Artigo originalmente publicado em 10/01/2017
O lançamento da nova edição de Chamado de Cthulhu, além de trazer novos ares ao mercado brasileiro de RPG também incentiva uma nova geração de mestres a narrar suas primeiras aventuras no mundo imaginado por H.P. Lovecraft.
O Livro Básico contém todas as informações para entender "qual é a do jogo", mas talvez seja interessante dedicar algumas palavras aos Guardiões de primeira viagem que em breve devem mergulhar no medonho Universo do Mythos.
Em que uma ambientação tipicamente Cthulhiana se difere de um RPG de aventura medieval, de horror pessoal ou dedicado a super heróis?
Há algumas particularidades que tornam esse jogo diferente dos outros, senão vejamos:
1 - CENÁRIOS E NÃO AVENTURAS
Já me perguntaram em mais de uma ocasião porque costumo chamar de "cenários" as aventuras baseadas na obra de Lovecraft. A resposta é simples: os personagens não estão envolvidos em uma aventura, é mais uma luta desesperada contra uma escuridão primordial e um mal desconhecido. Um confronto enlouquecedor para deter um horror ancestral, um culto maligno, uma tragédia que se aproxima rapidamente de forma inexorável.
Cada cenário, mesmo aquele com inclinação para o Pulp aventuresco, é uma história dramática sobre pessoas enfrentando forças absurdamente inumanas.
Uma "aventura" em Chamado de Cthulhu não é sobre obter tesouros, matar monstros, salvar donzelas, explorar terras exóticas e colher os louros dessas conquistas. Ele envolve sobreviver, salvaguardar valores humanos e descobrir um perigoso conhecimento. Não há recompensas imediatas e sejamos francos, nem a longo prazo.
Não há glória. Não há agradecimentos. Não há tesouros. No final, os personagens terão feito o melhor possível, provavelmente terão sofrido física e mentalmente, e estarão tão desgastados que possivelmente jamais irão se recuperar. Chamar isso de aventura, chega a ser piada!
Um cenário tipicamente lovecraftiano envolve um mistério que serve de isca, uma investigação que os leva cada vez mais perto de uma verdade horrenda: "O que pretende o maníaco que vem matando e arrancando a cabeça das vítimas?", "Quem - ou o que - matou o professor de Arqueologia que havia desenterrado aquele templo egípcio?", "O que aconteceu com a tripulação do navio encontrado à deriva?", "O que essas pessoas fazem nas noites de lua cheia, cantando e dançando em volta de uma estátua medonha?".
Coletar evidências, analisar pistas, entrevistar testemunhas, relacionar fatos e então, munido desse arcabouço confrontar a ameaça - é disso que trata um Cenário Cthulhiano. O trabalho é na maioria das vezes mental e quando as coisas se tornam físicas, os personagens desejam jamais ter saído de casa.
As recompensas, quando estas surgem, são artefatos sobre os quais sabe-se muito pouco. Livros contendo conhecimento antigo, objetos amaldiçoados e magias que podem lançar uma luz sobre a natureza do Mythos, mas aprender esses segredos leva o mais sensato dos homens à ruína da insanidade. Nunca é fácil! Nunca mesmo...
É impossível chamar uma jornada dessas, rumo às profundezas da loucura e do terror, de aventura, ela é ao invés disso, uma experiência demolidora.
2 - INVESTIGADORES E NÃO AVENTUREIROS
Assim como não há aventura, os protagonistas não são aventureiros.
Quase todos os jogadores e mestres de RPG estão acostumados a criar personagens cheios de coragem e virtude. Eles são heróis capazes de realizar façanhas incríveis. Seja enfrentar e matar dragões gigantescos e monstros medonhos, participar de batalhas épicas, destruir exércitos com magias ou invadir masmorras inexpugnáveis. são Heróis no melhor sentido da palavra!
Em um Cenário Cthulhiano os personagens dos jogadores são pessoas absolutamente comuns.
