sexta-feira, 17 de abril de 2020

Freud - Resenha da hipnótica Série do Netflix


É bom deixar claro logo na primeira frase dessa resenha: Não espere um retrato fiel à respeito do pai da psicanalise na nova série do Netflix, Freud.

Nela, o famoso psiquiatra de Viena, instrumental para que a sociedade moderna viesse a compreender as raízes de suas aflições, é apresentado de maneira bastante diferente. Estamos acostumados a associar a imagem do renomado Dr. Sigmund Freud a um senhor de terno e gravata, cabelos ralos e grisalhos e charuto na boca. Nem lembramos que como todas as pessoas, Freud também já foi jovem, inexperiente e cheio de dúvidas a respeito de seu trabalho. Como todo gênio prestes a dar um grande passo por intermédio de uma teoria inovadora, ele também estava sujeito a incertezas e estas são o pano de fundo para a série. Isso e, é claro, capturar um serial killer

A série austríaca Freud, produzida pelo canal Netflix, está longe de ser uma biografia a respeito do personagem título. Até onde se sabe, o bom Doutor jamais se envolveu em algo remotamente próximo de uma investigação criminal, quanto mais em conspirações palacianas, grupos extremistas separatistas e praticantes de magia negra. Mas é tudo isso que vemos nos oito episódios que compõem a primeira temporada da produção que está disponível para os assinantes.


O resultado poderia ser estranho, mas acaba sendo intrigante.

Nem sempre séries inspiradas por indivíduos ilustres do mundo real obedecem aos ditames da história, não é raro que eles acabem se tornando paródias de quem realmente foram. Algumas vezes o resultado dessa "adaptação" acaba sendo ridículo, como na versão de Abraham Lincoln caçador de vampiros, exagerada como a personificação incorruptível de Eliott Ness ou extravagante como a figura do grande Leonardo da Vinci, em Da Vinci Demons. É fácil deslizar na ficção e criar algo que não passa de uma alegoria da realidade.

O Freud da série é absolutamente fictício e vive situações absurdamente fantasiosas. Entretanto, se o espectador estiver preparado para aceitar isso, e disposto a encarar o bom doutor como um tipo de Sherlock Holmes, irá se divertir.


Na série, Freud (Robert Finster) é um jovem e idealista médico, cheio de planos e disposto a tudo para provar suas teorias. Como residente no principal hospital de Viena, capital do então poderoso Império Austro-Húngaro, Freud luta para ser levado à sério. Em pleno final do século XIX, os demais médicos o veem como uma espécie de charlatão que recorre à controversa prática da hipnose para tratar de seus pacientes. Incapaz de provar seu ponto de vista, sua carreira está na corda bamba, sendo ridicularizado pelas suas ideias e com os superiores prestes a dispensá-lo. Ele recorre a artimanhas, amigos boêmios e extrato de cocaína para suportar a pressão.

O destino resolve dar uma guinada nas coisas quando Freud, na qualidade de médico, acaba sendo convocado pelo rígido Inspetor de Polícia, Alfred Kiss (George Friedrich) para auxiliar na investigação de um violento assassinato. O caso se mostra apenas a ponta do iceberg. Eventualmente a parceria os levará a mergulhar em uma sequência de crimes brutais no coração de Viena, cometidos por pessoas importantes da sociedade local. Freud e Kiss acabam forjando uma inesperada aliança na qual médico e investigador terão de confiar um no outro e desafiar pessoas poderosas se quiserem revelar quem está causando a onda de crimes.

A dupla de protagonistas se complementa de forma magistral: enquanto Freud busca apreciar os crimes de um ponto de vista racional e compassivo, Kiss é pura obsessão e desejo de justiça. Os dois receberão ajuda de uma terceira personagem, a médium Fleur Salomé (Ella Rumpf), jovem recém chegada à cidade que demonstra notáveis habilidades psíquicas. Freud percebe que Fleur pode ser de grande ajuda na investigação e por tabela comprovar suas teorias sobre o poder da hipnose. Mas será que eles conseguirão expor os responsáveis pela grande conspiração e pelos macabros acontecimentos?


Freud é uma série investigativa na qual o mistério vai sendo revelado lentamente, em meio a reviravoltas e cenas de grande impacto. Em alguns momentos as sequências invocam uma aura delirante e decadente, com uma Viena ao mesmo tempo escura e assustadora. O glamour da bella epoque não resiste a imagens cruas que invocam doença, pobreza, brutalidade e a hipocrisia do período. Dos famosos cafés aos reluzentes palácios, dos casebres ordinários aos hospitais abarrotados, a Capital Imperial é reconstruída nos mínimos detalhes com todo seu esplendor gótico.

Com uma produção extremamente caprichada, Freud é um espetáculo visual. Figurino, direção de arte e iluminação funcionam perfeitamente, construindo o cenário no qual a trama se desenvolve. A escolha do elenco também é perfeita. Os personagens possuem rostos marcantes e os atores - todos eles austríacos, tem atuações na medida certa. Robert Finster defende bem seu papel como um Freud em certos momentos perdido em divagações e alucinado com cocaína. Contudo, são Ella Rumpf como a médium atormentada por um passado traumático e George Friedrich como um obstinado homem da lei quem brilham mais intensamente. O Inspetor Kiss é aliás um dos personagens mais intrigantes, com sua noção dúbia de honra e justiça e uma atuação poderosa.


O roteiro se vale de elementos interessantes do período histórico, uma época de grande intriga quando o Império Austro-Húngaro enfrentava a ameaça de dissidentes e rebeldes. O panorama político não poderia ser mais conturbado e no horizonte já podiam ser vistas as nuvens escuras que acabariam resultando na Grande Guerra. Outro assunto que ganha destaque é o início do movimento espiritualista, quando sessões de mediunidade atraíam a atenção da alta-sociedade. Além do espiritismo, o mundo do oculto também e retratado, com direito a lendas, folclore e bruxaria desempenhando um papel marcante na trama.

Mais do que um drama policial, Freud consegue construir uma atmosfera de suspense e, em certos momentos, do mais puro horror. Algumas cenas são bastante impactantes, com doses generosas de sangue, sexo e violência que jamais parecem gratuitas.

Cada episódio tem um título sugestivo: Dissociação, Regressão, Desejo, Catarse e assim por diante. Eles apresentam as ideias contidas na teoria de Freud levadas a prática por circunstâncias absurdas, no caso, uma série de crimes macabros. Aqueles que assistirem aos episódios esperando algo mais convencional, podem se desapontar, mas a série jamais deixa de ser interessante.


Para quem quer fugir da mesmice dos dramas policiais procedimentais, e ter acesso a algo diferente, Freud é uma boa pedida. E pede por uma maratona nesses dias de confinamento.

Com o interesse global que a série causou, tudo indica que em breve tenhamos uma segunda temporada. O episódio final deixa propositalmente algumas pontas soltas e nos faz imaginar como ela pode continuar. Se conseguir manter o nível, que venha logo.

Trailer:



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