2025

A Médica da Fome - Os Horrores da Clínica do Jejum da Doutora Hazzard

Hoje, a pequena cidade de Olalla, a uma curta distância de Seattle, atravessando Puget Sound de balsa, é um lugar praticamente esquecido. Os poucos prédios em ruínas são um testemunho da luta dos agricultores, madeireiros e pescadores que outrora tentavam sobreviver entre as amoreiras e os abetos solitários. Mas, na década de 1910, Olalla esteve brevemente na primeira página de jornais internacionais por um julgamento de assassinato como a região nunca tinha visto antes ou depois.

No centro do julgamento estava uma mulher com uma presença formidável e um nome memorável: Dra. Linda Hazzard (um sobrenome curioso já que a tradução é "perigo"). Apesar de pouco treinamento formal e da falta de diploma em medicina, ela foi licenciada pelo estado de Washington como "especialista em tratamento de jejum". Seus métodos, embora não fossem exclusivos, eram extremamente heterodoxos. Hazzard acreditava que a raiz de todas as doenças estava na comida — especificamente, no excesso dela. "Apetite é Desejo; Fome é Desejo. O desejo nunca é satisfeio; mas o Desejo é aliviado quando a carestia é praticada", escreveu ela em seu livro publicado de 1908: "Jejum para a Cura da Doença".

O caminho para a verdadeira saúde, escreveu Hazzard, era deixar o sistema digestivo "descansar" periodicamente por meio de jejuns quase totais de dias ou mesmo semanas. Durante esse período, seus pacientes consumiam apenas pequenas porções de caldo de legumes, seus sistemas eram "limpos" com enemas diários e massagens vigorosas que, segundo as enfermeiras, às vezes mais pareciam surras.

Apesar dos métodos severos, Hazzard atraiu muitos pacientes. Uma delas foi Daisey Maud Haglund, uma imigrante norueguesa que morreu em 1908 após jejuar por 50 dias sob os cuidados de Hazzard. Ela nao foi culpada ou seu tratamento levantou qualquer tipo de questionamento. A doutora era tida como uma profissional respeitada. 

Suas pacientes mais lembradas, contudo, foram duas irmãs britânicas chamadas Claire e Dorothea (conhecida como Dora) Williamson, filhas órfãs de um abastado oficial do exército inglês.


Como explica o autor Gregg Olsen em seu livro "Alameda da Fome", as irmãs viram um anúncio do livro de Hazzard em um jornal enquanto estavam hospedadas no luxuoso Empress Hotel na Colúmbia Britânica. Embora não estivessem gravemente doentes, as duas sentiam que sofriam de uma variedade de doenças menores: Dorothea reclamava de glândulas inchadas e dores reumáticas, enquanto Claire fora informada de que tinha um útero caído. As irmãs acreditavam fortemente no que hoje poderíamos chamar de "medicina alternativa" e já haviam desistido tanto da carne quanto dos espartilhos na tentativa de melhorar sua saúde. Assim que souberam do Instituto de Terapêutica Natural de Hazzard, em Olalla, elas decidiram se submeter ao que Claire chamou de "tratamento completo" de Hazzard.

O ambiente rural do instituto atraía as irmãs quase tanto quanto os supostos benefícios médicos do regime de Hazzard. Elas sonhavam com cavalos pastando nos campos e caldos de legumes feitos com produtos frescos de fazendas próximas. Mas quando as mulheres chegaram a Seattle em fevereiro de 1911 para o tratamento, foram informadas de que o sanatório em Olalla ainda não estava pronto. Em vez disso, Hazzard as instalou em um apartamento no Capitólio de Seattle, onde começou a alimentá-las com um caldo feito de tomates enlatados. Uma xícara duas vezes ao dia, e nada mais. Elas recebiam enemas de horas de duração na banheira, que era coberta com suportes de lona. Logo as meninas começavam a desmaiar durante o tratamento.

Quando as irmãs Williamsons foram transferidos para a casa dos Hazzard em Olalla, dois meses depois, pesavam cerca de 30 quilos, segundo um vizinho preocupado. Os familiares também teriam ficado preocupados, se algum deles soubesse o que estava acontecendo. Mas as irmãs estavam acostumadas à desaprovação da família em relação às suas buscas por saúde e não contavam a ninguém para onde estavam indo. A única pista de que algo estava errado veio de um telegrama misterioso enviado à sua enfermeira chamada Margaret Conway, que estava visitando a família na Austrália. Continha apenas algumas palavras, mas parecia tão sem sentido que a enfermeira comprou uma passagem de barco para ver como elas estavam.

O marido da Dra. Hazzard, Samuel Hazzard (um ex-tenente do Exército que cumpriu pena de prisão por bigamia após se casar com Linda), conheceu Margaret em Vancouver. A bordo do ônibus para o hotel, Samuel deu uma notícia alarmante: Claire estava morta. Como a Dra. Hazzard explicou mais tarde, a culpa foi de uma série de medicamentos administradores na infância, que haviam encolhido seus órgãos internos e causado cirrose hepática. Segundo os Hazzards, a doença de Claire estava muito avançada para que o "belo tratamento" a salvasse.

Margaret Conway não tinha formação médica, mas sabia que algo estava errado. O corpo de Claire, embalsamado e exposto no necrotério de Butterworth, perto do Mercado Pike Place, parecia pertencer a outra pessoa — as mãos, o formato do rosto e a cor do cabelo lhe pareciam estranhos. Ao chegar a Olalla, Margaret descobriu que Dora pesava apenas cerca de 22 quilos, com os ossos tão salientes que ela não conseguia se sentar sem sentir dor. Mas ela não queria deixar Olalla, apesar de estar claramente morrendo de fome.


