Hoje, a pequena cidade de Olalla, a uma curta distância de Seattle, atravessando Puget Sound de balsa, é um lugar praticamente esquecido. Os poucos prédios em ruínas são um testemunho da luta dos agricultores, madeireiros e pescadores que outrora tentavam sobreviver entre as amoreiras e os abetos solitários. Mas, na década de 1910, Olalla esteve brevemente na primeira página de jornais internacionais por um julgamento de assassinato como a região nunca tinha visto antes ou depois.
No centro do julgamento estava uma mulher com uma presença formidável e um nome memorável: Dra. Linda Hazzard (um sobrenome curioso já que a tradução é "perigo"). Apesar de pouco treinamento formal e da falta de diploma em medicina, ela foi licenciada pelo estado de Washington como "especialista em tratamento de jejum". Seus métodos, embora não fossem exclusivos, eram extremamente heterodoxos. Hazzard acreditava que a raiz de todas as doenças estava na comida — especificamente, no excesso dela. "Apetite é Desejo; Fome é Desejo. O desejo nunca é satisfeio; mas o Desejo é aliviado quando a carestia é praticada", escreveu ela em seu livro publicado de 1908: "Jejum para a Cura da Doença".
O caminho para a verdadeira saúde, escreveu Hazzard, era deixar o sistema digestivo "descansar" periodicamente por meio de jejuns quase totais de dias ou mesmo semanas. Durante esse período, seus pacientes consumiam apenas pequenas porções de caldo de legumes, seus sistemas eram "limpos" com enemas diários e massagens vigorosas que, segundo as enfermeiras, às vezes mais pareciam surras.
Apesar dos métodos severos, Hazzard atraiu muitos pacientes. Uma delas foi Daisey Maud Haglund, uma imigrante norueguesa que morreu em 1908 após jejuar por 50 dias sob os cuidados de Hazzard. Ela nao foi culpada ou seu tratamento levantou qualquer tipo de questionamento. A doutora era tida como uma profissional respeitada.
Suas pacientes mais lembradas, contudo, foram duas irmãs britânicas chamadas Claire e Dorothea (conhecida como Dora) Williamson, filhas órfãs de um abastado oficial do exército inglês.
Como explica o autor Gregg Olsen em seu livro "Alameda da Fome", as irmãs viram um anúncio do livro de Hazzard em um jornal enquanto estavam hospedadas no luxuoso Empress Hotel na Colúmbia Britânica. Embora não estivessem gravemente doentes, as duas sentiam que sofriam de uma variedade de doenças menores: Dorothea reclamava de glândulas inchadas e dores reumáticas, enquanto Claire fora informada de que tinha um útero caído. As irmãs acreditavam fortemente no que hoje poderíamos chamar de "medicina alternativa" e já haviam desistido tanto da carne quanto dos espartilhos na tentativa de melhorar sua saúde. Assim que souberam do Instituto de Terapêutica Natural de Hazzard, em Olalla, elas decidiram se submeter ao que Claire chamou de "tratamento completo" de Hazzard.
O ambiente rural do instituto atraía as irmãs quase tanto quanto os supostos benefícios médicos do regime de Hazzard. Elas sonhavam com cavalos pastando nos campos e caldos de legumes feitos com produtos frescos de fazendas próximas. Mas quando as mulheres chegaram a Seattle em fevereiro de 1911 para o tratamento, foram informadas de que o sanatório em Olalla ainda não estava pronto. Em vez disso, Hazzard as instalou em um apartamento no Capitólio de Seattle, onde começou a alimentá-las com um caldo feito de tomates enlatados. Uma xícara duas vezes ao dia, e nada mais. Elas recebiam enemas de horas de duração na banheira, que era coberta com suportes de lona. Logo as meninas começavam a desmaiar durante o tratamento.
Quando as irmãs Williamsons foram transferidos para a casa dos Hazzard em Olalla, dois meses depois, pesavam cerca de 30 quilos, segundo um vizinho preocupado. Os familiares também teriam ficado preocupados, se algum deles soubesse o que estava acontecendo. Mas as irmãs estavam acostumadas à desaprovação da família em relação às suas buscas por saúde e não contavam a ninguém para onde estavam indo. A única pista de que algo estava errado veio de um telegrama misterioso enviado à sua enfermeira chamada Margaret Conway, que estava visitando a família na Austrália. Continha apenas algumas palavras, mas parecia tão sem sentido que a enfermeira comprou uma passagem de barco para ver como elas estavam.
