QUARTO PILAR
ATMOSFERA SUFOCANTE E ESMAGADORA
Deixe-me mostrar-lhe o que se esconde nos espaços vazios
onde os pesadelos não ousam pisar.”
* * *
Se os Pilares anteriores tratavam da condição humana e de suas limitações diante do incompreensível, este trata da forma como essa experiência é comunicada — tanto ao leitor quanto ao personagem.
Ele trata de situar um background, quase pintar uma paisagem na qual os Horrores humanos e inumanos se perfilam diante. Pois tão importante quanto tratar dos personagens é contextualizar o ambiente no qual eles estão inseridos. Este não é um local abstrato ou um ambiente neutro, mas quase que, por si só, um personagem que irá compor o drama do Horror Cósmico.
Um elemento central para compreender qual a Atmosfera mais adequado a esse gênero de Terror é partir do princípio que o Horror Cósmico não se mostra, ele se insinua.
O medo não está no que se vê, mas no que não pode ser plenamente percebido.
Trata-se mais de uma sensação difícil de descrever em palavras, de um pressentimento de estranheza que permeia os sentidos, de algo que está diante de nossos olhos, mas que mesmo assim não conseguimos perceber em toda a sua majestosa forma pois não somos treinados para perceber tal coisa.
Muitas histórias que tratam do Horror Cósmico conseguem passar essa impressão de um ambiente conspurcado por forças incompreensíveis que são sufocantes e esmagadoras. Talvez uma das melhores histórias de Horror Cósmico a compor ambiente e narrativa seja "Os Salgueiros" (The Willows) de Algeirn Blackwood. Essa história, celebrada pelo próprio H.P. Lovecraft como uma das melhores narrativas de Horror Cósmico jamais escritas, se passa em uma região inóspita do Leste Europeu, onde florestas fechadas, tomadas por salgueiros, e um rio sinuoso se apresentam como cenário ideal para o terror que se apresenta. E é impossível dissociar o local onde se passa a história do horror que a permeia.
É quase como se as coisas indescritíveis tivessem se misturado com a natureza selvagem.
Esse é um dos atributos mais insidiosos do Horror Cósmico: ser ele uma força transformadora do ambiente. Nada fica imune a sua presença. A natureza por mais que tente, acaba se dobrando a sua aproximação. A transformação do ambiente pode ser sutil, mas ela estará em curso no exato momento em que foi tocada por essa força.
Imagine um lago em uma reserva selvagem, um lugar intocado pelas mãos do homem que por séculos conservou uma aura de perene pureza. Agora, imagine, se for capaz, que ocorre uma terrível contaminação: que uma indústria joga nesse lago barris com material radioativo altamente tóxico. No exato momento que os barris afundam nada de ruim parece acontecer, mas o lago doravante já estará condenado. A mudança não será perceptível de imediato, mas aos poucos o ambiente irá se alterar - peixes irão morrer, a vegetação irá se tornar frágil e amarelada, um cheiro estranho virá à tona, bolhas se formam no fundo do lago e estouram na sua superfície antes tranquila. A cor da água pode se alterar, assim como a vida em seu interior exposta a elementos mutagênicos.
Para o observador incauto, por algum tempo o lago continuará normal, embora esses sinais possam ser percebidos. Como nosso lago hipotético, cuja aparência continuará bela por algum tempo, o ambiente tocado pelo Horror Cósmico também sofre mudanças graduais que terminarão por arruiná-lo para sempre.
Saber transmitir os elementos que mostram a degradação e a marcha para a ruína é de suma importância para uma história de Horror Cósmico.
Aplicando a Atmosfera ideal em sua mesa de RPG:
É nesse pilar que o Guardião de Chamado de Cthulhu realmente brilha com sua capacidade de descrever o ambiente e de construir um panorama macabro capaz de envolver sua trama.
A Atmosfera é de enorme importância para a criação de um cenário de Horror Cósmico.
Em detrimento dela, centrando apenas no elemento humano ou alienígena, a história irá parecer incompleta. É necessário fornecer aos jogadores os indícios de como o mundo ao redor de seus personagens está se tornando caótico e surreal, como os tentáculos do Mythos estão manipulando a paisagem e a transformando em algo irreconhecível para os olhos humanos.
Mas como fazer isso de uma maneira que não entregue o componente alienígena? Como fazer essa revelação ser gradual? E como, por fim, remover o véu e deixar a sanidade dos personagens ser pulverizada?
Aqui estamos nós para fornecer algumas sugestões para sua mesa de jogo, como sempre, fique à vontade para incorporar aquilo que acha interessante e desconsidere o restante.
O terror do indizível
O Horror Cósmico é um horror de revelação parcial.
O terror supremo não reside na aparição da criatura ou na explicação do fenômeno, mas na suspensão das crenças estabelecidas e no surgimento de uma incerteza que substitui todas as certezas até então. Os personagens deixam de acreditar naquilo que até então era concreto e imutável e são confrontados por algo que simplesmente "não pode ser".