Os horrores revelados no quarto de Dora eram equiparados aos do consultório de Hazzard: a médica havia sido nomeada executora do considerável patrimônio de Claire, bem como tutora vitalícia de Dora. Enquanto isso, os Hazzards se apropriaram das roupas, utensílios domésticos e diamantes, safiras e outras joias das irmãs, estimados em 6.000 dólares. A Dra. Hazzard chegou a entregar um relatório a Margaret sobre o estado mental de Dora, enquanto vestia uma das roupas que pertenceu a Claire.

Margaret não conseguiu nada ao tentar convencer a Dra. Hazzard a deixar Dora ir embora. Sua posição como criada a atrapalhava — ela frequentemente se sentia tímida demais para contradizer aqueles de uma classe acima dela — e Hazzard era conhecida por seu terrível poder de persuasão sobre as pessoas. Ela parecia hipnotizá-las com sua voz e seus olhos escuros e brilhantes. De fato, alguns se perguntavam se o interesse de Hazzard por espiritualismo, teosofia e ocultismo lhe teria dado habilidades estranhas; talvez ela hipnotizasse as pessoas para que morressem de fome? Alguns a comparavam a uma líder de culto fatática, capaz de convencer suas vítimas e minar sua capacidade de pensar por conta própria. De fato, todos que a conheceram mencionaram sua personalidade magnética.

No final, foi necessário a chegada de John Herbert, um dos tios das irmãs, que Margaret havia convocado de Portland, Oregon, para libertar Dora. Após alguma negociação, ele pagou a Hazzard quase mil dólares para que Dora deixasse a propriedade. O envolvimento do vice-cônsul britânico  — Lucian Agassiz também ajudou. Foi ele quem deu início a um processo por assassinato, para vingar a morte de Claire.

Como Herbert e Agassiz descobririam ao investigar o caso, Hazzard estava ligada à morte de vários outros indivíduos ricos. Muitos haviam cedido grandes parcelas de seus bens a ela antes de morrerem. Um deles, o ex-deputado estadual Lewis E. Radar, chegou a ser dono da propriedade onde seu sanatório estava localizado. Rader morreu em maio de 1911, após ser transferido de um hotel para um local não revelado quando as autoridades tentaram interrogá-lo. Outro paciente britânico, John "Ivan" Flux, havia vindo para os Estados Unidos para comprar um rancho, mas morreu com US$ 70 em seu nome. Um neozelandês chamado Eugene Wakelin também teria se suicidado enquanto jejuava sob os cuidados de Hazzard; Hazzard conseguiu ser nomeada administradora de seus bens, drenando-os de seus fundos. Ao todo, pelo menos uma dúzia de pessoas teriam morrido em condições extremas de fome sob os cuidados de Hazzard, embora alguns afirmem que o total pode ser significativamente maior, mais de 100 segundo algumas estimativas.

Em 15 de agosto de 1911, as autoridades prenderam Linda Hazzard sob a acusação de homicídio em primeiro grau por ter matado Claire Williamson de fome. Em janeiro do ano seguinte, seu julgamento teve início no tribunal do condado. Espectadores lotaram o prédio para ouvir criados e enfermeiras testemunharem sobre como as irmãs gritavam de dor durante os tratamentos, sofreram com longos enemas e suportaram banhos escaldante. Uma verdadeira tortura que as deixou a beira da morte repetidas vezes. Havia também o que a promotoria chamou de "fome financeira": cheques, cartas e outras fraudes que haviam esvaziado o espólio de Williamson. Para piorar a situação, seguiam rumores (nunca comprovados) de que Hazzard estava em conluio com o necrotério de Butterworth e havia trocado o corpo de Claire por um mais saudável para que ninguém pudesse ver o quão esquelética a irmã mais nova de Williamson estava ao morrer. Isso e um cemitério clandestino no qual vitimas haviam sido enterradas concedam um caráter bizarro ao caso.


Hazzard recusou-se a assumir qualquer responsabilidade pela morte de Claire, ou de seus outros pacientes. Ela acreditava, conforme escreveu, que “a morte no jejum nunca resulta da privação de alimento, mas é a consequência inevitável da vitalidade minada ao último grau pela imperfeição orgânica”. Em outras palavras, se você morresse durante um jejum, você tinha algo que iria matá-lo em breve de qualquer maneira. Na mente de Hazzard, o julgamento foi um ataque à sua posição como uma mulher bem-sucedida e uma batalha entre a medicina convencional e métodos mais naturais. Outros nomes no mundo da saúde natural concordaram, e vários ofereceram seu apoio durante o julgamento. Henry S. Tanner, um médico que jejuou publicamente por 40 dias na cidade de Nova York em 1880, ofereceu-se para testemunhar a favor da médica.

Embora extrema, a prática de jejum de Hazzard se baseava em tratamento muito conceituado na época. Como Hazzard observou em seu livro, o jejum para saúde e desenvolvimento espiritual é uma ideia antiga, praticada tanto por iogues quanto por Jesus Cristo. Os antigos gregos acreditavam que demônios podiam entrar na boca durante a refeição, o que ajudou a incentivar a ideia do jejum para purificação. Pitágoras, Moisés e João Batista reconheceram o poder espiritual do jejum, enquanto Cotton Mather acreditava que a oração e o jejum resolveriam a epidemia de "bruxaria" de Salem.

A prática experimentou um renascimento no final do século XIX, quando um médico chamado Edward Dewey escreveu um livro no qual defendia que "toda doença que aflige a humanidade se desenvolve a partir de uma alimentação mais ou menos habitual e no excesso de sucos gástricos". O paciente de Dewey e mais tarde editor, Charles Haskel, declarou-se "milagrosamente curado" após um jejum prolongado. Ele ajudou a promover a ideia de passar fome fazia bem. A ideia de jejuar para ter saúde ainda existe, é claro: hoje existem dietas de limpeza com sucos e dietas de privação de calorias, mas nada tão radical.

