Os jogadores se entreolham preocupados:
"Eu paro na escada". diz um deles.
"Eu tento ouvir alguma coisa, enquanto espero no alto da escada"
"Eu não vou na frente!" exclama o terceiro.
"Vocês não ouvem nada" diz o mestre depois de rolar distraidamente os dados. "Quieto como uma tumba!" diz sorrindo,
"Meu Deus, está muito quieto"
"Só pode ser uma emboscada! Eu já vi isso acontecer antes, a gente desce e... créu!"
"Eu não vou na frente!"
Preocupado, o mestre tenta incentivar o grupo: "A investigação os trouxe até esse ponto, pessoal. Investigar o porão onde os crimes do maníaco do machado aconteceram é importante para juntar as peças do caso". diz ele.
"Mas e se tiver alguém lá embaixo?"
"Podemos chamar a polícia ou descer com o NPC detetive que tem a espingarda"
"Eu já disse que não vou na frente!"
Medo, terror, paranóia...
Há momentos em que uma campanha de horror acaba sendo sufocada pelo medo dos jogadores de que seus personagens morram, o que começa a atrapalhar o andamento das sessões. Quando isso acontece o que fazer?
Antes de tudo temos de reconhecer. A fama que precede os jogos com temática de terror é verdadeira, sobretudo no que diz respeito a jogos de horror cósmico. Em nenhum outro gênero de RPG a morte é uma realidade tão próxima dos personagens e em poucas ambientações a mortalidade é tão acentuada. Para muitos essa é a graça do jogo, o risco que sempre existe de morrer, enlouquecer, ser destruído... acabar obliterado da própria realidade.
Nesse contexto, com o risco de morte sempre fungando no cangote, torna-se natural que os jogadores tentem se resguardar. O problema é que isso tende a atrapalhar o andamento da sessão. Já tive mesas de jogadores que não queriam ler um livro que sequer era relacionado com os Mythos por temer um rolamento de sanidade. Em outra aventura o grupo ficou tão apavorado com a perspectiva de sair de uma casa depois de ouvir um som na floresta que resolveu dormir no lugar.
Essas coisas acontecem, temer pela morte de um personagem demonstra que o jogador se importa com ele, por outro lado quando isso começa a atrapalhar a narrativa, medidas precisam ser tomadas.
Então vamos a elas:
1 - Recompense a Coragem
"O Risco sempre existe!" - Aliens
Há jogadores que são corajosos, que não se importam em sujar as mãos e correr riscos para fazer o que é preciso. Estes são os indivíduos que entram de cabeça na investigação, que invadem a casa mal assombrada no meio da madrugada, que mergulham no lago escuro sem saber a profundidade, que conjuram a magia desconhecida ou que agarram o cultista à unha.
Quando esses personagens entram em cena, o keeper sabe que as coisas vão ficar divertidas. Então porque não recompensar esses caras? Em Call of Cthulhu não existe experiência ou action points para serem distribuídos, mas isso não impede o keeper de conceder alguns pequenos benefícios que estimulam a bravura. O keeper pode incentivar ações de coragem concedendo um bônus em rolamentos quando uma ação é feita com bravura ou coragem. Por exemplo +10% no roll de Jump para o primeiro jogador que tenta saltar um vão entre prédios para continuar perseguindo um fugitivo. Ou um bônus para o jogador que salta na água para resgatar um colega que está se afogando.
Chame isso de adrenalina bombando, coragem, bravura, desprendimento, sorte dos tolos... chame do que quiser, mas coragem em certos momentos tem que ser reconhecida.
Essa é uma regra caseira que eu usei em uma mesa pulp. Os jogadores ganham um bônus de até 20% quando realizavam um ato de bravura demonstrando a forte convicção do personagem. Isso incentiva o grupo a tentar ações arriscadas, mas é importante que eles não se tornem dependente desse bônus e que não esperem recebê-lo sempre.
