sábado, 4 de fevereiro de 2017

Os Ladrões de Corpos - A Assustadora história de Burke e Hare


Em uma segunda feira, 3 de novembro de 1828, a cidade de Edinburgo acordou com horríveis notícias a respeito dos crimes mais atrozes praticados naquela década - talvez até, no século até então, como sugeriu um jornal. Os atos medonhos foram cometidos no distrito de West Port na parte antiga da cidade, conhecida por ser um lugar perigosos e escuro. Os criminosos eram William Burke e William Hare, que juntos com as comparsas Helen McDougal e Margaret Hare, eram acusados de matar nada menos do que 16 pessoas ao longo de doze meses.

O pior de tudo eram os motivos torpes para cometer os crimes. O grupo formava uma quadrilha que passou a ser notória em toda Escócia não apenas por serem ladrões de corpos, mas Assassinos impiedosos. O macabro bando liquidava suas vítimas e negociava os cadáveres de suas vítimas com hospitais, escolas e universidades médicas para suprir a demanda de espécimes para dissecação. O comprador dos cadáveres era ninguém menos do que o Dr. Robert Knox, um conhecido professor de anatomia de uma das mais conceituadas instituições da capital escocesa, o Surgeons College. A chocante investigação criminal e o subsequente julgamento levantou diversas questões delicadas sobre a prática da Medicina e a melhor maneira de se obter espécimes para que os médicos pudessem aprender seu ofício. Trouxe também uma série de questionamentos a respeito da maneira como a força policial estava equipada para a tarefa de proteger o público.

Os dois criminosos retratados na época do julgamento.
Os crimes foram revelados quando dois inquilinos de Burke, Ann e James Gray, começaram a suspeitar do misterioso desaparecimento de uma hóspede, Madgy Docherty, que eles haviam conhecido na Pensão de Hare uma noite antes. Eles encontraram o que parecia ser indícios de luta em um dos quartos e manchas de sangue no assoalho. Seguindo o rastro encontraram o corpo sem vida de Docherty escondido em baixo da cama de um aposento trancado. "A expressão de horror na face pálida da pobre mulher fez com que procurássemos a polícia", contou Gray mais tarde.

Burke, McDougal, e os Hare foram presos pelo assassinato de Docherty. William e Margaret Hare aceitaram delatar seus comparsas, convertendo-se em testemunhas. A narrativa do casal para a promotoria, em troca de imunidade, revelou um caso ainda mais macabro que deixou a cidade em estado de choque. Burke e McDougal foram julgados por assassinato em Dezembro de 1828. Contra McDougal as provas não foram suficientemente conclusivas e ela acabou sendo liberada, já Burke foi sentenciado à morte. Ele foi executado em 28 de janeiro de 1829. Seu corpo ironicamente foi enviado para o Colégio de Medicina, dissecado e publicamente exibido para os curiosos. O método usado pela quadrilha para matar suas vítimas, sufocamento através de pressão compressora sobre o peito, passou a ser conhecido universalmente como "burking", uma forma cruel de matar usando o peso corporal em um processo de esmagamento dos pulmões. As vítimas morriam de hemorragia, literalmente afogando-se em seu próprio sangue.

A história de Burke e Hare, no entanto, não parou por aí. Ela encontrou seu caminho através de revistas populares, os chamados Penny Dreadful, publicações baratas vendidas para os cidadãos sedentos por narrativas criminais sanguinolentas e escandalosas. Publicado em semanários como a Blackwood's Magazine, a história se tornou famosa em toda Europa, chegando à América. O estardalhaço foi tamanho que o famoso autor Robert Louis Stevenson - de O Médico e o Monstro, escreveu um romance baseado no caso e uma peça de teatro foi encenada com enorme sucesso. Até o famoso Museu de cera de Madame Tussaud ganhou uma ala com os assassinos retratados em sua horrenda rotina homicida.

Burke e Hare carregando uma de suas vítimas
Mas o que levou esse seleto grupo a escrever seus nomes entre os mais temidos e mórbidos assassinos de sua época?