Em 1911, o júri do julgamento de Hazzard não se convenceu com as alegações de perseguição sustentadas por ela. Após um breve período de deliberação, o veredicto foi de homicídio. Hazzard foi condenada a trabalhos forçados na penitenciária de Walla Walla, e sua licença médica foi cassada (por razões desconhecidas, ela foi posteriormente perdoada pelo governador, embora sua licença nunca tenha sido reintegrada). Ela cumpriu dois anos de prisão em jejum para provar o valor de seu regime, e depois se mudou para a Nova Zelândia para se aproximar de seus apoiadores. Em 1920, ela retornou a Olalla para finalmente construir o sanatório dos seus sonhos, chamando o prédio de "escola de saúde".

O instituto foi destruído por um incêndio em 1935 e, três anos depois, Hazzard, então com pouco mais de 70 anos, adoeceu e iniciou um jejum por conta própria. O jejum não conseguiu restaurá-la, e ela faleceu logo em seguida. 

Hoje, tudo o que resta de seu sanatório são uma torre de concreto e as ruínas da fundação do prédio, ambas cobertas de mato. O local de seus escritórios no centro de Seattle, o prédio do Northern Bank and Trust, na esquina da Fourth com a Pike, ainda existe, e os compradores e turistas que lotam as ruas abaixo desconhecem o que aconteceu ali um dia.

A médica da fome, como ficou conhecida, Hazzard, é um exemplo extremo de como controle e autoridade pode ser exercido sobre pessoas comuns com resultados mortais. 

domingo, 16 de novembro de 2025

Pilares do Horror Cósmico - Atmosfera Sufocante e Esmagadora

QUARTO PILAR

ATMOSFERA SUFOCANTE E ESMAGADORA

Deixe-me mostrar-lhe o que se esconde nos espaços vazios 
onde os pesadelos não ousam pisar.”

― N.K. Jemisin, The City We Became

*     *     *

Se os Pilares anteriores tratavam da condição humana e de suas limitações diante do incompreensível, este trata da forma como essa experiência é comunicada — tanto ao leitor quanto ao personagem.

Ele trata de situar um background, quase pintar uma paisagem na qual os Horrores humanos e inumanos se perfilam diante. Pois tão importante quanto tratar dos personagens é contextualizar o ambiente no qual eles estão inseridos. Este não é um local abstrato ou um ambiente neutro, mas quase que, por si só, um personagem que irá compor o drama do Horror Cósmico.

Um elemento central para compreender qual a Atmosfera mais adequado a esse gênero de Terror é partir do princípio que o Horror Cósmico não se mostra, ele se insinua.

O medo não está no que se vê, mas no que não pode ser plenamente percebido.

Trata-se mais de uma sensação difícil de descrever em palavras, de um pressentimento de estranheza que permeia os sentidos, de algo que está diante de nossos olhos, mas que mesmo assim não conseguimos perceber em toda a sua majestosa forma pois não somos treinados para perceber tal coisa.

Muitas histórias que tratam do Horror Cósmico conseguem passar essa impressão de um ambiente conspurcado por forças incompreensíveis que são sufocantes e esmagadoras. Talvez uma das melhores histórias de Horror Cósmico a compor ambiente e narrativa seja "Os Salgueiros" (The Willows) de Algeirn Blackwood. Essa história, celebrada pelo próprio H.P. Lovecraft como uma das melhores narrativas de Horror Cósmico jamais escritas, se passa em uma região inóspita do Leste Europeu, onde florestas fechadas, tomadas por salgueiros, e um rio sinuoso se apresentam como cenário ideal para o terror que se apresenta. E é impossível dissociar o local onde se passa a história do horror que a permeia. 

É quase como se as coisas indescritíveis tivessem se misturado com a natureza selvagem.   

Esse é um dos atributos mais insidiosos do Horror Cósmico: ser ele uma força transformadora do ambiente. Nada fica imune a sua presença. A natureza por mais que tente, acaba se dobrando a sua aproximação. A transformação do ambiente pode ser sutil, mas ela estará em curso no exato momento em que foi tocada por essa força.

Imagine um lago em uma reserva selvagem, um lugar intocado pelas mãos do homem que por séculos conservou uma aura de perene pureza. Agora, imagine, se for capaz, que ocorre uma terrível contaminação: que uma indústria joga nesse lago barris com material radioativo altamente tóxico. No exato momento que os barris afundam nada de ruim parece acontecer, mas o lago doravante já estará condenado. A mudança não será perceptível de imediato, mas aos poucos o ambiente irá se alterar - peixes irão morrer, a vegetação irá se tornar frágil e amarelada, um cheiro estranho virá à tona, bolhas se formam no fundo do lago e estouram na sua superfície antes tranquila. A cor da água pode se alterar, assim como a vida em seu interior exposta a elementos mutagênicos. 

Para o observador incauto, por algum tempo o lago continuará normal, embora esses sinais possam ser percebidos. Como nosso lago hipotético, cuja aparência continuará bela por algum tempo, o ambiente tocado pelo Horror Cósmico também sofre mudanças graduais que terminarão por arruiná-lo para sempre.

Saber transmitir os elementos que mostram a degradação e a marcha para a ruína é de suma importância para uma história de Horror Cósmico.    

Aplicando a Atmosfera ideal em sua mesa de RPG:

É nesse pilar que o Guardião de Chamado de Cthulhu realmente brilha com sua capacidade de descrever o ambiente e de construir um panorama macabro capaz de envolver sua trama. 

A Atmosfera é de enorme importância para a criação de um cenário de Horror Cósmico. 

Em detrimento dela, centrando apenas no elemento humano ou alienígena, a história irá parecer incompleta. É necessário fornecer aos jogadores os indícios de como o mundo ao redor de seus personagens está se tornando caótico e surreal, como os tentáculos do Mythos estão manipulando a paisagem e a transformando em algo irreconhecível para os olhos humanos.

Mas como fazer isso de uma maneira que não entregue o componente alienígena? Como fazer essa revelação ser gradual? E como, por fim, remover o véu e deixar a sanidade dos personagens ser pulverizada? 

