sexta-feira, 3 de abril de 2020

Medicina Cadavérica - A bizarra história dos Devoradores de Múmias


Dizem que quase todas as descobertas tem início com alguma necessidade.

No século XVII, pintores precisavam de um elemento escuro que se combinasse com as cores de suas tintas, em especial o marrom, para gerar diferentes matizes. O marrom escuro, o marrom sombreado, o marrom cobreado, todos pareciam ter o mesmo tom castanho que não se encaixava no que os artistas desejavam colocar na tela. Para solucionar o problema decidiram recorrer a uma fonte inusitada: a sepultura!

Uma mistura de tinta com pequenos pedaços de cadáveres, em especial de múmia foi a solução para chegar à cor desejada. Do século XVI ao XIX, muitos pintores recorriam a essa bizarra fonte, que continuou disponível até o o início do século XX. Em 1915, um vendedor de tintas londrino comentava que uma múmia poderia produzir material suficiente para durar 20 anos. E de todas as múmias existentes, as egípcias eram as que ofereciam melhores resultados.

Pintores renomados do século XVII como Eugène Delacroix, Sir Lawrence Alma-Tadema, e Edward Burne-Jones eram apenas alguns que usavam esse pigmento extraído de múmias para realçar o marrom. Em alguns lugares chamavam a cor de "mummy brown" (marrom múmia).

Mas não eram apenas os artistas que estavam recorrendo às propriedades especiais de cadáveres antigos reduzidos à pó. Desde o século XII, europeus estavam consumindo múmias egípcias como remédio. Nessa época, muitas múmias eram trazidas do Norte da África reduzidas à poeira, combinadas com outros ingredientes para criar valiosíssimas misturas, vendidas à peso de ouro. Mas é claro, nem toda matéria prima vinha de múmias. Muitas pessoas inescrupulosas usavam o que tinham ao seu alcance, oferecendo os restos de qualquer cadáver às suas misturas.


Pode parecer errado, estranho ou simplesmente bizarro, mas a prática de ingerir pedaços de cadáver - quanto mais antigos melhor, era tão corriqueira que ninguém parecia se importar com ela. Quando o objetivo é garantir uma vida mais longa, quem se importa em comer um morto?

A prática de comer múmias alcançou seu auge na Europa do século XVI. Múmias podiam ser encontradas nas prateleiras dos apotecários - os farmacêuticos da época, em várias formas desde pedaços inteiros até já reduzidas a pó e guardadas em frascos. Os apotecários mais conceituados podiam inclusive moer o pedaço desejado - um dedo, uma orelha, um nariz, diante do consumidor para atestar a pureza e demonstrar que não haveria qualquer mistura. Uma vez moída, a poeira era pesada cuidadosamente e vendida a um preço exorbitante - quanto mais pura, mais cara. Dali seria misturada a outros ingredientes e receitada como remédio para as mais variadas aflições.

Mas de onde vinha a crença de que múmias podiam ser usadas como remédio?  Por que os europeus achavam que consumir os restos de um cadáver milenar poderia restaurar sua saúde? A resposta, provavelmente vem de uma série de mal entendidos.  

Hoje em dia quando pensamos em Betume, a maioria das pessoas imediatamente associam ao asfalto usado nas ruas e estradas modernas. No mundo antigo, essa substância escura e pegajosa podia ser encontrada em fontes e poços, sendo comum no Oriente Médio (o livro do Gênesis o destaca como um dos materiais usados na construção da Torre de Babel). Os antigos usavam o betume para proteger objetos de madeira contra a ação de insetos, criar uma coloração e produzir um efeito de brilho fosco, como uma espécie de verniz natural. Eles também usavam o betume na medicina. Quando aquecido, o betume se tornava viscoso, mas ao secar endurecia, fazendo que fosse útil para estabilizar ossos quebrados, criando talas. Ele também podia ser aplicado sobre ferimentos, servido como um tipo de resina que prevenia hemorragias.

Mas os usos para o betume não se limitavam a isso. No século primeiro, um naturalista romano chamado Plínio, o Velho recomendou que as pessoas ingerissem betume com vinho para curar tosses crônicas e disenteria ou que o combinassem com vinagre para dissolver coágulos do sangue. Outros médicos romanos receitavam o betume no tratamento de cataratas, dor de dente e doenças de pele.


