sábado, 15 de fevereiro de 2020

Território da Morte - A Maldição dos Totens nas Ilhas Vaygach




A remota região do Ártico é um dos lugares mais implacáveis do planeta.


Isolado, frio, escuro... um ambiente inclemente que oferece perigos a todos que ousam explorar sua vastidão fustigada por tempestades de granizo e ventos congelantes. Apesar disso, homens vieram de longe para domar essa terra. Fincaram bandeiras que marcaram sua conquista e desenharam mapas que representavam esse território fronteiriço. O clima cobrava um alto preço e sobreviver nessas condições constituía um desafio diário. Aqueles que subestimavam os obstáculos que a natureza interpunha raramente tinham tempo de se arrepender e corrigir esse erro. 

E se essas condições impiedosas não fossem suficiente para afugentar mesmo os mais experientes exploradores e aventureiros havia ainda os nativos que habitavam esses recônditos perdidos nos limites da civilização. Tribos nativas conhecidas como Nenets, cujas violentas tradições podiam ser bastante persuasivos.  

Há centenas de anos, visitantes de um Posto Avançado localizado numa remota região do Ártico tem sido  assustados por lendas e rumores aterrorizantes envolvendo rituais sangrentos e sacrifícios humanos. Um lembrete constante se mantinha vigilante no horizonte, Totens erguidos pelos Nenets como estoicos guardiões. A mensagem deles era clara: vocês não são bem vindos! 

Bolshoi Tsinkovy é o maior pedaço de terra de um total de 111 pequenas ilhas que compõem o Arquipélago de Vaygach, localizado entre o Estreito de Barents e o Mar de Kara no Ártico. O posto avançado foi erguido pelos russos no século XVIII, apenas um arremedo de assentamento, com uma cerca ao redor e casas de alvenaria. Ocupando uma posição estratégica privilegiada, os homens que viviam no posto podiam vigiar a praia rochosa, único acesso até eles, enquanto se mantinham protegidos pela ingrime encosta.

Isso não significa dizer que o Posto não enfrentou contratempos. Tempestades por pouco não arrancaram os telhados e derrubaram as casas. A fúria dos elementos varreu o campo com forte vento e gelo. Ursos polares, lobos e morsas ferozes visitaram o lugar dispostos a capturar e arrastar para seus covis quem não estivesse alerta. Mas os Nenets eram sem dúvida o maior dos obstáculos para a colonização da ilha.


Os povos que viviam distribuídos pelo Arquipélago haviam tido pouco ou nenhum contato com outras culturas. Eram homens duros, forjados ao longo de gerações que haviam aprendido a viver naquele lugar selvagem. Caçavam, pescavam e viviam da terra, e quando esta não lhes oferecia mais condições de subsistência, erguiam acampamento e passavam para outra área. Usavam lanças e arpões, vestiam pele de urso e calçavam botas de couro de foca, tinham seu próprio dialeto, suas crenças e tradições. E honravam suas divindades sagradas...

Em um lugar tão ermo, não se poderia realmente esperar que os Deuses respondessem ao apelo dos homens com candura. Os Nenets aprenderam que, se os Deuses de fato existiam, eles não estavam dispostos a atender pedidos. Quando muito, a fúria dessas divindades primevas podia ser aplacada, e a única maneira de fazê-lo era através de sacrifícios.

Os sacerdotes tribais, conhecidos como Xamãs, eram homens tocados pelo dom das visões. Bebiam uma mistura de leite fermentado de renas e cereais destilados que lhes proporcionava toda sorte de revelações assustadoras. Em seus delírios apocalípticos viam os grandes deuses descer dos céus cinzentos e tocar o chão. Testemunhavam esses gigantes dançando nos descampados, arrancando árvores pela raiz e causando avalanches. A respiração deles criava as tempestades e seus passos faziam a terra tremer. 

Os xamãs ordenavam então que sacrifícios fossem trazidos até eles no alto das montanhas e ravinas. Mulheres e crianças normalmente não podiam subir até o topo desses lugares sagrados de onde era possível contemplar toda a vastidão. Por vezes bastava oferecer carne de foca e rena ou um fardo de madeira para queimar. Oferendas eram colocadas em uma pira ou lançadas numa fissura profunda para desaparecer na escuridão sem fundo. Mas certas divindades só se davam por satisfeitas quando seu tributo era pago com sangue.

