terça-feira, 24 de setembro de 2019

Para o caso deles retornarem - Os horríveis costumes de um vilarejo medieval


Em verdes prados, margeando um bosque, jaz um povoado sem nome.

Um dia, ali floresceu uma comunidade medieval, ainda que não particularmente grande ou significativa: um mero vilarejo que um dia ocupou a fronteira Oeste de Yorkshire na Inglaterra.

Não restou muito desse lugar perdido no tempo, exceto pelas suas fundações de pedra e pelas ruínas do que um dia foi uma igreja dedicada a São Martinho. A construção era o centro do vilarejo e onde a comunidade se desenvolveu em um período de quatro séculos, até ser completamente  abandonado pelos seus habitantes.

O que torna esse simples vilarejo notável e ao mesmo tempo estranho, é sua perturbadora história secreta, uma que envolve superstição e medo. Os habitantes desse vilarejo cujo nome se perdeu, mutilavam seus mortos na esperança de assim evitar que eles retornassem para atacar os vivos.

As origens do vilarejo podem ser traçadas até o século X. Essa região é mencionada no Domesday Book, tratado que dispõe sobre as províncias de Yorkshire. Ela é  citada com o nome de Warron, que se refere ao Bosque, não à cidadezinha em si. De acordo com arqueólogos, está região teve uma população bastante ativa desde a pré história, embora seu auge tenha ocorrido do século XI até o XII.

Muito do que se sabe vem das numerosas escavações arqueológicas na área, já que não há praticamente nenhum registro escrito que tenha sobrevivido. Graças a fotografias aéreas, o padrão irregular dos campos nas redondezas foi percebido, o que motivou a realização de escavações em areas específicas.


Um exame mais cuidadoso revelou que o vilarejo possuía ao menos duas grandes propriedades e um total de 35 a 40 casas menores. As fundações eram edificadas em pedra, mas como as paredes eram de madeira, precisavam de frequente manutenção, bem como os telhados. Não por acaso, tudo isso desapareceu.

Os limites ao sul do povoado terminavam em pequenos montes relvados, enquanto ao oeste se erguia uma elevação semelhante a um platô. Nessa posição provavelmente foi erguido um forte ou posto de guarda que permitia vigiar todo perímetro. Restos de estacas de madeira cravadas fundo no solo atestam que em determinado momento pode ter havido também uma cerca ou paliçada que contornava o povoado, garantindo uma defesa mais eficiente. Até mesmo uma trincheira foi escavada junto da cerca para dificultar qualquer aproximação indesejada. Os restos de um portão ao norte atestam que os habitantes prezavam pela sua segurança.

De fato, eles pareciam temer enormemente a possibilidade de sofrer uma invasão.


Outra característica peculiar é que os historiadores encontraram fechaduras em algumas portas. Estas sobreviveram pois eram construídas com madeira reforçada trazida de regiões vizinhas. Fechaduras eram um verdadeiro luxo no mundo medieval, sobretudo em regiões isoladas dos grandes centros. Em geral a segurança de uma casa era garantida por barricadas dispostas no lado de dentro, mas no vilarejo, as fechaduras evidenciavam uma busca notável por segurança.

O que levava essas pessoas a se proteger de tal forma? O que fazia com que elas agissem com tamanha desconfiança?

A resposta provavelmente se encontrava a cerca de um quilômetro e meio do centro do povoado.

Seguindo por uma estrada tortuosa em direção a um pântano os historiadores encontraram os restos de um muro de pedra que limitava o que descobriam ser um grande cemitério.


O vilarejo sobreviveu aos horrores impostos por William o Conquistador que submeteu com os habitantes dessa região com mão de ferro. No período, toda Yorkshire sofreu com um rígido controle no qual qualquer sinal de revolta era tratado com brutalidade. Mais de um povoado foi incendiado e seus habitantes submetidos a punições por parte do monarca cujo reinado foi marcado por execuções.

Acredita-se que em determinado momento, os arredores de Warron foram palco de uma ou mais batalhas sangrentas. Como os mortos eram abandonados no campo de batalha, era costume que camponeses fossem forçados a enterrar os cadáveres em covas coletivas. Quando os arqueólogos começaram a escavar o cemitério encontraram várias dessas valas transbordando com esqueletos que haviam perecido em combate.

Não bastasse isso, havia ainda um grande número de sepulturas marcadas com um círculo preto que indicava o local onde uma vítima da Peste Negra havia sido enterrada. No meio do século XII, a Peste atingiu com força Warron matando boa parte da população residente.