Aqui estamos nós para fornecer algumas sugestões para sua mesa de jogo, como sempre, fique à vontade para incorporar aquilo que acha interessante e desconsidere o restante.

O terror do indizível

O Horror Cósmico é um horror de revelação parcial.

O terror supremo não reside na aparição da criatura ou na explicação do fenômeno, mas na suspensão das crenças estabelecidas e no surgimento de uma incerteza que substitui todas as certezas até então. Os personagens deixam de acreditar naquilo que até então era concreto e imutável e são confrontados por algo que simplesmente "não pode ser".

É a súbita consciência de que algo existe, mas escapa à capacidade de compreensão. A razão não consegue se enquadrar nessa inconstante revelada. É como tentar encaixar uma forma quadrada em um buraco triangular. Por mais que se tente fazê-lo, ela não irá encaixar e quanto mais se forçar, maior será o dano (no caso à sanidade). 

A atmosfera é, portanto, o meio através do qual o indizível se manifesta.

O mundo é tomado por uma presença difusa, algo que distorce o natural — um leve deslocamento na ordem das coisas, como se o real estivesse se desfazendo lentamente, derretendo como uma vela de cera que se distorce e modifica em seu formato final.

Tenha em mente que o Horror Cósmico é o terror do quase.
  • As coisas, ainda que gigantescas e grotescas, jamais são vistas por completo. Ao pressentir que algo habita as fossas marinhas, centenas de metros abaixo da superfície, o que as testemunhas percebem é meramente uma sombra no abismo, bolhas revoltas subindo à superfície, uma perturbação momentânea que sacode o barco em que estão. Mas em seu íntimo, eles sabem que que tais fenômenos não poderiam ser causados por nada, senão uma forma colossal se deslocando nas profundezas insondáveis.
  • uma voz quase ouvida - Da mesma maneira, sons bizarros e incompreensíveis podem acrescentar muito ao ambiente que se deseja criar. Imagine um grupo em seu acampamento nas estepes nevadas, tentando descansar após um dia de extenuante atividade. De repente um som gutural, impossível de ser produzido por qualquer garganta humana ou animal, se espalha pela planície como um mau agouro. O que teria produzido aquele barulho horrendo? Qual poderia ter sido a sua fonte? Os personagens não ousam conjecturar o que poderia ser, a única certeza é que não é nada que eles conheçam.
  • um significado quase compreendido - Finalmente, permita que o grupo tente buscar uma explicação para o indizível. Se quiser, você, como Guardião, pode até tentar oferecer uma explicação razoável para um evento aliviando o terror momentaneamente, apenas para contradizer a teoria na sequência. Como explicar um brilho repentino no meio da madrugada? Poderia ter sido uma estrela cadente ou uma reflexão da lua, nada além disso. Mas logo em seguida, contradiga essa explicação, mostrando que ela não é razoável. Nenhuma estrela brilharia assim ou a lua está oculta atrás de nuvens. Quando você oferece uma explicação e logo em seguida a contradiz cria uma incerteza gritante de que nada é o que parece ser.
Essa ambiguidade narrativa, na qual algo acontece, mas não se sabe o que, desperta a imaginação do leitor, e é justamente ela que o perturba mais profundamente do que qualquer descrição explícita.

O não dito como força narrativa

Lovecraft compreendia — como os mestres do terror psicológico também compreendem — que mostrar demais é anular o mistério. O desconhecido, por definição, precisa permanecer desconhecido. Assim, o horror cósmico se sustenta em silêncios, lacunas e ambiguidades que podem jamais ser preenchidas.

Se bem feito, isso irá causar uma inquietação enorme e contribuir para a aura de dúvida existencial tão bem vinda para a história. Mas cuidado! Se usado repetidas vezes, isso pode frustrar os jogadores. O ponto de equilíbrio é dosas as explicações e deixar que eles próprios, tirem suas conclusões do que aconteceu. Não raramente isso se mostra muito mais assustador para os próprios jogadores, visto que eles irão recorrer aos seus próprios medos para preencher o que não foi dito. E nada é mais desejável numa mesa de horror do que alimentar medos particulares.  

As obras que exploram essa sugestão não têm pressa. Elas constroem lentamente uma tensão atmosférica feita de ruídos, sombras e sinais que podem ser quase imperceptíveis.

O ambiente é como um ser vivo que observa a interação dos personagens com ele próprio. As formas perdem nitidez, no canto dos olhos formas sinistras se movem, o tempo se torna instável dilatando ou se arrastando tortuosamente. Deixe o grupo ser sufocado aos poucos pela sensação de que algo errado está espreitando e que à qualquer momento jogará por cima deles uma teia da qual não será possível escapar.

A natureza manifesta sintomas 

Em cenários de Horror Cósmico há tropos clássicos que funcionam perfeitamente. Os céus turvos cor de chumbo, os mares que se movem jogando de um lado para o outro, as florestas majestosas e silenciosas, as cidades decadentes com becos e ruelas escuras.

O cenário não é mero pano de fundo — é um agente ativo da inquietação. Esses espaços transmitem a ideia de que a realidade foi corrompida, contaminada e que está em processo de degradação por forças nefastas.

Permita incidentes atípicos e repentinos. Raios riscando o céu, trovões que reverberam, uma ventania que parece surgida de lugar nenhum, uma chuva fria e pesada que cobre os personagens. Costure esses elementos naturais na trama, como se eles estivessem fora do lugar. 

O ar pode se tornar pesado, carregado com eletricidade estática ou repentinamente úmido. A geometria parece errada, com sombras assumindo ângulos absurdos e enlouquecedores. A sensação é de algo que não pertence a este mundo se manifestando à despeito da presença de testemunhas. 

Use a paisagem circundante como reflexo do colapso existencial.

A sugestão como linguagem

A narrativa cósmica recorre à sugestão porque qualquer tentativa de descrição literal do inominável seria uma traição à própria ideia do inominável.