Vesako, o Deus da Caça era a divindade que despertava a maior atenção das tribos Nenets. 


Se ele não concedesse seu favor, a tribo inteira poderia perecer no inverno. Segundo os costumes milenares, Vesako era o Senhor das Feras, aquele que permitia aos homens abater seus servos e deles extrair o tão necessário sustento: carne, gordura e pele. Como uma espécie de tributo, os homens ofereciam a ele sacrifício no fim do Verão e no início do Inverno.

Quando os invasores chegaram e se estabeleceram em Bolshoi Tsinkovy começaram a caçar as criaturas de Vesako, sem dar a Ele, sua parte do abate. Esse comportamento chocou os Nenet que imediatamente se preocuparam com a cólera dos deuses que não iriam tolerar aquela afronta.

Guerreiros se reuniram e se prepararam para o embate. Os xamãs demandavam que os invasores fossem mortos e seus corpos espalhados na planície para que o vento limpasse a carne e deixasse apenas os ossos. Antes porém, pele e tendões seriam arrancados para confeccionar tambores sagrados cujo som agradava aos deuses.

Antes da primeira investida contra o posto, um xamã tomou a frente da comitiva e bradou seus desafios e queixas na direção dos invasores russos. Ele dançou diante dos guerreiros, batendo seu tambor, fazendo piruetas e girando como se tomado por uma devoção insana. A seguir, tomou uma faca afiada e cortou a garganta de uma criança para que sangue inocente purificasse o campo de batalha.  


Os homens no posto assistiram a cena horrorizados e então decidiram agir. Os Nenet descobriram então que não seria fácil enfrentar aqueles estranhos. Eles tinham armas barulhentas que levavam a morte à distância. O xamã foi o primeiro a ser atingido e os guerreiros que avançaram furiosos clamando por vingança, brandindo arpões e lanças, também foram alvejados. A luta foi feroz, mas os invasores predominaram.

Ao longo de anos, nenhuma incursão teve êxito em remover os russos. Ainda que muitos tenham sido mortos, sobretudo quando deixavam a segurança do acampamento para caçar ou pescar, outros chegavam para tomar seu lugar. Os russos estavam decididos a manter o Posto Avançado em Vaygach sobretudo depois que companhias pesqueiras demonstraram interesse na lucrativa pesca predatória de baleias. O Posto era essencial para estocar suprimentos e material de apoio para os navios baleeiros.

Furiosos, os xamãs decidiram amaldiçoar o lugar e todos que nele viviam. Para isso, cercaram o assentamento com Totens dedicados a Vesako e sua comitiva composta por sete demônios que o acompanhavam. Os grandes totens de madeira e pedra foram distribuídos no alto das ravinas, coroando o topo das montanhas, como se estivessem observando com expressão severa o assentamento lá embaixo. Sem dúvida, uma imagem assustadora e imponente.

Coincidência ou não, logo depois que os totens foram dispostos, tempestades se intensificaram, bem como doença, fome e privações. Em determinados momentos, o posto chegou perto de ser abandonado pelos seus ocupantes. O lugar ganhou o apelido de "Território da Morte" ou "Posto no Limite da Terra" tamanha a sua fama. Por algum tempo, criminosos, prisioneiros políticos e exilados, foram mandados para lá afim de cumprir sentença. Alguns preferiam pular no mar gelado antes de chegar ao seu destino.

Em 1867, missionários da Igreja Ortodoxa Russa chegaram a Bolshoi Tsinkovy dispostos a catequizar os Nenets. Uma das primeiras medidas desses religiosos foi derrubar os Totens que haviam sido colocados ao redor do Posto. Na ocasião foram encontrados mais de 100 ídolos nas montanhas, em diferentes tamanhos e formas, os maiores com mais de três metros e os menores com apenas 50 centímetros de altura. Ao redor deles foram achadas oferendas como ossos de renas, crânios de ursos, machados e peles. Eventualmente os missionários conseguiram converter alguns nativos que se juntaram a população que então vivia no posto.


