Por Clayton Mamedes
Será apenas mais um?
Em geral não gosto de remakes. E creio que tenho toda a razão para tal. De uns quatro anos para cá, essa ondinha de refazer alguns filmes clássicos ganhou força em Hollywood. Títulos importantes de terror, como Sexta-Feira 13, Halloween, Horror em Amityville e Dia dos Mortos foram refilmados. Isso sem contar os filmes orientais que ganharam a versão americana, como O Grito e Uma Chamada Perdida. O que todos eles têm em comum: são horríveis, muito inferiores aos originais.
Porém, existem alguns remakes que são excelentes, adicionando novas perpectivas ao filme original, ou fazendo uma homenagem ao mesmo. Entre essas obras notórias eu incluo o excelente A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead) de Tom Savini, Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead) de Zack Snyder e Viagem Maldita (The Hills Have Eyes) de Alexandre Aja. Sim, estes são remakes que se destacam e muito no mar de mediocridade.
Este papo de remakes veio à minha mente ao ler um exemplar de Trail of Cthulhu que caiu no meu colo. Eu tinha a ideia fixa de que não valeria a pena aprender um novo sistema para jogar Cthulhu. Quase o mesmo raciocínio de pagar ingresso para assistir a um péssimo remake. Porém, desta vez, a refilmagem era das boas!
O Jogo
Creio que não há necessidade de muitas explicações sobre o estilo de jogo de Trail of Cthulhu: trata-se de um RPG baseado nos contos de H.P. Lovecraft, onde descobertas blasfemas, horrores ancestrais e a insanidade caminham lado a lado. Como todo bom remake, Trail of Cthulhu se baseia na mesma fonte que seu antecessor e inspirador, o clássico Call of Cthulhu, que para muitos, é o melhor RPG já lançado. Assim como no original, você interpreta um Investigador, que é arremessado contra o desconhecido sem pudor algum. O resultado é sempre catastrófico.
Muitos elegem Call of Cthulhu como o jogo de RPG mais letal que existe. E aqui em Trail of Cthulhu não é diferente. O risco de você perder o seu personagem é imenso, tanto na parte física quanto mental. É isso que faz a coisa ficar legal, pois nos contos de H.P. Lovecraft, o maligno quase sempre triunfa. Não é bem similar aos filmes de horror? Pense no final de O Bebê de Rosemary, O Exorcista e A Profecia, só pra citar alguns. Esta é a essência do gênero.
Falando em essência, os dois jogos são similares. O que é muito bem-vindo. Vale ressaltar que em Trail of Cthulhu não existe a opção de se jogar em outras épocas (em Call of Cthulhu existem parâmetros para 1890, 1920 e 1990), apenas os anos 30. Contudo é bem simples adaptar algo para outros anos, requerendo apenas um pouco de pesquisa. Sinceramente, a ausência de tal característica é insignificante: prefiro jogos na década de 30 e as conversões que existem em Call of Cthulhu são tão básicas que nem fazem falta.
O Sistema
Trail of Cthulhu dá outros ares ao bom e velho Call of Cthulhu ao escolher um sistema de regras mais moderno e enxuto. O GUMSHOE é utilizado também em The Esoterrorists e Fear Itself, e se mostra como um sólido sistema para jogos investigativos.
Todo o livro é escrito sob dois pontos de vista: o estilo de jogo purista (mais fiel aos contos de H.P. Lovecraft) e pulp, inspirado nos trabalhos de Roberto E. Howard, o criador de Conan, o Bárbaro. Assim existem variações em algumas regras, como combate e construção de personagens. Estes são criados de uma maneira peculiar, já que em GUMSHOE não existem atributos. Os personagens são feitos através de distribuição de pontos em várias perícias. A quantidade de pontos inicial é definida de acordo com o número de jogadores presentes, sendo maior com menos pessoas. Existem perícias que fazem o papel de atributos, tais como Sanity, Stability e Athletics.
O processo de criação se inicia com a escolha da ocupação do personagem, em uma relação que apresenta as costumeiras profissões do universo de H.P. Lovecraft, como Diletante, Autor e etc. Cada ocupação acompanha uma lista de habilidades ocupacionais, a faixa de Credit Rating e uma habilidade especial (como um médico ter acesso a documentos médicos e áreas reclusas de hospital).
O próximo passo de criação de personagem é um dos mais interessantes do sistema: a definição dos Drives, ou Motivações – uma extensão dos Risk Factors como vistos em Fear Itself. Através da escolha de simples conceitos, como Curious, ou Duty, o personagem define a sua motivação e, consequentemente, o seu comportamento em situações de risco. Lembra-se daquele seu amigo que abriu a porta para verificar a fonte daquele uivo medonho sob a lua cheia? Ele não era tolo. Estava apenas seguindo o seu Drive de Curioso. O fato interessante é que ao negar esta característica, o personagem fica sujeito a perda de Stability. Existem alguns Drives inspirados no modo pulp, como Adventure e Revenge. Esta mecânica resulta em uma maneira simples e fluida de explicar a motivação e algumas ações durante o jogo, muito mais coesa do que um sistema de vantagens e desvantagens.