É a súbita consciência de que algo existe, mas escapa à capacidade de compreensão. A razão não consegue se enquadrar nessa inconstante revelada. É como tentar encaixar uma forma quadrada em um buraco triangular. Por mais que se tente fazê-lo, ela não irá encaixar e quanto mais se forçar, maior será o dano (no caso à sanidade).
A atmosfera é, portanto, o meio através do qual o indizível se manifesta.
O mundo é tomado por uma presença difusa, algo que distorce o natural — um leve deslocamento na ordem das coisas, como se o real estivesse se desfazendo lentamente, derretendo como uma vela de cera que se distorce e modifica em seu formato final.
Tenha em mente que o Horror Cósmico é o terror do quase.
- As coisas, ainda que gigantescas e grotescas, jamais são vistas por completo. Ao pressentir que algo habita as fossas marinhas, centenas de metros abaixo da superfície, o que as testemunhas percebem é meramente uma sombra no abismo, bolhas revoltas subindo à superfície, uma perturbação momentânea que sacode o barco em que estão. Mas em seu íntimo, eles sabem que que tais fenômenos não poderiam ser causados por nada, senão uma forma colossal se deslocando nas profundezas insondáveis.
- uma voz quase ouvida - Da mesma maneira, sons bizarros e incompreensíveis podem acrescentar muito ao ambiente que se deseja criar. Imagine um grupo em seu acampamento nas estepes nevadas, tentando descansar após um dia de extenuante atividade. De repente um som gutural, impossível de ser produzido por qualquer garganta humana ou animal, se espalha pela planície como um mau agouro. O que teria produzido aquele barulho horrendo? Qual poderia ter sido a sua fonte? Os personagens não ousam conjecturar o que poderia ser, a única certeza é que não é nada que eles conheçam.
- um significado quase compreendido - Finalmente, permita que o grupo tente buscar uma explicação para o indizível. Se quiser, você, como Guardião, pode até tentar oferecer uma explicação razoável para um evento aliviando o terror momentaneamente, apenas para contradizer a teoria na sequência. Como explicar um brilho repentino no meio da madrugada? Poderia ter sido uma estrela cadente ou uma reflexão da lua, nada além disso. Mas logo em seguida, contradiga essa explicação, mostrando que ela não é razoável. Nenhuma estrela brilharia assim ou a lua está oculta atrás de nuvens. Quando você oferece uma explicação e logo em seguida a contradiz cria uma incerteza gritante de que nada é o que parece ser.
Essa ambiguidade narrativa, na qual algo acontece, mas não se sabe o que, desperta a imaginação do leitor, e é justamente ela que o perturba mais profundamente do que qualquer descrição explícita.
O não dito como força narrativa
Lovecraft compreendia — como os mestres do terror psicológico também compreendem — que mostrar demais é anular o mistério. O desconhecido, por definição, precisa permanecer desconhecido. Assim, o horror cósmico se sustenta em silêncios, lacunas e ambiguidades que podem jamais ser preenchidas.
Se bem feito, isso irá causar uma inquietação enorme e contribuir para a aura de dúvida existencial tão bem vinda para a história. Mas cuidado! Se usado repetidas vezes, isso pode frustrar os jogadores. O ponto de equilíbrio é dosas as explicações e deixar que eles próprios, tirem suas conclusões do que aconteceu. Não raramente isso se mostra muito mais assustador para os próprios jogadores, visto que eles irão recorrer aos seus próprios medos para preencher o que não foi dito. E nada é mais desejável numa mesa de horror do que alimentar medos particulares.
As obras que exploram essa sugestão não têm pressa. Elas constroem lentamente uma tensão atmosférica feita de ruídos, sombras e sinais que podem ser quase imperceptíveis.
O ambiente é como um ser vivo que observa a interação dos personagens com ele próprio. As formas perdem nitidez, no canto dos olhos formas sinistras se movem, o tempo se torna instável dilatando ou se arrastando tortuosamente. Deixe o grupo ser sufocado aos poucos pela sensação de que algo errado está espreitando e que à qualquer momento jogará por cima deles uma teia da qual não será possível escapar.
A natureza manifesta sintomas
Em cenários de Horror Cósmico há tropos clássicos que funcionam perfeitamente. Os céus turvos cor de chumbo, os mares que se movem jogando de um lado para o outro, as florestas majestosas e silenciosas, as cidades decadentes com becos e ruelas escuras.
O cenário não é mero pano de fundo — é um agente ativo da inquietação. Esses espaços transmitem a ideia de que a realidade foi corrompida, contaminada e que está em processo de degradação por forças nefastas.
Permita incidentes atípicos e repentinos. Raios riscando o céu, trovões que reverberam, uma ventania que parece surgida de lugar nenhum, uma chuva fria e pesada que cobre os personagens. Costure esses elementos naturais na trama, como se eles estivessem fora do lugar.