Gente que tem trabalho, família, sua para ganhar salário, pagar contas e progredir na vida. São, contudo, homens e mulheres que em algum momento da sua existência, esbarraram em uma inconveniente verdade e que agora não podem fugir a essa revelação. Eles descobriram que o mundo é um lugar muito mais perigoso do que se pode imaginar. Dessa forma eles se tornaram Investigadores do Mythos, aquela que talvez seja a mais perigosa ocupação do mundo.
Gente que tem trabalho, família, sua para ganhar salário, pagar contas e progredir na vida. São, contudo, homens e mulheres que em algum momento da sua existência, esbarraram em uma inconveniente verdade e que agora não podem fugir a essa revelação. Eles descobriram que o mundo é um lugar muito mais perigoso do que se pode imaginar. Dessa forma eles se tornaram Investigadores do Mythos, aquela que talvez seja a mais perigosa ocupação do mundo.
Em lugares proibidos e isolados existem coisas muito mais terríveis do que imaginamos e essas coisas não ficarão confinadas na escuridão para sempre. Pior, eles estão prestes a escapar, motivados pela cobiça, pelo fanatismo, pela loucura. Eles sempre voltam e nós sempre sofremos. Diante dessa descoberta, os investigadores decidem se erguer contra o mal e fazer o que for preciso para salvar o mundo de arder nas chamas.
De certa forma, esses personagens, muitas vezes sem acesso a armas, magia ou recursos são mais heróicos do que os aventureiros e super-seres das outras ambientações. Eles são a última linha de defesa contra aquilo que ameaça varrer a humanidade da existência e se colocarão no caminho da obliteração de olhos abertos para o horror supremo.
Dentro do Gênero Horror existem subdivisões.
Um cenário que, por exemplo, envolve vampiros aprendendo a enfrentar a dura realidade de sua nova existência se difere de uma ambientação que versa sobre humanos caçando monstros e fantasmas, embora as duas possam ser encaradas pela ótica do Horror.
Rastro de Cthulhu faz parte de um subgênero talhado por autores como Lovecraft, que costuma ser chamado de Horror Cósmico.
Nos Cenários de Horror Cósmico as coisas são especialmente dramáticas e aterrorizantes para os personagens. O medo que permeia esse subgênero é muito maior, muito mais dantesco que aquele representado por um fantasma, uma múmia ou mesmo uma horda de vampiros sedentos de sangue.
O Horror das criaturas do Mythos é totalmente inumano. Por mais bestial que seja um lobisomem ele ainda guarda similaridades com o seu lado humano, já em cenários lovecraftianos, as coisas que habitam a escuridão - e que são o grande inimigo - não são e nem nunca foram humanas. Eles são verdadeiros titãs de maldade insondável. O mero vislumbrar dessas entidades é o bastante para causar histeria e loucura.
Em cenários de Horror Cósmico sempre há uma ameaça oculta espreitando e as consequências do despertar desse mal serão catastróficas. Essa força maligna espalha seus tentáculos pelo mundo pervertendo tudo que toca. Ela vem do espaço, de além do tempo, de além das esferas, do espaço entre as dimensões, ou de lugares ainda mais distantes. O fato é que elas existem e que elas são como radiação para a mente humana, a hora que você for tocado, pode apostar, você não vai escapar ileso.
O cenário se concentra em descobrir a extensão dessas ameaça e tentar de todas as maneiras contê-la pelo tempo que for possível, pois esse mal jamais será extinto. No máximo será possível ganhar tempo!
A ação de Chamado de Cthulhu acontece no mundo real, ou ao menos como ele era nos anos 20. Porque essa época em especial? Porque não trazer os cenários para os dias atuais e fixar em elementos do nosso dia a dia? Não seria mais acessível jogar em nossos dias atuais?
Alguns respondem a essa pergunta dizendo que os contos de H.P Lovecraft se passavam nessa época e nada mais natural que os cenários se desenvolvam no mesmo período.
Eu prefiro outra resposta.