Assim, o texto opera por meio de sinais, símbolos e pressentimentos. JAMAIS explique o que se está vendo com clareza, é preciso haver sempre uma incerteza à respeito do que é presenciado. Lembre-se de que os sentidos humanos são ferramentas inadequadas para compreender a grandiosidade dos Mythos.

Em vez de dizer:

Você vê uma criatura disforme colossal com tentáculos se erguer do mar.

O autor insinua:

Algo gigantesco e terrível se ergue das águas plácidas, rasgando a superfície como se irrompesse de outra realidade Você não consegue precisar seu tamanho ou conceber sua forma pois ela se espalha e se agita num frêmito doentio. É molhado e brilhante, viscoso ao ponto de jamais se misturar à água, como uma mancha de óleo. Você tenta racionalizar mas então se dá conta de que aquilo não deveria existir.

A sugestão deixa espaço para a imaginação, o ouvinte se torna cúmplice na criação do horror. Na sua forma e na sua concepção geral. E a imaginação, movida pelo medo, produz terrores muito maiores do que qualquer descrição objetiva.

O tempo e o ritmo da apreensão

A atmosfera do Horror Cósmico é também uma questão de ritmo.

As histórias são lentas, densas, cheias de detalhes que parecem irrelevantes até que se tornam insuportavelmente significativos. Por exemplo, um vento estranho parece sempre soprar quando o grupo visita aquela fazenda decadente, mas só no momento culminante de horror eles se dão conta de que mesmo quando o vento está soprando para o outro lado, os galhos de uma árvore, no topo da ravina estão se movendo. Oh, Deus! Não são galhos!

O terror vai se insinuando aos poucos com sinais inócuos que mais tarde se tornam absurdos.

Em uma narrativa, um dos personagens manifesta uma estranha sensação, como se algo estivesse sempre se movendo por baixo de sua pele, como se houvesse uma coceira impossível de ser satisfeita e eliminada. Essa sensação surge em vários momentos da narrativa, sobretudo quando as revelações e estranhezas da trama vão surgindo. Ele arranha a pele, sente que algo está errado, mas não sabe o que. Então, no clímax, quando uma raça de insetos alienígenas inteligentes se revela, a coceira aumenta, a sensação de que algo rasteja sob a sua pele se torna insuportável e explode como se milhares de patas e antenas estivessem tocando e sondando sua pele nua.     

A revelação é uma confirmação do bizarro, mas o verdadeiro horror não está no evento em si, mas no fato dele sempre ter estado ali. 

Da mesma forma, tenha em mente que a atmosfera cósmica não busca o susto — busca o mal-estar prolongado. Chamado de Cthulhu não é um jogo de "jump scare" no qual o assassino surge do quartinho dos fundos irrompendo com um machado nas mãos. Não... esse é um jogo em que ao abrir a porta do tal quartinho, o que se vê é o assassino com o corpo cheio de cicatrizes e tatuagens que parecem se mover, sombras ao seu redor e ruídos dissonantes sussurrando em línguas mortas. Formas estranhas e etéreas flutuam, miasmas e odores ofensivos confrontam as testemunhas, as deixando parcialmente sem ação. E só então as mãos do maníaco se movem quase que em câmera lenta na direção do machado.  

O ritmo dissonante coloca o personagem (e o jogador) numa posição de impotência, presos num mundo que lentamente se revela estranho, impuro e degradante. A sensação predominante é de se viver um pesadelo dissociativo.

É o sentimento de estar diante de uma realidade que não faz mais sentido, que muda e que se altera. Quanto mais o personagem tenta compreender aquilo, mais ela o engole.

A estética da obscuridade

No horror cósmico, a beleza se confunde com o abismo.

A narrativa pode ser lírica, quase poética, mas serve para acentuar o caráter sublime do horror — aquilo que é belo e terrível ao mesmo tempo. Esse é o mesmo “sublime” de Edmund Burke e Kant: o sentimento de estar diante de algo muito grande para ser racionalizado pela mente.

A atmosfera cósmica é, portanto, uma forma de expressão do sublime negativo na qual a experiência estética do colapso, da insignificância e da dissolução da razão é a meta almejada.

A atmosfera e a sugestão são os veículos sensoriais do horror cósmico. Não são apenas ferramentas estilísticas, mas expressões filosóficas do indizível. O medo nasce do vazio entre o que é percebido e o que é compreendido — um espaço de silêncio onde o jogador se torna coautor do pavor.

Ele nos faz sentir como se o chão sob nossos pés pudesse, a qualquer instante, desabar. Mas no fim, não é a penas o chão que desaba, mas a realidade que se desfaz.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Lovecraft visita as ruínas - O local que inspirou o conto "O Cão de Caça"

Em 16 de setembro de 1925, o escritor H.P. Lovecraft pegou um metrô e decidiu conhecer um pouco mais da cidade de Nova York

Aquela não era uma decisão simples para Lovecraft, um típico yankee, nascido e criado na Nova Inglaterra, orgulhoso de sua herança anglo-saxã. Dizer que ele não gostava de Nova York é trivializar seu profundo desprezo pela cidade para onde havia se mudado.

Lovecraft detestava Nova York e nunca escondeu tal coisa. 

O lugar o sufocava, o deixava em estado de alerta, ele não dormia e não conseguia relaxar. Estava constantemente em estado de nervos. Escrevia aos seus colegas e se queixava com a esposa, Sonia Greene, frequentemente. A Metrópole o oprimia: com seu tamanho, seu barulho, seus cheiros... tudo o deixava sobressaltado.

Por esse motivo, quando aquele alto e desajeitado sujeito embarcou na estação de metrô na Clinton Street e saltou no Brooklyn, sua atitude era comparável a de um explorador adentrando terreno desconhecido. Lovecraft, no entanto sabia bem onde queria ir...