O ar pode se tornar pesado, carregado com eletricidade estática ou repentinamente úmido. A geometria parece errada, com sombras assumindo ângulos absurdos e enlouquecedores. A sensação é de algo que não pertence a este mundo se manifestando à despeito da presença de testemunhas.
Use a paisagem circundante como reflexo do colapso existencial.
A sugestão como linguagem
A narrativa cósmica recorre à sugestão porque qualquer tentativa de descrição literal do inominável seria uma traição à própria ideia do inominável.
Assim, o texto opera por meio de sinais, símbolos e pressentimentos. JAMAIS explique o que se está vendo com clareza, é preciso haver sempre uma incerteza à respeito do que é presenciado. Lembre-se de que os sentidos humanos são ferramentas inadequadas para compreender a grandiosidade dos Mythos.
Em vez de dizer:
“Você vê uma criatura disforme colossal com tentáculos se erguer do mar.”
O autor insinua:
“Algo gigantesco e terrível se ergue das águas plácidas, rasgando a superfície como se irrompesse de outra realidade Você não consegue precisar seu tamanho ou conceber sua forma pois ela se espalha e se agita num frêmito doentio. É molhado e brilhante, viscoso ao ponto de jamais se misturar à água, como uma mancha de óleo. Você tenta racionalizar mas então se dá conta de que aquilo não deveria existir.”
A sugestão deixa espaço para a imaginação, o ouvinte se torna cúmplice na criação do horror. Na sua forma e na sua concepção geral. E a imaginação, movida pelo medo, produz terrores muito maiores do que qualquer descrição objetiva.
O tempo e o ritmo da apreensão
A atmosfera do Horror Cósmico é também uma questão de ritmo.
As histórias são lentas, densas, cheias de detalhes que parecem irrelevantes até que se tornam insuportavelmente significativos. Por exemplo, um vento estranho parece sempre soprar quando o grupo visita aquela fazenda decadente, mas só no momento culminante de horror eles se dão conta de que mesmo quando o vento está soprando para o outro lado, os galhos de uma árvore, no topo da ravina estão se movendo. Oh, Deus! Não são galhos!
O terror vai se insinuando aos poucos com sinais inócuos que mais tarde se tornam absurdos.
Em uma narrativa, um dos personagens manifesta uma estranha sensação, como se algo estivesse sempre se movendo por baixo de sua pele, como se houvesse uma coceira impossível de ser satisfeita e eliminada. Essa sensação surge em vários momentos da narrativa, sobretudo quando as revelações e estranhezas da trama vão surgindo. Ele arranha a pele, sente que algo está errado, mas não sabe o que. Então, no clímax, quando uma raça de insetos alienígenas inteligentes se revela, a coceira aumenta, a sensação de que algo rasteja sob a sua pele se torna insuportável e explode como se milhares de patas e antenas estivessem tocando e sondando sua pele nua.
A revelação é uma confirmação do bizarro, mas o verdadeiro horror não está no evento em si, mas no fato dele sempre ter estado ali.
Da mesma forma, tenha em mente que a atmosfera cósmica não busca o susto — busca o mal-estar prolongado. Chamado de Cthulhu não é um jogo de "jump scare" no qual o assassino surge do quartinho dos fundos irrompendo com um machado nas mãos. Não... esse é um jogo em que ao abrir a porta do tal quartinho, o que se vê é o assassino com o corpo cheio de cicatrizes e tatuagens que parecem se mover, sombras ao seu redor e ruídos dissonantes sussurrando em línguas mortas. Formas estranhas e etéreas flutuam, miasmas e odores ofensivos confrontam as testemunhas, as deixando parcialmente sem ação. E só então as mãos do maníaco se movem quase que em câmera lenta na direção do machado.
O ritmo dissonante coloca o personagem (e o jogador) numa posição de impotência, presos num mundo que lentamente se revela estranho, impuro e degradante. A sensação predominante é de se viver um pesadelo dissociativo.
É o sentimento de estar diante de uma realidade que não faz mais sentido, que muda e que se altera. Quanto mais o personagem tenta compreender aquilo, mais ela o engole.
A estética da obscuridade
No horror cósmico, a beleza se confunde com o abismo.
A narrativa pode ser lírica, quase poética, mas serve para acentuar o caráter sublime do horror — aquilo que é belo e terrível ao mesmo tempo. Esse é o mesmo “sublime” de Edmund Burke e Kant: o sentimento de estar diante de algo muito grande para ser racionalizado pela mente.
A atmosfera cósmica é, portanto, uma forma de expressão do sublime negativo na qual a experiência estética do colapso, da insignificância e da dissolução da razão é a meta almejada.
A atmosfera e a sugestão são os veículos sensoriais do horror cósmico. Não são apenas ferramentas estilísticas, mas expressões filosóficas do indizível. O medo nasce do vazio entre o que é percebido e o que é compreendido — um espaço de silêncio onde o jogador se torna coautor do pavor.
Ele nos faz sentir como se o chão sob nossos pés pudesse, a qualquer instante, desabar. Mas no fim, não é a penas o chão que desaba, mas a realidade que se desfaz.

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