por Rodrigo Spohr
comentários Luciano Giehl (em vermelho - me pareceu apropriado)
Sendo eu Mestre de RPG há nove anos, no início de minhas rolagens de dado, sentia algumas vezes que meus relatos de “gore-action” não era assim tão... efetivo.
Faltava uma descrição mais detalhista, aqueles pequenos detalhes que dão o toque especial em uma narrativa.
Como estudante de Medicina, comecei a aliar o conhecimento teórico/prático da faculdade para “apimentar” as descrições, e de fato acredito que tenha sido uma boa combinação.
A idéia não é dar aula de algum assunto teórico da área, e sim algumas dicas que considero relevante na descrição de lesões físicas (deixarei a parte neuropsicológica para outra hora, certo?), aliando o conhecimento dos vivos ao estudo dos mortos (uma boa pitada de medicina forense).
Aos valorosos (e azarados) viajantes, vamos lá!
Primeiro Capítulo: O Sangue
ou ainda, quando o sangue não acaba nunca!
"Ele entrou na sala, o lugar estava escuro e não era possível enxergar um palmo diante do nariz.
De repente deslizou em algo no chão e caiu estatelado. Sentiu o chão molhado, úmido, escorregadio... tateando os bolsos encontrou uma caixa de fósforos. As mãos tremiam e foi necessário empregar toda sua concentração para a tarefa de riscar um palito.
Quando a faísca produziu luz suficiente ele ficou chocado.
O chão estava pintado de vermelho e ele havia mergulhado em uma verdadeira piscina de sangue fresco. Daí vinha o fedor ocre que preenchia o ar estagnado da câmara. "Oh, meu d-d-Deus..." as palavras foram sussurradas e ele percebeu que estava gaguejando. Ficou horrorizado contemplando aquele panorama escarlate até a luz se extinguir e ele largar o fósforo que havia queimado seu dedo.
A escuridão pareceu até reconfortante."
1) O sangue em volume.
Na maioria dos filmes trashs que vemos por ai (e alguns não tão trashs assim), como pérolas do Quentin Tarantino (Cães de Aluguel, Pulp Fiction, e o épico da sanguinolência, Kill Bill, principalmente o volume 01), Re- Animator, os filmes de George Romero, etc, parece que o sangue não acaba... nunca!
Litros e litros esguicham sem parar, e a pessoa fica lá, tranqüila e serena, gritando e correndo. O x da questão é: quantos litros de sangue uma pessoa comum costuma ter?
Um adulto de 70kg costuma ter, de maneira geral, 7% do peso corporal em quantidade sanguínea circulante. Ou seja, este adulto teria 4,9 L correndo por suas veias. Essa quantidade pode ser maior ou menor dependendo de muitos fatores (ingestão de líquidos, doenças, queimaduras corporais), mas na prática costuma ser isto.
Ao perder 20% da quantidade corporal de sangue, o indivíduo passa a sentir os efeitos da perda de sangue (até essa quantidade é aceitável, por isso que podemos doar sangue sem nos preocuparmos, desde que nos encaixemos nos pré-requisitos dos bancos de sangue). Os efeitos registrados são aumento do número de batimentos cardíacos e palidez...mas ainda assim o indivíduo conseguiria correr razoavelmente.
Logo, pegando nossa cobaia de 70kg, que tem cerca de 5 litros ela poderia perder... bem, 1 litro de sangue que ainda estaria razoavelmente bem.
A grande dificuldade é quantificar isso, daí é legal tentar pensar em “garrafas de leite”: esta pessoa poderia perder uma “garrafa de leite” no chão, e ainda poderia estar caminhando rapidamente, correndo, etc, sem maiores dificuldades.
Esta noção pode ser útil para um narrador, quando o mesmo quiser descrever uma cena de crime: se a poça de sangue for de um tamanho compatível com uma “garrafa de leite” derramada, significa que, a não ser que a pessoa tenha sido atingida em um ponto vital (coração, uma grande artéria, cabeça, por exemplo), ela deve ter sobrevivido.
Um bom truque é visualizar da seguinte maneira. Encha uma garrafa de 1 litro e entorne no chão. Você vai ter uma idéia bem desagradável do que é encontrar essa quantidade de sangue. Aquilo que parece pouco, na verdade é muita coisa.
Em termos de jogo, uma regra opcional cabível seria considerar que a perda dessa quantidade de sangue deixaria o indivíduo tonto, um redutor de 10% em skills ligadas a concentração poderia ser aceitável. Perder algo além dessa quantidade começa a acarretar efeitos mais danosos incluíndo um redutor maior que incluiria funções motoras além da concentração.
2) O sangue e o cheiro.
Em relação ao cheiro do sangue, é lugar-comum a ideia de que sangue tem cheiro de ferro, mais precisamente de ferrugem, o que de fato é verdade. Todos nós alguma vez na vida já tivemos um pequeno corte, seja na pele ou até mesmo dentro da boca, e a grande maioria das pessoas já “experimentou” seu próprio sangue, voluntariamente ou não.
Este recurso, sinestésico, ajuda bastante para dar ainda mais a ideia de que algo brutal aconteceu. Poucas pessoas não associam derramamento de sangue a ideia básica e instintiva de perigo.
Depois de alguns minutos exposto ao ar, o sangue começa a mudar, ele coagula e se torna mais escuro. A medida que o tempo passa o sangue começa a exalar um odor mais forte e enjoativo. Um ambiente sujo de sangue e sem circulação de ar passa a cheirar muito mal, como o odor característico de um matadouro. Com certeza isso pode atrair animais carniceiros, insetos e outras criaturas não necessariamente naturais.