Ele desejava visitar a Igreja Reformista de Flatbush, no Brooklyn e conhecer pessoalmente o lugar que seu bom amigo, Rheinhart Kleiner, havia descrito como "absurdamente sinistro". Ele supunha que esse lugar poderia fornecer a inspiração para um de seus contos aterrorizantes. 

O autor chegou ao lugar e ficou impressionado pelo cenário de abandono que encontrou. Algo naquele ambiente decadente o deixou imediatamente fascinado. A Igreja em si não foi o que mais lhe chamou a atenção, mas sim o velho e venerável cemitério no terreno contiguo.

Lovecraft pediu licença ao amigo que se manteve na Igreja e adentrou sozinho o terreno, caminhando em meio aos túmulos que adornavam o campo escuro e de aspecto lúgubre. Haviam varias lápides de pedra gastas e cobertas de líquen, raízes brotando do chão e mato crescendo selvagem. Não havia sinal de visitantes recentes. As estátuas tristonhas de anjos se empoleirando sobre as pedras eram as únicas testemunhas de sua visita. Fazia tempo que não havia ninguém ali para depositar flores nas sepulturas e prantear os ossos que ali jaziam.

Algo naquele ambiente soturno o atraía, apelando ao seu senso de antiquário e morbidez. Lovecraft se sentia arrebatado por aquele ambiente que a maior parte das pessoas achariam funesto. 

Explorando o local ele conseguiu determinar que lá haviam ocorrido sepultamentos entre 1730 até meados do século XIX. Ao se aproximar de uma das lápides em ruinas — datada de 1747 — ele se permitiu uma transgressão. Lascou um pequeno fragmento de pedra e o colocou no bolso pedindo desculpas ao ocupante do jazigo, cujo nome não conseguiu ler por estar demasiadamente gasto.

Lovecraft depois confidenciou ao amigo que ter feito aquilo causou-lhe um arrepio involuntário. Quem pode dizer se algo não sairia da terra centenária para se vingar da profanação? E, caso tal coisa acontecesse, quem poderia dizer com o que se pareceria esse cadáver?

Ele ficou ali contemplativo por longos minutos até Kleiner vir chamá-lo, interrompendo seus pensamentos. Estava escurecendo e eles deveriam retornar para casa. O autor estava tão absorto em seus pensamentos que nem percebeu o tempo passar. Passara ali horas vagando entre os túmulos.

Ao voltar para sua casa, Lovecraft colocou o fragmento cinzento sobre a tampa da escrivaninha onde costumava destilar em palavras suas tramas macabras. Ele o observou com interesse. Naquela noite, ele pós o fragmento debaixo de seu travesseiro esperando que o pequeno objeto pudesse afetar seus sonhos e trazer inspiração.

Lovecraft escreveu "O Cão de Caça" (The Hound) pouco tempo depois, usando como nome de um dos personagens principais o apelido que deu ao seu colega, Rheinhard Kleiner, "Saint John". Não se sabe o que Kleiner achou dessa "homenagem", sobretudo porque Saint John era um necrófilo interessado em roubar sepulturas e obter troféus para sua macabra coleção.

O túmulo que no conto é fatalmente vilipendiado ficava em um "terrível cemitério em estilo holandês" — uma clara referência à igreja dilapidada de Flatbush ter sido construída no período colonial por imigrantes protestantes vindos dos países baixos.

Lovecraft jamais mencionou ter experimentado outros elementos da história como os uivos de cães diabólicos e uma entidade tenebrosa em busca de vingança contra Saint John e seu amigo (o narrador). Não resta dúvida, contudo que o tempo que Lovecraft passou sentado sobre as lápides admirando o Cemitério de Flatbush e sua antiguidade foram cruciais para o conto se instalar em sua imaginação e dali transbordar para as páginas.

Dessa viagem até Flatbush restaram duas fotografias.

Lovecraft posa em frente de seu prédio

Lovecraft ao lado de Kleiner

A Igreja Reformista de Flatbush










segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Os Pilares do Horror Cósmico - A Loucura é a única certeza diante do Caos

TERCEIRO PILAR

A LOUCURA COMO RESPOSTA

“Em um mundo louco, 
apenas os loucos podem ser chamados de sãos"
― Akira Kurosawa

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Se o Primeiro Pilar (a Insignificância Humana) revela a fragilidade do homem, e o segundo (as Forças Incompreensíveis) impõem as profundezas insondáveis do abismo cósmica, o Terceiro Pilar mostra o colapso inevitável da mente diante desse mesmo abismo.

Esse sem dúvida é um dos pilares mais importantes e controversos. Muitos se perguntam porque a exposição ao Horror Cósmico resulta num surto de insanidade que permeia grande parte das historias do gênero. Os personagens lovecraftianos, heróis e vilões, quando expostos ao Horror Cósmico recaem na insanidade e afundam na loucura. Eles tem a sua mente estilhaçada e jamais se recuperam.

Neste artigo vamos analisar a correlação do Horror Cósmico com Loucura. 

No dogma lovecraftiano a insanidade não é apenas um sintoma individual — é a reação natural e coerente diante da terrível verdade escondida sob o véu da normalidade. Imagine a consciência humana como uma estrutura construída com o intuito de organizar o caos em formas compreensíveis. Ela depende da coerência, da causalidade, da ordem sensorial para funcionar. 

Mas o universo lovecraftiano — ou cósmico em geral — não respeita essas leis. Quando um personagem se depara com algo que contradiz a lógica do mundo, a mente tenta reconciliar o impossível. Esse esforço produz o terror máximo: a dissolução da identidade e da razão. Em outras palavras: a insanidade advém da exposição às verdades cósmicas.

Em muitas histórias, o "louco" é o único que viu — e por isso o único que sabe a verdade. A insanidade é o derradeiro preço do conhecimento adquirido. O Horror Cósmico inverte a equação clássica da Filosofia Iluminista: o saber não liberta, o saber destrói, aniquila, oblitera...

