quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Medo de Mortos Vivos - Apocalipse Zumbi em plena Era das Trevas


A maioria das pessoas pode pensar que as histórias sobre Apocalipse Zumbi são algo recente. Um fenômeno contemporâneo, popularizado e amplificado pela internet, filmes e séries de televisão.

Se essa é sua opinião, pense novamente... o medo de mortos vivos estava presente já na Idade Média.

Arqueólogos de Yorkshire, na Inglaterra, encontraram as primeiras evidências científicas de que povos na Idade Média mutilavam cadáveres e queimavam corpos como forma de prevenção para que eles não se erguessem de suas sepulturas.

Ossadas humanas encontradas em um cemitério no vilarejo de Wharram Percy apresentam marcas inequívocas de desmembramento e queimaduras. O objetivo desses ferimentos provocados post-morten era impedir que os mortos se erguessem e caminhassem. A prática, realizada no mundo medieval, período de grande superstição vinha sendo suposta por especialistas, mas esta é a primeira confirmação de sua utilização prática.

O antigo povoado de Wharram Percy é uma das maiores e mais bem preservadas vilas medievais conhecidas. O local foi habitado entre os séculos XI e XIV, chegando a contar com cerca de 300 habitantes em seu auge. O biólogo Simon Mays da Sociedade Histórica Britânica começou sua pesquisa para o Jornal de Ciência Arqueológica com uma tese de título macabro: "Um estudo multidisciplinar de cadáveres queimados e mutilados encontrados em um vilarejo medieval britânico".

O vilarejo de Wharram Percy, como deve ter sido
O estudo chamou a atenção de outros especialistas e o consenso é que a pesquisa de Mays demonstra exatamente o que ele propõe. Que camponeses destruíam deliberadamente cadáveres de seus vizinhos e parentes por temer a possibilidade deles voltarem como mortos vivos.

Mas como isso aconteceu em um lugar como Wharram Percy? 

De forma geral, a destruição de cadáveres sempre foi uma prática vista como tabu, sendo uma atividade severamente censurada pela Igreja Católica. Na doutrina cristã os cadáveres devem ser colocados inteiros para descansar no solo, jamais devendo ser queimados, mutilados ou desmembrados. Ainda assim é justamente o que parecia acontecer no pequeno assentamento.

É provável que a prática tenha se iniciado por conta de um terror coletivo da população local. 

No século XI até o XIV a região foi repetidamente assolada por longos períodos de doença, fome e invasões. Yorkshire era uma área pouco povoada mas disputada por diferentes culturas rivais. As pessoas que viviam em vilarejos como Wharram Percy ficavam isoladas e não podiam contar com a ajuda de ninguém diante da chegada de invasores estrangeiros. Com efeito temiam qualquer estranho que se aproximasse. De certa forma, o medo era compreensível pois havia a desconfiança de que pessoas de fora pudessem primeiramente trazer doenças. Havia ainda a possibilidade de estranhos virem espionar e contar a respeito das defesas e proteções do vilarejo, facilitando futuros ataques. Finalmente, havia um temor ainda maior, o de que invasores pudessem devorá-los.


Não faltam evidências de que canibalismo era praticado em períodos de grande privação. Mays demonstrou em outro estudo, mediante a análise de ossos que a antropofagia era muito mais comuns do que se poderia imaginar, isso em plena era medieval. Ossos com marcas de corte e mordidas bem distintas foram encontrados em todo Norte da Inglaterra, incluindo alguns que apresentavam sinais de terem sido cozinhados.

Um forasteiro que chegasse a um vilarejo sem ser previamente apresentado corria sério risco.

Camponeses temiam esse contato e muitas vezes atacavam em uma espécie de defesa preventiva. Um estranho poderia ser capturado, interrogado e até assassinado se a sua história não fosse de alguma forma corroborada. Não era raro em momentos dramáticos que o próprio forasteiro acabasse sendo devorado.

Além de não serem nem um pouco acolhedores, camponeses se deixavam dominar pelos seus temores e superstições.

Um dos medos mais comuns na Era Medieval dizia respeito aos mortos e a possibilidade deles retornarem. A morte era um grande mistério, algo pouco compreendido e que suscitava enorme temor nas mentes simplórias do período.

Marcas de corte em ossos humanos, realizados post-morten
Mays teve acesso a 137 fragmentos de ossos - pertencentes a pelo menos 10 indivíduos com idade entre 2 e 50 anos. Os restos foram recuperados em 1960, após uma escavação nos arredores do Vilarejo, em especial em uma área que servia como cemitério. O exame forense desses restos atestou que aquelas pessoas receberam cortes e mutilações depois de terem morrido. Além disso, os crânios também foram danificados, pelo uso de ferramentas pesadas empregadas para esmagar-lhes a mandíbula.

De acordo com Mays, as mutilações só podem ser compreendidas como uma forma de prevenir que os cadáveres se movessem, com a amputação de pés e até pernas inteiras, remoção de músculos e até laceração de tendões. A ideia é que sem as pernas os mortos não poderiam andar. Já o dano provocado nas mandíbulas se destinavam a impedir que os mortos vivos fossem capazes de morder.     
Embora muitas culturas praticassem métodos preventivos similares, que incluíam desde decepar cabeças e quebrar ossos das pernas, ou ainda cravar uma estaca no coração, essa é a primeira vez que se descobre tal prática ocorrendo na Inglaterra. 

O exame de Mays atestou que os cadáveres foram mutilados provavelmente entre 6 e 12 horas após a morte dos indivíduos, quando os ossos ainda estavam frescos. O objeto empregado na macabra tarefa foi provavelmente um machado, picareta ou ainda uma pá. Além das mutilações, alguns dos ossos também apresentam sinais de terem sido queimados, indicando que os camponeses consideravam por segurança não apenas desmembrar seus mortos, mas também queimá-los.

Dentre as muitas superstições medievais, uma das mais temidas dizia respeito aos Revenants, mortos capazes de se erguer de suas sepulturas para perseguir os vivos. O temor desse tipo de criatura aumentou muito com a Peste Negra que varreu o interior da Inglaterra. Uma crença muito difundida era a de que um Revenant poderia trazer a Peste de volta ao se erguer e visitar sua família. O cadáver de um ente querido poderia visitar sua casa com o intuito de soprar na boca das pessoas, passando para elas a moléstia fatal.


A mutilação de cadáveres como forma de prevenir a volta dos mortos parece ter ocorrido até o século XV. Talvez o povo de Wharram Percy tenha adotado essa prática uma vez que o vilarejo ficava em uma área especialmente isolada, o que forçava seus habitantes a criar suas próprias regras e leis. "Tempos terríveis acabam criando um comportamento igualmente terrível", disse Mays.

O vilarejo de Wharram Percy foi abandonado em meados de 1600 quando a peste atingiu novamente a região e dizimou boa parte da população. Os únicos que sobreviveram foram os que deixaram o vilarejo em busca de outro recanto. É possível que o lugar tenha ganho notoriedade o que ajudou a mantê-lo intocado por séculos.

A história desse lugar expõe uma faceta macabra da Idade Média e oferece um lembrete de como era difícil a vida das pessoas que viveram nesses tempos. Há bem pouco glamour e romantismo na realidade medieval, praticamente tudo o que idealizamos sobre o período não passa de invenção. 

Um comentário:

  1. sinistro e aterrorizante, posso imaginar uma ou duas estórias de horror bem legais com essa premissa.
    ótimo artigo como de costume.

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