O marido da Dra. Hazzard, Samuel Hazzard (um ex-tenente do Exército que cumpriu pena de prisão por bigamia após se casar com Linda), conheceu Margaret em Vancouver. A bordo do ônibus para o hotel, Samuel deu uma notícia alarmante: Claire estava morta. Como a Dra. Hazzard explicou mais tarde, a culpa foi de uma série de medicamentos administradores na infância, que haviam encolhido seus órgãos internos e causado cirrose hepática. Segundo os Hazzards, a doença de Claire estava muito avançada para que o "belo tratamento" a salvasse.
Margaret Conway não tinha formação médica, mas sabia que algo estava errado. O corpo de Claire, embalsamado e exposto no necrotério de Butterworth, perto do Mercado Pike Place, parecia pertencer a outra pessoa — as mãos, o formato do rosto e a cor do cabelo lhe pareciam estranhos. Ao chegar a Olalla, Margaret descobriu que Dora pesava apenas cerca de 22 quilos, com os ossos tão salientes que ela não conseguia se sentar sem sentir dor. Mas ela não queria deixar Olalla, apesar de estar claramente morrendo de fome.
Os horrores revelados no quarto de Dora eram equiparados aos do consultório de Hazzard: a médica havia sido nomeada executora do considerável patrimônio de Claire, bem como tutora vitalícia de Dora. Enquanto isso, os Hazzards se apropriaram das roupas, utensílios domésticos e diamantes, safiras e outras joias das irmãs, estimados em 6.000 dólares. A Dra. Hazzard chegou a entregar um relatório a Margaret sobre o estado mental de Dora, enquanto vestia uma das roupas que pertenceu a Claire.
Margaret não conseguiu nada ao tentar convencer a Dra. Hazzard a deixar Dora ir embora. Sua posição como criada a atrapalhava — ela frequentemente se sentia tímida demais para contradizer aqueles de uma classe acima dela — e Hazzard era conhecida por seu terrível poder de persuasão sobre as pessoas. Ela parecia hipnotizá-las com sua voz e seus olhos escuros e brilhantes. De fato, alguns se perguntavam se o interesse de Hazzard por espiritualismo, teosofia e ocultismo lhe teria dado habilidades estranhas; talvez ela hipnotizasse as pessoas para que morressem de fome? Alguns a comparavam a uma líder de culto fatática, capaz de convencer suas vítimas e minar sua capacidade de pensar por conta própria. De fato, todos que a conheceram mencionaram sua personalidade magnética.
No final, foi necessário a chegada de John Herbert, um dos tios das irmãs, que Margaret havia convocado de Portland, Oregon, para libertar Dora. Após alguma negociação, ele pagou a Hazzard quase mil dólares para que Dora deixasse a propriedade. O envolvimento do vice-cônsul britânico — Lucian Agassiz também ajudou. Foi ele quem deu início a um processo por assassinato, para vingar a morte de Claire.
Como Herbert e Agassiz descobririam ao investigar o caso, Hazzard estava ligada à morte de vários outros indivíduos ricos. Muitos haviam cedido grandes parcelas de seus bens a ela antes de morrerem. Um deles, o ex-deputado estadual Lewis E. Radar, chegou a ser dono da propriedade onde seu sanatório estava localizado. Rader morreu em maio de 1911, após ser transferido de um hotel para um local não revelado quando as autoridades tentaram interrogá-lo. Outro paciente britânico, John "Ivan" Flux, havia vindo para os Estados Unidos para comprar um rancho, mas morreu com US$ 70 em seu nome. Um neozelandês chamado Eugene Wakelin também teria se suicidado enquanto jejuava sob os cuidados de Hazzard; Hazzard conseguiu ser nomeada administradora de seus bens, drenando-os de seus fundos. Ao todo, pelo menos uma dúzia de pessoas teriam morrido em condições extremas de fome sob os cuidados de Hazzard, embora alguns afirmem que o total pode ser significativamente maior, mais de 100 segundo algumas estimativas.