Ademais, há algo de blasfemo na própria curiosidade.

Investigar, decifrar, compreender… tudo isso constitui um ato perigoso, pois conduz ao centro do labirinto onde a razão se perde por completo. Assim, o saber se torna uma forma de danação. A mais perigosa das ações é desvelar os segredos ancestrais. 

Curiosamente, a loucura também pode ser uma forma de autopreservação. Diante da revelação letal, o indivíduo se refugia no delírio, o último abrigo da mente diante do inominável. Muitos protagonistas de Lovecraft terminam suas histórias em asilos, em delírio ou desaparecidos, não porque perderam a sanidade, mas porque fugiram da verdade.

A loucura é, paradoxalmente, o mecanismo que permite ao indivíduo continuar existindo após saber o que não se deveria ser conhecido.

Não se trata apenas de medo diante do desconhecido, mas sim de uma desintegração ontológica na qual o "eu" deixa de ser um ponto fixo, e o indivíduo se vê como um fragmento dentro de um todo incomensurável.

A loucura no horror cósmico é mais metafísica do que clínica. Embora possa até ser entendida sob um quadro médico, a experiência é de aniquilação interior. Um terror existencial no qual o pavor não é morrer, mas deixar de ser.

Lovecraft dizia que “a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte medo é o medo do desconhecido." 

A loucura é o estágio em que o desconhecido se apresenta em toda sua blasfema glória e não há sanidade capaz de absorver tais revelações.

Aplicando a Loucura em sua mesa de RPG:

De todos os Pilares do Horror Cósmico, a Loucura é o único que se encontra tipificado como regra da ambientação. Em Chamado de Cthulhu, regras específicas definem como se dá o desgaste mental dos personagens e como eles vão escorregando em uma condição na qual abraçar a loucura é a única solução viável.

Mas como descrever essa degradação além de um sistema de regras?

Como emular a perda da sanidade de uma maneira factível, que faça sentido para o cenário e para o sistema estabelecido?

Aqui temos algumas sugestões que visam complementar a experiência da perda de sanidade, tornando esta algo mais do que um simples teste que resulta em números sendo diminuídos.

Sanidade como drama

A perda de Sanidade, seja ela menor ou maior, deve ser significativa, não apenas numérica. O Guardião deve tentar esconder o máximo possível os números e recorrer a descrições que expliquem a sensação de se perder na revelação.

Descreva o impacto psicológico da Revelação e como ela afeta o indivíduo usando para isso diferentes recursos:
  • Eterno Flashback
O personagem não consegue esquecer uma cena, ela parece gravada em sua mente como se um ferro em brasa tivesse queimado a revelação em sua mente. Essa imagem se torna recorrente, indo e vindo em ondas que não podem ser esquecidas. Por exemplo, a visão de um portal dimensional se abrindo é revisitada inúmeras vezes, seja em portas se abrindo, em janelas sendo escancaradas ou nuvens se movendo para revelar o sol. O surgimento de um Abissal do fundo do mar se repete sempre que o personagem está perto do litoral, no movimento das marés e no cheiro de água salobra.

A imagem do aterrorizante surge no dia a dia com uma frequência alarmante. O momento de supremo horror é revisitado inúmeras vezes e passa a minar a própria capacidade de funcionar de forma coerente. O Guardião pode inserir esses flashbacks em momentos de paz e tranquilidade, uma lembrança da irracionalidade do universo e tornar tudo ainda pior quando o personagem for exposto uma vez mais ao Mythos.
  • Paranoia Latente
O personagem olha frequentemente sob o seu ombro, não por temer que alguém possa estar observando ou o seguindo. Não... ele sabe que alguém está atrás dele e que está cada vez mais perto, fechando um círculo ao seu redor.

A Paranoia Latente é a sensação de que algo está oculto no canto, que um inimigo espreita constantemente e que uma sala escura esconde horrores indescritíveis imersos nas trevas. A Paranoia é uma constante na vida daqueles que escorregaram para os reinos da insanidade.

O Professor que sente numa brisa a lufada das asas dos Noitesguios que vieram para carregá-lo. O diletante que não consegue confiar em ninguém vestindo roupas amarelas depois de um episódio em Carcosa. O vagabundo que se sente aterrorizado toda vez que precisa passar perto de um cemitério, uma vez que ele sabe que carniçais estão lá embaixo, em túneis se alimentando dos mortos.
  • Lapsos de Memória
Quando a mente se perde nas raias da loucura, ela começa a pregar peças horríveis na cronologia do indivíduo. A mente apaga cenas inteiras, faz sumir momentos importantes e até pode substituir traumas por cenas mais afáveis.

Os lapsos de memória são uma maneira contundente de minar as resistências e certezas do personagem, fazendo com que ele questione o que aconteceu: ele não sabe mais o que é real e o que é sonho.

O investigador que acorda no meio da madrugada e descobre que suas roupas estão sujas, amarrotadas e cobertas de terra sem que ele recorde ter saído de casa. O médico que não sabe se receitou o tranquilizante correto para um paciente e que não sabe ao certo se o remédio que preparou contém os ingredientes certos ou veneno de rato. A mãe que jura ter passado horas na companhia de seus filhos, mesmo que estes tenham morrido em um incêndio anos atrás.

Os lapsos de memória oferecem uma substituição para os horrores enfrentados. Eles preenchem lacunas e alteram as percepções para aquilo que os indivíduos desejam vivenciar - mesmo que não seja a realidade.
  • Comportamentos ritualísticos
Quando o senso de normalidade se perde, pequenos rituais executados diariamente também perdem o sentido. Aquilo que norteava a existência começa a perder a razão de ser. A mente fraturada pela Loucura do Mythos não consegue mais correlacionar qual é o comportamento convencional a ser adotado em cada situação.