Antes de se voltarem para uma vida de crimes, nem William Burke e tampouco William Hare tinham qualquer passagem pela justiça ou histórico de comportamento criminoso. William Burke era natural da Irlanda, um jovem imigrante em busca de oportunidades na cidade grande. Ele havia chegado à Escócia em 1817 para trabalhar como marinheiro, mas acabou servindo como pedreiro na construção do Union Canal. Ele era casado e  tinha duas crianças na Irlanda, mas quando escrevia para a família, era enfático dizendo que eles jamais deveriam se juntar a ele:

"A vida em Edimburgo é terrível, tudo é triste e cinzento. A desesperança está em cada canto. As pessoas não vivem nessa cidade, elas fazem o necessário para sobreviver", escreveu para a esposa. Burke provavelmente conheceu Helen McDougal quando trabalhava na grande obra do canal próximo a Sterling. Em meados de 1828, o casal decidiu viver junto, convivência que resultou em um relacionamento longo de 10 anos que muitos acreditavam ser um casamento respeitável. Burke trabalhava em várias atividades, eventualmente se tornando sapateiro, moleiro e entregador. Ele sabia ler e escrever, o que não era comum para alguém de sua classe social, também era um sujeito charmoso e persuasivo, requisitos necessários para todo assassino em série prolífico.

William Hare também havia chegado a Edimburgo como operário; ele trabalhou na mesma grande obra do canal, vendeu peixe e foi atendente em um pub. Casou-se com Margaret Hare por volta de 1826. Ela era uma viúva; seu marido possuía uma pensão barata em Tanner's Close no West Port, uma das regiões mais pobres e perigosas da cidade. Margaret assumiu o negócio depois da morte do marido. Ela tinha apenas um filho de seu prévio casamento, e outra com Hare. Essa segunda era um bebê na época do julgamento, e portanto, é razoável afirmar que ela estava grávida na época dos horríveis crimes.

Burking
Burke e Hare admitiram a participação em 16 homicídios. Todos que conheciam a dupla e suas esposas afirmaram que as mulheres deviam saber a respeito dos acontecimentos e que provavelmente teriam ajudado nos crimes, ou ao menos facilitado as mortes. Burke e Hare dividiam o dinheiro que recebiam pelas entregas, enquanto Margaret Hare descontava sempre uma libra pelo uso da pensão onde ocorriam as mortes. Muitas pessoas assumem que Helen McDougal era apenas uma cúmplice menor, mas sua ligação com a quadrilha era óbvia. Alguns afirmaram que cabia a ela selecionar muitas das vítimas e direcioná-las para seu fim na pensão. Também provou-se durante o julgamento que ela tinha em sua posse as roupas pertencentes a uma vítima, Mary Paterson. Burke, no entanto, conseguiu livrar sua companheira da forca, afirmando que ela não tivera participação em nenhum dos assassinatos e que ela meramente acreditava que o grupo era parte de uma quadrilha de ressurrecionistas, ladrões de sepulturas. Esses bandos invadiam cemitérios e escavavam sepulturas para abastecer os colégios de medicina com cadáveres recém enterrados. 

O primeiro cadáver obtido por William Burke e William Hare havia morrido de causas naturais na pensão de Hare. Foi a facilidade com a qual o cadáver foi vendido e o alto preço da negociação que fez com que os dois concluíssem que poderiam ficar ricos com essa atividade. Cada cadáver era vendido por oito ou dez libras, uma verdadeira fortuna na época. Um negócio tão bom que Burke teria dito, "só um idiota pararia depois de fazer pela primeira vez." E eles continuaram: entre janeiro a outubro de 1828, mataram um total de três homens, doze mulheres e uma criança. 