Em uma época de extrema superstição, a presença de inúmeros cadáveres de forasteiros, mortos violentamente ou vitimados pela peste, depositados no cemitério local, deve ter causado um medo considerável nos habitantes do vilarejo.

Entre os povos medievais, os mortos despertavam um terror extremo. Havia muitas crendices a respeito de mortos vingativos e espíritos malignos capazes de escavar suas sepulturas para arrastar consigo os vivos.

Lendas a respeito de Revenants ou Espíritos de Vingança, eram comuns. Elas relatavam como homens e mulheres que haviam sofrido mortes violentas podiam retornar para levar a cabo uma terrível vingança contra os vivos. Seu desejo de extinguir a vida dos outros lhes concedia força sobre-humana e um ímpeto perverso para espalhar o mal.

Os Revenants eram como esqueletos animados, sua carne apodrecida se desprendida dos ossos expostos. Eles caminhavam lentamente, mas as orbes vazias onde um dia estiveram seus olhos, pulsavam com um brilho amarelado. Suas mãos estavam sempre prontas para agarrar uma vítima e puxa-la para de baixo da terra, sufocando-a lentamente ou partindo seu pescoço. Mais terrível de tudo, o Revenant quando fixava sua ira em uma pessoa jamais desistia de seu objetivo. Poderia ser depositado na terra uma, duas, cem vezes, mas encontraria uma maneira de voltar, nem que se arrastando de sua campa pútrida para extrair seu desejo de vingança.

Não por acaso, a literatura medieval está repleta de casos envolvendo Revenants. Eles eram tratados como um problema grave, com real temor e preocupação pelos aldeões.

Os almanaques medievais afirmavam que padres podiam por um fim aos Revenants benzendo a terra onde os restos mortais eram lançados. Outras medidas práticas envolviam deitar os cadáveres de bruços e trespassa-los com uma estaca de ferro ou ainda prender seus pés com correntes. Uma receita considerada infalível envolvia colocar na boca do cadáver uma raiz de acônito e costurar os lábios com linha. Outra dava conta de tatuar na testa do cadaver um desenho da cruz e pingar sobre seus olhos cera quente. Como se pode ver, os métodos flertavam de perto com noções de necromancia.

Mas como se certificar de que um espírito desses não voltaria para atormentar os vivos? E caso voltasse, como contê-lo?


Os arqueólogos que escavaram os restos do cemitério se surpreenderam com os métodos usados pelos aldeões.

Cerca de 230 ossadas datando do século XI a XIII demonstravam sinais inequívocos de mutilação post morten. Marcas de faca, que cortaram até o osso foram achadas onde se encontravam os tendões e músculos. Da mesma maneira, pernas e pés foram amputadas dos cadáveres, geralmente na altura da canela a fim de limitar a capacidade de movimento, caso os mortos se erguessem para cumprir seus propósitos nefastos.

Ao menos sete cadáveres tiveram os pés arrebentados por marretas. Uma dúzia tiveram braços e mãos serrados na altura do cotovelo e pulso. E pelo menos um foi totalmente esquartejado para resolver de vez o problema.

Decapitações também pareciam ocorrer com frequência. Ao menos duas dúzias de restos apresentavam sinais de que as cabeças haviam sido separadas pouco antes do enterro. Curiosamente, as cabeças eram enterradas em covas afastadas, depois da boca ser devidamente preenchida com alho, terra consagrada ou uma mistura de ervas ou raízes. Em alguns casos, mandíbulas e dentes eram partidos a marteladas afim de evitar mordidas.

A preocupação dos aldeões com Revenants era tamanha que eles chegaram a construir um muro ao redor do cemitério. Dispunham ao longo deste, bonecos semelhantes a espantalhos que imitavam a aparência de pessoas. A ideia é que como ninguém jamais havia testemunhado um morto escavar sua sai da da cova, eles só o faziam quando não eram vigiados. Os espantalhos poderiam coibir suas ações.

Não se sabe exatamente o que motivou esse terror e essas precauções da parte dos aldeões. Também se desconhece as circunstâncias em que o vilarejo foi abandonado no século XIII, embora a Peste Negra seja a causa mais provável de sua deserção.

Hoje, o Vilarejo na região de Warron é considerado como um dos assentamentos medievais mais bem preservados de que se tem notícia. Ele é uma espécie de relíquia da Era das Trevas, alimentando os pesquisadores com evidências de dias obscuros e assustadores.

Tempos em que temia-se que os mortos andassem.

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