Para tentar lidar com isso, o indivíduo tenta se agarrar a pequenos rituais que refletem um estado perdido de normalidade. Ele sabe que aquelas coisas - que não fazem mais sentido, são uma ligação com a sua vida pregressa, e desejam desesperadamente que esses hábitos comuns resgatem seu senso de normalidade.

O policial que limpa sua pistola de serviço sem parar, checando as balas incontáveis vezes para ter certeza de que a arma está carregada corretamente. O historiador que todo dia de manhã sente a necessidade de recitar trechos de discursos importantes e repetir datas como se estas lhe dessem um senso de familiaridade com o passado. A enfermeira que precisa lavar suas mãos centenas de vezes pois quem pode imaginar o tipo de sujeira e impureza em sua pele. Ela esfrega as mãos ritualisticamente com sabão, com detergente, com álcool, até elas sangrarem... mas a sensação de que há algo sujo persiste.
  • Incoerência Delirante
Um dos maiores males da Loucura é a incapacidade de racionalizar o mundo diante de um universo caótico. Ser sobrepujado por uma onda de incertezas e questionamentos é uma espécie de maldição que os afligidos pela Loucura do Mythos carregam. O indivíduo passa a ver o mundo sob uma ótica particular, só sua, na qual os delírios passam a controlar seu dia a dia.

Cenas estranhas, alucinantes e delirantes se insinuam na realidade, ocasionando situações absurdas que não obstante parecem perfeitamente reais. Separar o real do fantasioso se torna um exercício de futilidade já que tudo aquilo parece fazer sentido na mente fraturada.

O arqueólogo que percebe sutis movimentos em uma múmia exposta em um museu e que imagina ser ela capaz de despertar em noites sem lua. O antiquário que ouve estranhas vozes vindas de objetos que pertenceram a pessoas mortas à séculos e que parecem desejá-los de volta. A visão medonha de um artista que enxerga em telas padrões absurdos contendo revelações aterrorizantes.
  • Mudança Física
A imagem externa do indivíduo reflete o Caos que domina sua mente. A aparência do indivíduo é afetada pelo turbilhão furioso que assomou a sua mente fraturada transbordando para seu exterior.

Esse efeito se manifesta em pequenas coisas que vão aumentando e se tornando cada vez mais evidentes. Aqueles que conheceram o indivíduo imediatamente percebem os trejeitos, os cacoetes e o comportamento atípico que não se encaixa na imagem anterior.

A atriz que insiste em raspar seus cabelos e ferir seu próprio corpo como uma maneira de enganar as criaturas que a perseguem. Se ela ficar diferente, talvez eles não a reconheçam e a deixem em paz. Um conhecido advogado que decide se mudar para o campo e levar uma vida de reclusão extrema, deixando crescer barba e cabelos até ficar irreconhecível, com uma aparência selvagem e feroz que em nada espelha seus cuidados anteriores. O Ocultista calejado que decide que a única maneira de se preservar diante dos horrores é tatuar seu corpo com símbolos de proteção retirados de tomos arcanos. Ele escolhe cada símbolo cuidadosamente, pois sabe que talvez não haja espaço suficiente em sua pele.

As mudanças físicas são uma forma de evidenciar a terrível degradação dos personagens.

A Percepção alterada pela Revelação

Um dos princípios importantes da Loucura ocasionada pelo Horror Cósmico é que "Aquele que enlouquece vê mais do que os outros. Um terceiro olho, da percepção se abre para o mundo invisível"

A insanidade parece conceder insights ou vislumbres de verdades proibidas que apenas os calejados são capazes de perceber. Um Guardião dedicado irá usar isso para construir cenas ambíguas, onde o jogador duvida se suas percepções são reais ou não.

Lembram na série True Detective quando o personagem de Rusty Cohle vê pássaros alçando voo e rodopiando no ar como uma nuvem que forma o Símbolo do Rei de Amarelo no céu? Lembram de Frank Black na série Milênio que tinha estranhos insights sobre a natureza humana? Ou a protagonista de Long Legs que parece ter uma espécie de sexto sentido para coisas estranhas e perturbadoras que estão prestes a acontecer. Personagens que perderam sanidade e que estão trilhando o caminho da Loucura podem manifestar estranhas sensações que concedem um colorido especial à campanha.

Como o Guardião pode usar isso em uma sessão de Chamado de Cthulhu:

- Altere a percepção de tempo e espaço — descreva coisas que não fazem sentido, mas sem tentar se esforçar para explicá-las. O mundo começa a se distorcer conforme a sanidade diminui. Padrões podem ser vistos ou sentidos em pequenas interações nas quais o Caos permeia a realidade.

- Utilize sonhos recorrentes e incoerentes; os personagens se tornam um canal para sonhos premonitórios, maus agouros ou sensações indescritíveis que acabam se confirmando. Não são sonhos claros, muitos deles podem ser fantasiosos ou absurdos, mas seu sentido só é compreendido no momento em que se confirmam.

- Faça uso de sensações únicas que beiram a sensitividade; personagens que foram tocados pelo Mythos desenvolvem um tipo de sexto sentido para o sobrenatural. Não se trata de um "sentido de aranha", que o ajuda a escapar do horror com agilidade, mas de uma sensação desagradável e poderosa.

Talvez ele sinta uma tontura toda vez que o Mythos esteja próximo, um fedor de carniça onde coisas horríveis aconteceram em algum momento ou uma espécie de ataque de pânico sempre que o Caos irracional esteja se insinuando em nossa realidade.

- Forneça Insights na forma de visões repentinas; a cena de um crime que se revela em detalhes sanguinolentos para um investigador criminal. Em um momento de total lucidez o indivíduo é capaz de se colocar na cena e testemunhar em primeira pessoa tudo o que aconteceu ali. Da mesma maneira um Antropólogo observando uma tribo primitiva percebe detalhes sobre suas medonhas práticas religiosas observando o templo onde sacrifícios foram realizados. As visões na maior parte das vezes são devastadores e aterrorizantes por isso limite o uso desse recurso para momentos chave da sua trama.