O toque final é dado pela definição das perícias ou habilidades, distribuindo os pontos definidos da maneira citada acima. Fácil.
O sistema de testes é muito simples e funcional, utilizando somente um dado de seis faces para os rolamentos, que devem bater uma dificuldade estipulada pelo Keeper. Cada perícia é acompanhada por uma pilha (ou pool), com um valor inicial igual ao seu nível. Em um teste desta perícia, o jogador pode gastar estes dados da pilha, adicionando 1 ao resultado final do rolamento – uma premiação pelo esforço extra.
O combate funciona de maneira peculiar: todos os seres possuem uma característica chamada de Hit Threshold, que estipula a facilidade com que são atingidos em combate. Um ser humano normal tem um HT de 3. Criaturas do Mythos têm geralmente um valor superior. Assim, o atacante deve rolar a sua perícia em combate (Scuffling, Firearms, etc) e tentar bater o Hit Threshold; em caso positivo, o ataque foi bem-sucedido e o dano é rolado, com um dado modificado pelo tipo de ataque (+2 para armas de fogo e por aí vai). O valor final é subtraído dos pontos de vida do alvo. Sem segredo.
Obviamente existem outras regras para os complicadores em combate, como explosões, combate em massa, cobertura, armadura, etc. Nada que fuja do normal e bem parecido com os outros títulos que utilizam o GUMSHOE.
A grande adição de Trail é, sem sombra de dúvida, a melhoria do sistema de sanidade que foi aprimorado a partir das mecânicas vistas em Fear Itself, com a inclusão da perícia Sanity, acompanhada pela pré-existente Stability.
Stability representa a resistência mental e emocional a diversos traumas, sejam eles naturais ou não. Funciona como se fosse a característica Health de sua mente. Já a Sanity é a capacidade de acreditar, temer, ou se preocupar sobre algum aspecto do mundo ou da humanidade como nós conhecemos. Enquanto Call of Cthulhu só utiliza um atributo destes, Trail já introduz as duas características com o objetivo de medir em separado a saúde mental e ignorância induzida pelo Mythos. Assim, temos o caso de Armitage, que apesar de ter lido o Necronomicon e enfrentado o horror de Dunwich, apresenta uma postura totalmente normal e equilibrada. Este é o resultado de uma mente que já perdeu alguns pontos de Sanity, mas ainda possui uma alta Stability.
Enquanto Stability pode ser minada também através de acontecimentos naturais (mortes, acidentes violentos, etc,), a Sanity só pode ser perdida por duas maneiras: quando o seu pool de Stability cai a 0 ou menos, através de um evento ligado ao Mythos; ou por você utilizar a perícia Cthulhu Mythos.
Quando sua Stability atinge 0 até -5, você está abalado, conseguindo executar o seu trabalho, mas de maneira distraída. Em jogo você não pode gastar pontos dos pools de perícias investigativas e a dificuldade para os outros rolamentos aumenta em 1. Com Stability indo de -6 até -11 a sua mente estará arruinada, e você adquire uma doença mental permanente acumulando os efeitos de estar em choque (acima). Suas únicas ações serão lutas descontroladas ou estupefatação incoerente. Você ainda perde 1 ponto permanente de Stability. Já quando o valor atinge -12 ou menos, você está permanentemente insano, e tem o direito de executar uma última ação maluca. Faça um outro personagem. Uma outra maneira de representar a Insanidade Temporária, Indefinida e Permanente de Call.
Existem ainda outros detalhes com referência à Sanidade, como destruição de Pilares de Sanidade e regrinhas para negar a perda de pontos, como questionar a realidade do evento (“Você tem fotos dessa criatura?”) ou desmaiar! Neste último caso, o personagem só perde 1 ponto de Sanidade mas não exerce ações na cena. Porém existem dicas para o Keeper usar o personagem desmaiado de maneiras criativas e cruéis, dando a entender que tal ação deve ser punida através da trama e interpretação. Uma boa ideia.
Outro aspecto importantíssimo do sistema é o tratamento diferenciado dado às pistas, de vital importância para um jogo investigativo. E a velha máxima GUMSHOE, já explorada nos outros títulos volta à tona:
Cenários investigativos não são sobre encontrar pistas.
Eles são sobre interpretar as pistas que você encontra.