Os anos 20 são um momento muito interessante na história humana. O período em que o homem acreditava piamente que o Universo girava ao seu redor e que explorar os seus confins era seu Direito. O Homem havia retirado Deus do pedestal e orgulhoso havia assumido seu lugar. Ciência era o novo dogma, curiosidade a nova moda, ambição estava na ordem do dia.
De certa forma essa é a época que definiu os rumos da nossa civilização para os dias futuros. Nada mais justo que essa época de realizações, quando o homem começou a domar a natureza, gerar energia em quantidade nunca vista, cruzar distâncias inimagináveis e conquistar o ar, fosse a escolhida para confrontar nossa raça com a grande verdade: que nós somos um mero acidente e que existem forças muito mais poderosas no Universo. Forças estas que desafiam nossa razão e nossa compreensão e que poderiam nos extirpar da face da Terra em instantes.
Um dos elementos mais interessantes em um cenário de horror cósmico é a descoberta da Insignificância Humana. O pessimismo de saber que o Universo é tão incrivelmente vasto e tão inconcebivelmente hostil diante de nossa inerente fragilidade.
Contrapor o progresso humano, sua inventividade e suas conquistas com a crueza de uma realidade em que esses valores nada representam, torna a ambientação ainda mais assustadora.
Na maioria dos mundos de RPG sempre há uma esperança, não importa o quão negras sejam as coisas. Mesmo quando Orcs marcham de Mordor, quando Dragões voam nos céus ou quando alienígenas invadem as cidades, lá está ela... a esperança de que dias melhores virão! E essa esperança repousa nos ombros dos heróis que lá estão para lutar até o último sopro de vida. Eles podem fazer a diferença (e em geral fazem!).
Já nos cenários assolados pela mácula do Horror Cósmico, nada pode ser feito, além de ganhar tempo e olhar para as estrelas temendo o pior.
Vou dar um conselho a quem está prestes a narrar pela primeira vez um cenário cthulhiano para um grupo de jogadores que não sabe absolutamente nada a respeito da ambientação (exceto que ela tem um nome quase impronunciável).
Deixe os seus jogadores no escuro. Muito provavelmente eles sabem que se trata de um jogo de terror, mas não o tipo de horror que os personagens vão enfrentar.
Mantenha as coisas desse jeito.
O Universo do Mythos é bizarro, estranho e incompreensível. Os jogadores não precisam saber que ghouls habitam as entranhas das cidades se alimentando dos mortos. Eles não precisam saber que Azathoth habita o centro do Universo e que suas convulsões provavelmente deram origem a tudo que existe. Eles não carecem saber que Nyarlathotep possui 1000 máscaras e que adora brincar com os humanos. Eles não precisam saber que Cthulhu mora no fundo do mar e que seus pesadelos evidenciam seu retorno.
Hush-Hush! Shhhhh....
Uma das coisas mais interessantes sobre uma ambientação cthulhiana é que ninguém, nem mesmo o Guardião conhece todos os segredos. Porque então os jogadores deveriam saber de algum detalhe?
Em Chamado de Cthulhu, a própria noção do que são os Deuses e Entidades Ancestrais, os monstros e as criaturas nos escapa. O livro é genial ao oferecer diferentes pontos de vista sem jamais afirmar qual deles, se é que um deles é real. Tem-se teorias, conjecturas e suposições metafísicas, sendo que estas por vezes não podem ser sequer compreendidas.
Lembre-se, o choque de uma revelação é muito mais dramático quando acontece de forma inesperada. Se você acabou de receber seu exemplar de Chamado de Cthulhu, mantenha-o longe dos olhos dos seus jogadores, eles não precisam saber o que esse livro inocente encerra nas suas páginas.
Bem é isso...
O Horror dos Mythos, o Horror Lovecraftiano, os cenários cthulhianos estão ao alcance de suas mãos. Como mestre, você tem uma enorme responsabilidade, a de guiar seus amigos pelas veredas do horror, pelos caminhos pavimentados com medo e paranoia, em uma jornada que será igualmente fantástica e assustadora.