Em 15 de agosto de 1911, as autoridades prenderam Linda Hazzard sob a acusação de homicídio em primeiro grau por ter matado Claire Williamson de fome. Em janeiro do ano seguinte, seu julgamento teve início no tribunal do condado. Espectadores lotaram o prédio para ouvir criados e enfermeiras testemunharem sobre como as irmãs gritavam de dor durante os tratamentos, sofreram com longos enemas e suportaram banhos escaldante. Uma verdadeira tortura que as deixou a beira da morte repetidas vezes. Havia também o que a promotoria chamou de "fome financeira": cheques, cartas e outras fraudes que haviam esvaziado o espólio de Williamson. Para piorar a situação, seguiam rumores (nunca comprovados) de que Hazzard estava em conluio com o necrotério de Butterworth e havia trocado o corpo de Claire por um mais saudável para que ninguém pudesse ver o quão esquelética a irmã mais nova de Williamson estava ao morrer. Isso e um cemitério clandestino no qual vitimas haviam sido enterradas concedam um caráter bizarro ao caso.
Hazzard recusou-se a assumir qualquer responsabilidade pela morte de Claire, ou de seus outros pacientes. Ela acreditava, conforme escreveu, que “a morte no jejum nunca resulta da privação de alimento, mas é a consequência inevitável da vitalidade minada ao último grau pela imperfeição orgânica”. Em outras palavras, se você morresse durante um jejum, você tinha algo que iria matá-lo em breve de qualquer maneira. Na mente de Hazzard, o julgamento foi um ataque à sua posição como uma mulher bem-sucedida e uma batalha entre a medicina convencional e métodos mais naturais. Outros nomes no mundo da saúde natural concordaram, e vários ofereceram seu apoio durante o julgamento. Henry S. Tanner, um médico que jejuou publicamente por 40 dias na cidade de Nova York em 1880, ofereceu-se para testemunhar a favor da médica.
Embora extrema, a prática de jejum de Hazzard se baseava em tratamento muito conceituado na época. Como Hazzard observou em seu livro, o jejum para saúde e desenvolvimento espiritual é uma ideia antiga, praticada tanto por iogues quanto por Jesus Cristo. Os antigos gregos acreditavam que demônios podiam entrar na boca durante a refeição, o que ajudou a incentivar a ideia do jejum para purificação. Pitágoras, Moisés e João Batista reconheceram o poder espiritual do jejum, enquanto Cotton Mather acreditava que a oração e o jejum resolveriam a epidemia de "bruxaria" de Salem.
A prática experimentou um renascimento no final do século XIX, quando um médico chamado Edward Dewey escreveu um livro no qual defendia que "toda doença que aflige a humanidade se desenvolve a partir de uma alimentação mais ou menos habitual e no excesso de sucos gástricos". O paciente de Dewey e mais tarde editor, Charles Haskel, declarou-se "milagrosamente curado" após um jejum prolongado. Ele ajudou a promover a ideia de passar fome fazia bem. A ideia de jejuar para ter saúde ainda existe, é claro: hoje existem dietas de limpeza com sucos e dietas de privação de calorias, mas nada tão radical.
Em 1911, o júri do julgamento de Hazzard não se convenceu com as alegações de perseguição sustentadas por ela. Após um breve período de deliberação, o veredicto foi de homicídio. Hazzard foi condenada a trabalhos forçados na penitenciária de Walla Walla, e sua licença médica foi cassada (por razões desconhecidas, ela foi posteriormente perdoada pelo governador, embora sua licença nunca tenha sido reintegrada). Ela cumpriu dois anos de prisão em jejum para provar o valor de seu regime, e depois se mudou para a Nova Zelândia para se aproximar de seus apoiadores. Em 1920, ela retornou a Olalla para finalmente construir o sanatório dos seus sonhos, chamando o prédio de "escola de saúde".
O instituto foi destruído por um incêndio em 1935 e, três anos depois, Hazzard, então com pouco mais de 70 anos, adoeceu e iniciou um jejum por conta própria. O jejum não conseguiu restaurá-la, e ela faleceu logo em seguida.
Hoje, tudo o que resta de seu sanatório são uma torre de concreto e as ruínas da fundação do prédio, ambas cobertas de mato. O local de seus escritórios no centro de Seattle, o prédio do Northern Bank and Trust, na esquina da Fourth com a Pike, ainda existe, e os compradores e turistas que lotam as ruas abaixo desconhecem o que aconteceu ali um dia.
A médica da fome, como ficou conhecida, Hazzard, é um exemplo extremo de como controle e autoridade pode ser exercido sobre pessoas comuns com resultados mortais.




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