Contudo em Trail of Cthulhu, esta abordagem ganhou alguns pormenores, como os Spends, Benefits e Dedicaded Pool Points. Ao encontrar uma pista, o jogador ou o Keeper pode sugerir a utilização de alguns pontos do pool da perícia correspondente. Ao fazer isso, o jogador adquire informações extras sobre a pista em si, gerando algum benefício futuro. Existe até mesmo uma tabela relacionando diversos benefícios em situações ou testes futuros que você poderia obter. Já os Dedicated Pool Points são pontos extras que garantem bônus em situações específicas: se você leu um tomo sobre as catacumbas subterrâneas de Paris, você pode aumentar o seu pool de Archeology quando estiver estudando algo relacionado.
A impressão final é que o sistema de regras é simples e enxuto, permitindo um excelente ritmo na partida. As regras de sanidade, sendo as mais importantes do gênero, foram lapidadas, resultando em mecânicas interessantes e bastante permissivas.
O Livro
Trail of Cthulhu nos é apresentado em um belo volume de 248 páginas, com a capa colorida e o interior em preto e branco. Porém não é um preto e branco qualquer: as belíssimas ilustrações possuem uma tonalidade sépia que, juntamente com as bordas douradas e fundo de páginas envelhecidas, nos remetem diretamente à leitura de um tomo antigo. O conteúdo é dividido ao longo de 7 capítulos e encerrado com excelente aventura introdutória (eba!) e o tradicional apêndice com referências e índices.
Entre os capítulos temos Introduction, The Investigator, Clues, Tests and Contests, The Cthulhu Mythos, The Thirties, Putting It All Together e Campaign Frames. Alguns possuem um evidente conteúdo, tendo como base o seu título. Porém outros merecem uns breves comentários.
O capítulo dedicado às Criaturas do Mythos é bem peculiar. Nas descrições das divindades, não existem quaisquer características, exceto as penalidades de Stability e Sanity. A descrição é composta basicamente por vários fatos arbitrários e misteriosos, pois o total conhecimento destes seres é realmente impossível de se possuir. E creio que não é necessário saber as estatísticas de Cthulhu ou Azathoth em combate...A seleção de seres é também um pouco diferente da encontrada em Call of Cthulhu: fiquei supreso ao ver Mordiggion, Mormo e Masqut. Na descrição das criaturas existe um campo chamado de Investigation, onde existem informações potenciais que podem ser obtidas pelos investigadores ao (1) falar com policiais, (2) coletar pistas e (3) utilizar técnicas forenses. Ao final temos breves descrições de tomos malditos, magias e cultos. Bem breves mesmo.
Já no capítulo The Thirties temos uma análise de várias regiões do globo sob o ponto de vista de atividades do Mythos, incluindo umas linhas sobre o nosso país, com comentários sobre o regime de Getúlio Vargas, a criação da Umbanda, informações sobre alguns eventos bizarros e o destino de Percy Fawcett na floresta brasileira. No mínimo curioso.
Em Putting It All Together e Campaign Frames existem diversos tópicos para auxílio ao Keeper, como dicas para manter o ritmo, variação de regras, estilo e etc. Útil, mas nada inovador.
No Apêndice, após as regras de conversão de Basic Roleplaying para GUMSHOE, temos a lista de referências, que é bem extensa e detalhada. Porém, só contabiliza várias fontes de literatura e mais uns quatro títulos de RPG. Ficaram de fora os outros RPGs do gênero e filmes.
Após terminar a leitura deste magnífico livro, posso afirmar categoricamente que se trata de uma das melhores obras em que já coloquei as mãos. Sem dúvida alguma Trail of Cthulhu conseguiu um lugar de honra em minha seleção, acompanhado dos também excelentes e lendários Call of Cthulhu, Kult e Don’t Rest Your Head - uma pequena lista dos melhores livros básicos de RPG que pude ler.
Se fosse para dar uma nota seria um 10 bem cheio: uma obra completa e repleta de qualidades, não apenas mais um remake caça-níqueis, mas sim uma verdadeira homenagem que, em certos momentos, supera o original.
Se tiver a oportunidade, leia. Se puder, jogue. Se achar, compre.
Trail of Cthulhu
Autoria: Kenneth Hite e Robin D. Laws (regras)
Arte: Jérôme Huguenin
Editora: Pelgrane Press, 2007
Formato: Capa dura, preto e branco, 248 páginas
Sistema: GUMSHOE
Idioma: Inglês
Preço: US$ 20,95 (PDF) e US$ 39,95 (impresso + PDF)
Excelente review. Apenas uma observação, o Rastro de Cthulhu (como será o título d aversão nacional) tem interior colorido e não p&b.
ResponderExcluirÓtimo Review, deixa a gente ansioso pela publicação nacional, e por um evento do Blog Sai da masmorra para jogar pelo menos um one-shot.
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