Os três homicídios que concentraram a atenção da opinião pública envolviam Mary Paterson, James Wilson (conhecido como Daft Jamie) e Madgy (Margery) Docherty. Paterson, também identificada como Mary Mitchell, era uma "garota das ruas", uma designação comum para as prostituta. Circulavam rumores de que ela era extraordinariamente atraente. Wilson por sua vez era um sujeito bastante conhecido na região, com uma mãe e irmã, que viviam praticamente como vizinhas da Pensão Hare. Docherty a vítima derradeira, e o único cadáver encontrado pela polícia, havia chegado recentemente a Edimburgo e poucas pessoas a conheciam. Essas três vítimas foram as mais citadas no julgamento, e em virtude das estórias descritas nas publicações de época, verdadeiras ou inventadas, são aquelas de que se sabe algo de concreto hoje em dia. Durante o curso do julgamento, Hare entrou em contradição a respeito do número de vítimas, dizendo em determinado momento que havia perdido a conta dos homicídios cometidos. Em outros casos, ele parecia perfeitamente seguro sobre quantas pessoas pereceram em suas mãos. Dezesseis foi o número final, mas a certa altura do inquérito ele reconheceu que poderiam ter sido muito mais, "entre 20 e 30, embora 40 mortes possam não ser um exagero", disse em certa ocasião.

O Dr. Knox, retratado como um Cientista louco de sua época.
O médico Robert Knox, Professor do Royal College of Surgeons de Edinburgh, comprou todos os dezessete cadáveres oferecidos por Burke e Hare. O primeiro havia morrido de causas naturais, mas os demais eram fruto de crimes. Médicos atualmente são unânimes em afirma que ele poderia facilmente concluir que haviam sido vítimas de homicídio. Um simples exame apontaria para violência como causa da morte. As vítimas passavam pelo método de execução da quadrilha, o "burking"  uma maneira eficaz de matar sem danificar demasiadamente o espécime. O papel de Knox, durante o processo sempre foi considerado enigmático. Seu advogado afirmou até o fim que ele desconhecia a procedência dos cadáveres e que acreditava serem eles parte do comércio de defuntos necessário para abastecer os colégios e universidades locais. Os promotores falharam em provar que Knox sabia o que estava acontecendo, e conseguiram apenas que ele fosse culpado de "não perguntar a procedência dos corpos" e por negociar cadáveres para as lições de anatomia. É provável que tendo grande influência na época, Knox tenha conseguido abafar o escândalo se eximindo de culpa. 

Apesar de ter se livrado de uma punição mais severa, Knox ficou marcado pelo caso. Caricaturas dele na época, o comparavam a um açougueiro perguntando aos assassinos se a carne estava fresca. Ele também ganhou o apelido de "Dr. Ghoul" (carniçal) um monstro mítico que devorava cadáveres frescos. Mesmo assim, grandes jornais se limitaram a dar destaque menor a sua participação. Depois do escândalo, Knox foi afastado do Royal College, mas continuou atendendo a clientes e no fim de sua carreira voltou a lecionar para turmas de novos médicos.

É curioso, mas nem todos os cadáveres vendidos a Knox e por conseguinte ao Royal College foram dissecados nas aulas do curso de anatomia. Isso levanta suspeitas de que Knox poderia estar agenciando a venda de cadáveres para outras instituições de ensino. Parte dos cadáveres jamais foram dissecados, ao menos não no Royal College o que gera dúvidas a respeito do destino dos corpos, um tema soturno tratado pela imprensa da época da maneira mais escandalosa possível. Alguns afirmavam que eles teriam sido dissolvidos com ácido e cal virgem afim de aproveitar seus ossos nos mais variados fins (até teclas de piano eles poderiam ter virado!). Outros sugeriam que os cadáveres teriam sido vendidos para inescrupulosos donos de restaurantes que teriam usado a carne fresca para incrementar seu cardápio. Finalmente, haviam aqueles que apontavam para missas negras e cerimônias profanas presididas pelo Hellfire Club (o Clube do Fogo do Inferno), uma instituição que gozava da pior reputação possível.

Filme britânico de 1972 a respeito da vida dos criminosos.
Também existia outra possibilidade. Knox precisava dos cadáveres não apenas para os cursos básicos de anatomia, mas para experiências mais ousadas, entre as quais programas de comparação anatômica que ele coordenava. O médico havia se tornado curador do Museu do Colégio de Cirurgiões de Edimburgo, e também estava escrevendo livros a respeito de anatomia. Entre seus interesses figurava o projeto de criar uma ala no museu em que corpos e partes da anatomia humana seriam expostos, uma forma de desmistificar o temor das pessoas diante da morte. O projeto de Knox, contudo, nunca foi adiante.