Outra coisa: é importante traçar uma linha distinta entre coragem e estupidez. Em certos momentos, o jogador pode confundir bravura com burrice, e nesse caso o mestre não deve conceder qualquer benefício. Saltar sobre um cultista que brande uma faca é uma coisa, se engalfinhar com um Formless Spawn de Tsathogua é outra bem diferente.
2 - Punindo a Covardia injustificada
"Run rabbit run, dig that hole forget the sun" - Pink Floyd
Ser precavido é importante. Manter a calma, analisar a situação e pensar duas vezes é vital em jogos de horror. Mas chega um momento em que a falta de ação dos personagens começa a causar danos a narrativa e ao próprio funcionamento do jogo.
Da mesma forma que os personagens podem ser recompensados por bravura, eles podem ser penalizados pela covardia. Uma maneira clássica de punir a covardia é fazer com que o jogador covarde tenha uma chance maior de ser atingido pelos ataques dos inimigos. É até bem lógico que o indivíduo encolhido e estático durante uma luta seja o alvo dos ataques.
Você já percebeu nos filmes quando um sujeito banca o covarde e foge de uma luta ele acaba se dando mal? Pois bem, da próxima vez que um dos personagens sair correndo da luta que tal colocar mais inimigos vindo justamente da direção para onde ele correu?
O keeper deve estar ciente de que em certos momentos a hesitação dos jogadores é justificável. Punir um jogador que tenta escapar de um Shoggoth não faz sentido.
3 - Tudo tem a ver com o estilo
"Sabe qual a diferença entre você e eu? Eu faço isso parecer lindo!" - Homens de Preto
Não é raro que as lutas sejam caóticas, ainda mais em jogos em que os personagens nem sempre possuem grande familiariadde com as armas. Os jogadores se sentem um tanto reticentes em atacar sabendo que uma porcentagem pequena não terá grande chance de se converter em sucesso.
Uma forma interessante de incentivar os jogadores é descrever o resultado dos sucessos de forma eloquente e detalhada. Por exemplo: A jovem professora de literatura jamais se envolveu em uma luta, mas em um momento de desespero desfere um chute e acerta (apesar de ter o nível básico). Ao invés do mestre apenas dizer: "Ok, você acertou! Role o dano e depois vamos ver quem é o próximo..." que tal descrever o seguinte:
"O cultista sorri maliciosamente enquanto segura a medonha faca curva. Diante da visão aterrorizante, você tenta manter a calma e deixa que ele se aproxime como se estivesse apavorada demais para agir. Quando ele está próximo você avança e lembrando as aulas de balé lança o pé na direção do malfeitor. O chute o acerta na linha da virilha, o sujeito arregala os olhos e solta um suspiro fino enquanto arqueja gemendo de dor".
Esse é o tipo de desenrolar de uma situação que agrada a todos na mesa e que faz os jogadores querer acertar.
4 - Lembre-os de suas motivações
"Faça! Se preciso feche os olhos, mas faça!" - Zombieland
Porque o grupo se envolveu na investigação do mistério?
As incertezas do grupo diante de uma investigação do desconhecido são aceitáveis, nenhum grupo de pessoas razoáveis adentra uma casa assombrada, pesquisa coisas aterrorizantes ou se envolve com cultos satânicos sem ponderar sobre os riscos inerentes.
Por isso as motivações do grupo devem ser bem determinadas. Qual a motivação do personagem? O que ele pretende com essa investigação? Será uma forma de extrair vingança do culto que assassinou seu grande amor? Será a curiosidade científica? O personagem pode estar em busca do paradeiro de um velho amigo?
Cada personagem pode ter a sua própria motivação, embora seja possível não é necessário que o grupo inteiro esteja unido pela mesma razão, cada um pode ter seus motivos para mergulhar de cabeça em um caso.
Em momentos de dúvida ou temor, lembre aos jogadores o que significa para seus personagens ir até o fim da investigação. Se eles forem bons jogadores vão aceitar os riscos em nome da causa que eles próprios acolheram.
5 - Lembre-os do bem "maior".