Betume em estado natural era muito comum no Oriente Médio. Ele se formava em bacias geológicas a partir dos restos de plantas e animais. No século I a.C, o filósofo grego Dioscorides escreveu que o betume do Mar Morto era o mais puro para uso medicinal. Ele não estava errado: a substância tinha propriedades anti-microbiais e cicatrizantes.

Diferentes culturas atribuíam ao betume os mais variados nomes. Médicos persas se referiam a ele por um termo que podia ser traduzido como "grude", mum. No século XI, o famoso médico Avicenna usava a palavra "mumia" (grudento) para se referir ao betume medicinal.

Os antigos egípcios, dentre todos os povos antigos, foram os que encontraram maior uso para o betume medicinal. Eles o usavam como um dos ingredientes mais importantes no processo de embalsamar seus mortos. Estes eram pintados com betume para conter a deterioração e garantir assim sua preservação. Quando os europeus viram pela primeira vez os cadáveres escurecidos removidos das tumbas do Egito, concluíram que tinham aquela coloração e ficavam preservados por conta do betume - ou mumia. Passaram então a chamar esses cadáveres de "múmias".

Muitos médicos do período cogitavam que os cadáveres eram tão bem preservados por conta do fato dos antigos consumirem grande quantidade de betume em vida. Isso ajudou a criar a ilusão de que o betume era um tipo de Panacea Universal, capaz de curar praticamente tudo.

A procura pelo betume medicinal levou, é claro, à uma escassez da substância. Não haviam mais fontes naturais a serem exploradas e o preço atingiu cifras altíssimas. A solução? Que tal recorrer ao betume que foi usado para embalsamar os cadáveres egípcios? Foi assim que surgiu a prática pouco ética, absurdamente imoral e francamente bizarra de raspar o betume da pele dos corpos.


Comer múmias pelas reservas de betume medicinal em seus corpos parece algo extremo, mas esse comportamento tinha um outro motivo. As pessoas acreditavam que além do betume, as múmias guardavam em seus restos ressecados uma reserva de energia mística benéfica, algo que não se esvaía mesmo após a morte. Aquelas pessoas eram tidas como uma espécie de depositário de conhecimento e sabedoria ancestral. O ato de consumir partes de uma múmia, transferia essa "energia" para os vivos, e os fortalecia, garantindo assim uma vida longa e saudável.

Os europeus conheciam o Egito e consideravam a nação um lugar exótico que um dia havia abrigado um povo avançado em várias áreas de entendimento. A exploração da região por europeus se intensificou no século XII e XIII, e seu interesse continuou crescendo ao longo dos séculos.

O interesse pelas múmias e suas propriedades medicinais se intensificou da mesma maneira. Os ricos e prósperos do período desejavam ter acesso às fórmulas criadas à partir das múmias. Não faltavam então pessoas especializadas em obter a matéria prima para os apotecários trabalharem. O intrépido comerciante britânico John Sanderson se tornou notório por trabalhar com esse tipo de mercadoria. Seu nome era sinônimo de material de qualidade, já que ele operava navios na rota do Mediterrâneo incumbidos de trazer do Egito os melhores espécimes. Em 1586 ele contrabandeou de uma tumba egípcia nada menos de 300 quilos em pedaços de múmia, todas "antigas e cobertas de betume negro". Não há dúvida que esse carregamento fez a fortuna de Sanderson.

 Mas nem todos os comerciantes tinham sua credibilidade.

A medida que a medicina extraída de múmias se tornou popular no oeste, mercadores precisaram encontrar novas maneiras de suprir a demanda. Tomé Pires, um apotecário português do século XVI, em viagem para o Egito escreveu que mercadores "algumas vezes tentam passar carne de camelo curtida e queimada como múmias humanas". Guy de la Fontaine, um médico do Rei de Navarra, em uma visita ao Egito em 1564 perguntou a um comerciante de Alexandria se os cadáveres que ele vendia haviam sido encontrados em alguma tumba antiga. O mercador riu e disse que ele próprio comprava os cadáveres e os embalsamava. Fontaine descrevia a seguinte cena em seu diário de viagem: "Os corpos pertenciam a escravos, jovens e velhos, homens e mulheres, que haviam sido indiscriminadamente coletados. O mercador não se importava com a doença que os havia matado e os embalsamava após cobrir com óleo escuro de palmeira. Para quem os visse, pareceriam múmias".