Considere que reconhecer o odor de sangue depende de um rolamento de Knowledge.
3) O sangue e o tato.
Este precioso líquido, dentro do corpo humano, falando grosseiramente, varia entre 35 e 38 graus, em média, dependendo por onde está passando, e se está em uma artéria ou veia. Logo, o sangue costuma ser morno ao toque, logo após abandonar o corpo.
Quem sabe seja útil em alguma narrativa descrever um sangue atípico, por exemplo, aquele estranho senhor que está sempre com o ar condicionado ligado, e ao se cortar, seu sangue esguicha em um dos PC’s e...nossa, parece até mesmo água gelada...
Uma das descrições mais efetivas para empregar o sangue como recurso dramático é fazer com que ele respingue ou goteje em quem está próximo. Uma artéria cortada pode fazer o sangue literalmente jorrar a uma altura considerável. É por isso que em cenas de crime, por vezes, se percebe sangue nas paredes ou até no teto.
Alguém ferido com gravidade vai respingar sangue em quem estiver próximo. Uma das experiências mais traumáticas narrada pelos soldados no campo de batalha é justamente presenciar um colega ser ferido e acabar banhado de sangue quente. Em termos de jogo a perda de sanidade por algo semelhante varia de acordo com a quantidade de sangue. Uma pequena quantidade de sangue, o bastante para salpicar a roupa admite algo em torno de 0/1, mas uma grande quantidade equivalente a um indivíduo literalmente destroçado acarretaria em algo como 2/1d6+1.
4) O sangue e o medo.
Muito comum nas conversas de rodas de amigo alguma pessoa declarar: “Jamais conseguiria ser médico, tenho horror a sangue!”
De fato, um número considerável de pessoas passa mal a simples visão de sangue, seja em si mesma, em outras pessoas, até mesmo em filmes!
Ter consciência deste fato pode ajudar algum narrador a aumentar o clima de fatalismo ou inquietação em uma mesa de jogo. Se algum dos seus jogadores identificar-se com afirmativa do primeiro trecho, melhor ainda! Obviamente, se algum deles tiver algum grave medo ou anseio relacionado a esse assunto, o Mestre não deveria utilizar este recurso. Caso contrário, experimente!
Para terminar o tema, existe uma forma mais grave de medo relacionado a sangue/sangramento, uma fobia chamada Hematofobia, onde o indivíduo entra em pânico, desmaia, fica nauseado/vomita, treme... Faz qualquer coisa para evitar presenciar a substância de seu pavor. Esta patologia pode ser adquirida por algum investigador após presenciar um brutal derramamento de sangue, por exemplo, de um ente querido, como uma das insanidades adquiridas de CoC.
Hematofobia é uma das mais complicadas fobias que um personagem pode vir a sofrer. Como resultado as investigações do personagem estarão seriamente comprometidas quando elas incluírem cenas de crime, cadáveres (como esse aí na ilustração) ou lugares onde algum tipo de luta aconteceu.
Personagens hematófobos sentem uma aversão terrível com tudo que se relaciona a sangue. Mesmo uma pequena quantidade faz com que eles sintam náusea e vertigem. Uma grande quantidade é o bastante para provocar vômito e desmaio.
Em casos mais sérios mesmo a sugestão de sangue é o suficiente para causar desconforto, arrepios e suor frio. Um personagem com hematofobia pode ter flashbacks de cenas sangrentas ao servir vinho em uma taça ou ao pedir um filé mal passado. O keeper pode (ou melhor deve!) usar esses recursos sempre que for cabível para lembrar o personagem da sua condição.
Espero que este pequeno artigo tenha ajudado e que seja mais uma ferramenta nas mãos de narradores/mestres/keepers de Call of Cthulhu.
Aguardo críticas, dúvidas e sugestões, e estou aberto a esclarecimentos. Obrigado!
Este é o primeiro artigo de uma série que o Rodrigo Spohr está escrevendo a respeito de como tornar ferimentos e danos sofridos por personagens algo mais assustador e realista. Nos próximos capítulos ele falará a respeito de ferimentos por armas brancas, armas de fogo, estrangulamento, envenenamento e outros tipos de dano.
Muito interessante, só ficou um duvida pelo tato como eu sentiria o sangue?
ResponderExcluirTodos os artigos muito bem escritos!
o sangue é viscoso, você só poderá senti-lo segundo o fenómeno em que o tocou, se foi sangue que lhe espirrou após um golpe na jugular de uma vítima, é quente no quesito térmico. A viscosidade depende também da onde o sangue esta saindo, e do organismo do individuo, e sangue coagulado forma uma encrosta difícil de tirar após um tempo .
ExcluirEntendi!
ExcluirObrigado Rodrigo pela sua contribuição! Muito úteis alguns detalhes que vc comentou!
ResponderExcluirNa verdade, é uma pergunta. Atualmente, na medida em que meu corpo se aquece eu venho exalando um mau cheiro (supostamente da próstata) parecido com feijão queimado. O cheiro, segundo alguns, é sufocante e incomoda a todos que o sentem, principalmente quem senta perto de mim no trabalho. Entretanto, acerca de 6 meses atrás, quando eu já possuía o citado mau cherio, eu tive um problema de hemorróida. Diante da dor que o coágulo causava, eu furei a bolha mas não consegui esvaziá-la na mesma noite. Isso só ocorreu na noite seguinte. Contudo, durante o dia, no trabalho, os colegas reclamavam sem cessar do cheiro como se fosse o mesmo mau cheiro da próstata. Será que este cheiro incessante poderia ser do sangue até então represado?
ResponderExcluir