Em 1899, o assentamento na Ilha Vaygash foi transformado em um forte para comportar um fluxo cada vez maior de aventureiros à caminho do Klondike, no Alasca, onde havia sido descoberto ouro. A chegada dessas pessoas acabou trazendo outro visitante indesejado, o cólera que não demorou a se espalhar entre os nativos Nenet. Com o fim da Corrida do Ouro, o Forte caiu em decadência, sobretudo pela diminuição de homens e redução de recursos que se seguiu à Revolução Russa. 

Apenas em 1950 ele voltaria a operar com a revitalização da Indústria baleeira incentivada por Stalin. Na ocasião, foi ordenado que os totens restantes ou que haviam sido reerguidos no entorno do Posto, fossem derrubados por tratores. Antropólogos e pesquisadores recolheram alguns deles e os levaram para a União Soviética para serem expostos em museus.

Apesar da forte censura soviética à crenças e superstições, os totens sempre foram tidos como "azarados", embora alguns considerassem que a melhor palavra para descrevê-los fosse amaldiçoados. Homens envolvidos na remoção e transporte das peças para a Rússia sentiram na pele essa "maldição". Ao menos uma das embarcações encarregada da travessia naufragou, outra teria ficado presa em um banco de areia e um acidente durante o desembarque dos objetos do compartimento de carga de um navio custou a vida de quatro homens. 


Os museus que receberam as peças também sofreram estranhos revezes. O diretor de uma instituição em Riga teria sofrido um infarto fulminante no momento que pousou os olhos sobre um dos Totens. Em Kimovsk, nos Urais, um Totem caiu ferindo dois operários que trabalhavam na sua instalação. Em Aktau, o museu se incendiou misteriosamente, logo depois de um Totem ser colocado em um pátio para exposição pública. 

No Museu de Antropologia e História Natural de Leningrado (atual São Petersburgo), um dos Totens dedicado a Vesako se tornou famoso pelos boatos que o cercavam. Diziam que de tempos em tempos, a boca e os olhos da estátua se tornavam vermelhos. Em algumas ocasiões chegaram a verter filetes de um líquido que teria sido identificado como sangue humano. Pessoas que visitavam o Museu se diziam incomodadas ou até mesmo intimidadas pelo estranho Totem que segundo alguns tinha poderes sobrenaturais.

Em 1997, o ídolo mantido no Museu de São Petersburgo passou por uma profunda restauração realizada pelo historiador Petr Boyarsky especialista em cultura e folclore Nenet. Ele encontrou indícios de que sangue misturado a ervas e pigmentos teriam sido usados para pintar a boca e os olhos da estátua, o que explicava a coloração avermelhada que ela apresentava de tempos em tempos.  

Após a restauração, o Totem, considerado o maior e mais imponente exemplar sobrevivente foi enviado de volta para Vaygash e entregue aos descendentes dos Nenets que ainda viviam no Arquipélago. As tribos, no entanto, não ficaram satisfeitas com o trabalho de restauração e decidiram eles próprios cuidar do Totem que foi então colocado no local de onde havia sido arrancado - no alto da Montanha que contemplava o antigo Posto.


A tradição de honrar a figura de Vesako, Deus da Caça, representado no Totem também foi retomada. Desde então, todo ano, uma rena é abatida por um Xamã aos pés da  estátua que é então lavada com o sangue do animal como uma espécie de tributo aos deuses. Ossos de baleia, pele e objetos também são dispostos por homens que vem de longe para fazer suas oferendas e demonstrar respeito como seus antepassados e os pais destes um dia fizeram.

Em 2006, uma Expedição de mapeamento e exploração conduzida pelo Instituto Ártico e Marinho encontrou mais de 400 sítios sagrados devotados a Vesako espalhados ao longo das ilhas que integram o Arquipélago de Vaygach. 

Em muitos deles havia oferendas antigas, ossos e objetos que ficaram intocados por séculos, mas outros pareciam ter sido deixados recentemente.

Ao que tudo indica, o respeito às antigas tradições e costumes parece estar vivo entre os descendentes dos Nenets.

Vesako esteja onde estiver, deve estar satisfeito.

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