"Cruzar o feixe de partículas? Eu adorei esse plano!" - Os Caçafantasmas
Não são raras as vezes que uma investigação dos Mythos conduz a revelações bombásticas. Cultos planejam o retorno dos antigos, a invocação de uma força ancestral é capaz de destruir uma cidade, a realização de um ritual em massa assassinará milhares de pessoas inocentes...
O grande problema de enfrentar os horrores dos Mitos é que eles são incrivelmente poderosos e que a realização de seus planos em geral atinge muitas pessoas. Às vezes tem repercussão em todo o planeta.
Em aventuras normais, os personagens tem a chance de abandonar a missão, desistir, ir para casa e se esconder de baixo da cama...
Em cenários de horror cósmico isso nem sempre é possível. Imagine a situação: os membros do Culto do Adormecido planejam conjurar o grande Ghsdidhjeu, uma entidade antidiluviana de maldade indescritível. Segundo as escrituras, essa coisa (a sopa de letrinhas acima) quando chegar irá submeter o planeta à sua vontade, escravizará a raça humana, destruirá as cidades, dará início a uma Era de Sangue e Morte, blá, blá, blá...
Responda rápido: Adiantaria nesse momento estar de baixo da cama?
Então meu caro, como investigador dos Mitos está na hora de bancar o herói e pensar no bem maior.
6 - "Essas coisas acontecem..."
"Empalado no século XXI? Como é que pode? Tantas formas de morrer e o cara acaba empalado?" - The Strain
Por vezes ser herói cobra um alto preço dos personagens.
Nem todos são capazes de suportar o fardo de enfrentar as forças esmagadoras dos Mythos e é natural que muitos caiam pelo caminho. A morte em cenários de horror cósmico é um fato, não se trata de uma possibilidade. Mais cedo ou mais tarde pode ter certeza de que alguém vai para a "terra dos pés juntos".
Em cenários de horror os personagens estão em desvantagem constante. Eles não são tão fortes quanto os servos dos Antigos. Eles não possuem acesso ao arsenal de magias dos feiticeiros. Os cultistas andam em hordas sempre em vantagem numérica. Fora isso eles tem que se preocupar em não ficar loucos diante das coisas que encontram no decorrer de uma investigação.
Aceitar que os personagens podem morrer à qualquer momento é uma das formas de se divertir em cenários de horror cósmico. Não é vergonha nenhuma morrer pelas mãos de um cultista ou encontrar a morte abrindo uma porta e sendo arrastado por uma massa de tentáculos.
Nessas ambientações a morte encerra o ciclo de um personagem, via de regra não existe retorno dos mortos (bem, existir até existe mas confie em mim, você não vai querer isso para seu personagem!). Então a dica que fica é: lute pelo seu personagem, tente salvá-lo à todo custo... mas se ele morrer, não leve as coisas tão à sério!
Eu já vi muitos jogadores dizer que não gostam de jogos de horror cósmico porque seus personagens são muito fracos e podem morrer à qualquer momento. Ora, essa é na minha opinião a graça do jogo. Nos RPG, os personagens em geral enfrentam dificuldades, missões perigosas ou buscas desesperadas. Em cenários de horror cósmico eles enfrentam o que existe de mais perigoso e terrível, tudo isso de mãos vazias. Esses caras são verdadeiros heróis, saliente isso.
7 - A Morte lhe cai bem!
"Deixe um cadáver belo e jovem, antes de se tornar feio e velho" - James Dean
Como eu disse antes, a morte é quase uma certeza em estórias de horror. Tome por exemplo os contos de Lovecraft: quantas vezes os protagonistas chegam inteiros à última linha da estória? Poucas!
E não é apenas na ficção de Lovecraft e de seus seguidores. Em contos, romances, filmes de terror a morte está em todo lugar e vai pegando um por um ds personagens. Desde o casal de namorados que sai para nadar nu no lago, passando pelo idiota da cidade que é assassinado na calada da noite, até o sujeito que vai verificar o estranho som vindo do porão.
Aceitar esse fato é importante, mas fazer com que a morte dos personagens principais seja memorável dá a eles um senso de respeito e apreciação.