O julgamento de dezembro de 1828 chamou a atenção das autoridades competentes para o imoral comércio de cadáveres na Grã-Bretanha uma prática ilegal, mas extremamente difundida e lucrativa. Na primavera anterior ao julgamento, bem antes do público tomar conhecimento a respeito das atividades de Burke e Hare, um comitê do Parlamento foi incumbido de investigar como os Colégios de Medicina e Universidades conseguiam seus espécimes. Os assassinatos em Edimburgo ajudaram a aprovar uma deliberação chamada Ato de Anatomia de 1832.  Através dessa medida, cadáveres de indigentes e de voluntários que aceitavam "vender seus corpos para a ciência" passaram a ser entregues às Instituições, pondo um fim aos negócios dos inescrupulosos Ressurrecionistas. 

Desse mesmo ato surgiu uma espécie de colaboração entre a força policial e as escolas de medicina. Após os crimes, Edimburgo resolveu se modernizar quanto forma de buscar Lei e Ordem. A capital da Escócia tornou-se uma das cidades pioneiras quanto ao emprego de técnicas forenses como auxílio da investigação policial. A cidade foi uma das primeiras da Europa a estabelecer uma polícial de caráter profissional. A colaboração entre polícia e médicos também foi essencial para implementar o uso de técnicas para obtenção de evidências, criação de exames de autópsia e comparação de armas com ferimentos produzidos. A polícia fazia reconhecimento e registro fotográfico, além de muitas outras inovações. 

O Esqueleto de William Burke na Escola de Cirurgiões de Edinburgo
Não por acaso, a força policial de Londres "tomou emprestado" vários procedimentos criados em Edinburgo. Prova disso, é que o Departamento de Investigação da Capital do Império Britânico passou a ser chamado Scotland Yard (Quintal Escocês) em decorrência da quantidade de profissionais especialmente trazidos da Escócia para ensinar suas técnicas.

Os nomes Burke e Hare, no entanto se tornaram sinônimo de medo e crime em Edimburgo, e mesmo hoje são tidos como os mais notórios assassinos da história da Escócia. Ironicamente, o esqueleto de William Burke ainda é usado pela Escola de Medicina de Edinburgo como uma ferramenta de aprendizado, ele se tornou na morte, parte do comércio que fomentou ao longo de sua vida.

5 comentários:

  1. Engraçado como esse tipo de pessoa tem a tendência de ter sua "existência" prolongada. Seja o Diogo Alves com a cabeça no formol ou o Burke com seu esqueleto para estudos, he

    ResponderExcluir
  2. Eu sei que não tem nada a ver com a história, mas estou com uma dúvida, entre Grandes Contos de Lovecraft e Os Melhores Contos de Lovecraft qual é o mais completo ? e em ambos livros as histórias estão completamente inteiras ?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Opa, eu tenho um exemplar de "Os melhores contos de Lovecraft" aqui e posso dizer que adorei o livro, contem o essencial (nas montanhas da loucura, a busca onírica por Kadath, A sombra fora do tempo, os gatos de ulthar, Dagon e, claro, O chamado de Cthulhu) e alguns contos "esquecidos" pela comunidade (Os outros deuses, Celephaïs, ar frio, o que a lua traz consigo, etc...) não li ainda "Grandes contos de Lovecraft".
      E sim, todas as historias estão completas, não tem porque elas estarem incompletas também.

      Excluir
  3. Poderiam fazer uma matéria sobre o retorno da hq de terror, Dylan Dog, vencedora de 2 hq mix de melhor hq de terror e que retorna esse ano no Brasil pela editora Lorentz… tem o fraquinho filme Dylan Dog e as criaturas da noite…mas a HQ é muito boa vale a pena para quem gosta de terror.

    ResponderExcluir
  4. Caso intrigante. Muitas vezes somos induzidos a pensar que assassinos seriais são matadores psicóticos mas neste caso os envolvidos pareceram muito lúcidos com seu propósito sinistro.

    ResponderExcluir