O que existe atrás dessas páginas?
Loucura, esquecimento, temores, e muita diversão!
Livro inocente?
ResponderExcluirAdorei o que li, resolveu muitas duvidas minhas, e confirmou outras coisas que suspeita, justamente por ter a intenção de usar o mudo Pulp.
Acho que nem neste, os heróis podem salvar o mundo sempre....
Hehe... faltaram as "aspas" entre a palavra inocente.
ResponderExcluirPulp ou não, aqui a coisa é mais feia do que em qualquer outra ambientação.
Luciano,
ResponderExcluirArtigo simples e direto. Perfeito. Acabei de mestrar o primeiro cenário de Rastro (The Watchers in the Sky) e o elemento segredo é crucial lá.
Observação: Watchers in the Sky já está traduzido e deve ser publicado em breve, apesar que ainda falta a revisão de tradução. :)
ResponderExcluirExcelente post, principalmente por delinear a diferença entre aventuras e cenários, aventureiros e investigadores.
ResponderExcluirMuito bom mesmo!!! Os segredos, realmente, são fundamentais.
ResponderExcluirVou tentar narrar CoC na Dungeon Carioca dia 26 se você não for Luciano... Vou tentar... HAUHUAhuaUHAuhahuaHUhau
ResponderExcluirOpa legal! Não esqueça de arranjar umas fotos e depois escrever um relato de como foi o jogo para que eu coloque no "mesa Tentacular". Aliás isso vale para todos, quem for narrar alguma mesa de Call ou rastro é só entrar em contato e e coloco no ar o "relatório".
ResponderExcluirsó uma coisa a dizer sobre o texto. Belo!
ResponderExcluirSou grande fã de lovecraft e de seu mundo de horrores cósmicos. Gostaria de pedir mais uma dica, como devo mestrar a um grupo para seguir a linha de contos, onde os protagonistas se batem com o horror sem querer e tem de fazer de tudo para sobreviver ou ao menos sobreviver.
Uma vez narrei uma aventura curta de Call of Cthulhu. Havia um Detetive Particular, um Militar Aposentado e Jornalista. Eles estavam na trilha de um assassino serial. Quando prenderam o cara na cabana isolada nas montanhas, veio a verdade. Vinte anos atrás ele fazia parte de uma fraternidade que invocou um dos Servidores dos Grandes Antigos. Horrorizado ele fugiu.Seus amigos se tornaram homens ricos e influentes por causa desse Pacto. Eles ofereciam sacrifícios humanos. E ele perseguiu e matava os caras. E agora? Os investigadores levam o assassino à justiça ou dizem que falharam em encontrá-lo e deixam que ele "continue com o seu trabalho"?
ResponderExcluirMuito bom artigo!
ResponderExcluirEstou tendo contato agora com call of Cthulhu, estou gostando muito e não vejo a hora de mestrar um desses cenários. Este artigo foi muito bom, para esclarecer algumas duvidas que ainda tinha...ou ainda tenho.
Gostei muito da matéria, atualmente eu estou narrando um RPG medieval e recentemente introduzi cthullu na narração, seu que não tem nada haver mas acho que um cenário tão fantástico que queria utilizar. E com essa mudança tudo fica bem diferente na narração e meio que expande a mente dos jogadores, mostrar para eles que a parada é muito mais insana do que só pilhar ouro de dragão kkkk.
ResponderExcluirMuito esclarecedor.
ResponderExcluirEsse tipo de Re-post é sensacional! sempre muito bem vindo
ResponderExcluirPassei direto por esse post. Sou apenas um fã de lovercraft. Mas o destino me chamou a assumir o papel de guardião. Apesar de leitor e de jogar rpg a tempos, estava ansioso quanto a experiência. E um artigo simples, inicial, mas suficiente para sanar as principais dúvidas. OBRIGADO
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