Por exemplo: O Capitão Cooper e os sobreviventes de sua companhia fogem pela selva do Quênia perseguido por selvagens. Ferido no ombro, ele acaba ficando para trás. Cooper não consegue acompanhar seus colegas e os cultistas estão cada vez mais perto. O jogador resolve parar em uma clareira onde pode aproveitar a luz da lua cheia que desponta no céu. O keeper descreve: "os cultistas parecem ter invocado alguma coisa dos recônditos do tempo e do espaço. Você pode ouvir o som das enormes asas de couro se aproximando".
O jogador não se dá por vencido: "Já estou farto de fugir!" diz a si próprio engatilhando o rifle. Um cultista entra na clareira e é recebido por uma disparo certeiro. Seu peito explode em uma torrente de sangue. Um segundo investe gritando com uma lança. O Capitão não tem tempo de atirar, ele usa o rifle como porrete esmigalhando os dentes do selvagem. Mas nisso uma coisa se precipita do céu noturno. Um grande morcego humano, negro como a noite. O Capitão é ferido gravemente pelas garras da criatura. "Você pode até me matar... mas eu vou te levar junto!" e dizendo isso arranca o pino de uma granada antes de se jogar nos braços da criatura infernal.
Fazer da morte um momento inspirador é missão do Keeper. Acredite, é algo que ajuda os jogadores a aceitar a morte do personagem e faz com que haja um sentido (ainda que doentio) para seu sacrifício.
Bem é isso... espero que tenha ajudado, mas se seus jogadores estiverem apavorados em um cenário não leve para o lado pessoal, afinal isso significa que como mestre de uma aventura de terror você está conseguindo passar para eles uma parcela do sentimento dos personagens. O que é ótimo!
Particularmente todos essas ações tem um modo de resolver. Pra começar com o tal capitão eu particularmente usaria da seguinte estrategia:
ResponderExcluirEsperando o cultista apareçer eu usaria uma faca , enquanto me entrelaçava com o cultista , eu o matava e caia junto com ele fingindo de morto(claro o cultista deveria estar usando uma arma e usava a arma pra disfarçar errando o tiro ou passando de raspão em mim)
Quanto a morte de um personagem , me lembro da Dreamlands que é possivel passar pra lá ou depois de morto , perdeu a sanidade completamente ou dormindo.
Esqueçeu desse fato, ai pode dar continuidade as investigaçoes.
Excelente! Adorei o post.
ResponderExcluirPor mais sádico que pareça, a melhor forma de lidar com o medo de morrer dos jogadores é matando os personagens.
ResponderExcluirSempre que aparece um ou mais jogadores novos, eu dou uma forçada para pelo menos um deles morrer próximo ao final da sessão (já aconteceu de dar TPK, mas isso incorre em outros problemas de continuidade...)
Mas o mais importante é tentar dar um certo grau de justiça para toda e qualquer morte. Batendo as botas, um personagem pode trazer uma pista valiosa para a investigação, ou talvez salvar outro personagem.
Quando os jogadores perceberem que a morte de personagens faz parte da narrativa, eles entendem que faz parte do jogo. E jogadores que entendem o jogo voltam para as sessões seguintes.
Ah, e evite ao máximo matar jogadores no começo da sessão se não houver nenhuma forma aceitável de substituição, ninguém gosta de ficar 2 horas olhando para a parede.
não devemos esquecer a metáfora do menino holandês. A motivação do personagem em COC não é simplesmente a própria sobrevivência, mas sim se entregar ao inominável para salvar a humanidade
ResponderExcluirEu sei que se sintam. "jogadores não gostam de seus personagens são muito fracos e podem morrer à qualquer momento". Mas preste atenção, a metáfora é "Rato pode morder o Gato" Bem... Deve saber a inteligência é muito melhor do que os músculos, né?
ResponderExcluirPor exemplo:
"Essa página contém a poderosíssima magia que pode desaparecer o horror dos Mitos, mas custar a toda vida como sacrifico para salvar aos outros jogadores e salvar o todo mundo" Esse é ato heroico que se sacrificar sua própria vida... ou não, acaba ser teletransportado na outra dimensão como Randolph Carter.