Pior ainda eram os comerciantes cínicos que simplesmente escavavam cemitérios antigos na Europa em busca de ossos e restos humanos. Ofereciam esses restos, devidamente pintados com tintura preta, como autênticas múmias egípcias, encontradas em túmulos com mais de mil anos. Ganhavam verdadeiras fortunas enganando os crentes, oferecendo a eles cadáveres de pessoas mortas há poucas décadas.

Mas nem todos os médicos e apotecários eram favoráveis à medicina cadavérica. Aloysius Mundella, um filósofo do século XVI chamava a prática de "abominável e detestável". Leonhard Fuchs, um médico alemão, aceitava o uso de múmias estrangeiras, mas rejeitava a substituição por espécimes locais. Ele questionava: "Quem pode aceitar tal coisa e se mostrar chocado com o canibalismo praticado pelos povos selvagens"? Defensores da prática, como o médico do Rei Charles II, se esforçavam por diferenciar comida e medicina. Charles supostamente consumia um extrato extraído de múmias egípcias como uma espécie de tônico ao longo de toda sua vida adulta.

As dúvidas a respeito da procedência das múmias e origem dos restos fez com que o comércio de múmias egípcias aos poucos declinasse na Europa. Ele, no entanto, não chegou a desaparecer por completo, já que os mais ricos podiam encomendar exemplares autênticos e despachar emissários para adquirir as peças pessoalmente. Aqueles que não tinham a mesma comodidade tiveram de improvisar. Aos poucos um mercado que usava partes de pessoas mortas recentemente começou a florescer. Um tipo de medicina que aproveitava pele, ossos, cabelos, secreções e até mesmo excreções era praticada clandestinamente. Os apotecários que defendiam essa medicina cadavérica compravam entre outras coisas gordura, cérebros frescos, placenta, sangue menstrual, cera de ouvido, urina, pedras dos rins e mesmo fezes, para usar como ingredientes em suas poções medicinais. Em 1643, Oswald Croll, escreveu em um tratado muito popular que crânios de três crianças mortas recentemente poderiam ser moídos e combinados para criar um pó que servia como remédio para epilepsia.

A Igreja Católica como seria de se supor condenou veementemente a prática da medicina cadavérica e ameaçou excomungar aqueles que a praticassem. Contudo, uma vez que a maioria dessas pessoas tinha posses e muitas vezes faziam parte da nobreza, a condenação foi muito mais simbólica do que prática. Além disso, alguns alegavam que o princípio do consumo dos restos humanos remetia ao dogma cristão da eucaristia, na qual simbolicamente os crentes consomem a carne e o sangue do Cristo transubstanciado na sagrada hóstia.


Felizmente, aos poucos, a prática de devorar múmias foi perdendo adeptos.

Os avanços da medicina, sobretudo à partir do século XVIII ajudaram a remover a suposta aura de cura existente ao redor das múmias e das substâncias usadas para sua criação. Poucos médicos modernos estavam inclinados em indicar a ingestão de múmias como uma forma de tratamento contra os males do corpo. Isso não significa dizer que a prática foi totalmente esquecida nos séculos seguintes, pelo contrário, ela experimentou uma revitalização no final do século XIX, quando a Egiptologia ganhou enorme popularidade. Na ocasião, múmias foram novamente removidas de suas tumbas e contrabandeadas para a Europa com o intuito de serem moídas e transformadas em remédios - provavelmente, os mais caros e exóticos placebos do período vitoriano.

Estranho, imoral e bizarro como pode nos parecer, a Medicina Cadavérica apenas demonstra até onde as pessoas, não importa o tempo, não importa o momento, estão disposta a ir para obter curas milagrosas.

3 comentários:

  1. É curioso como eles praticavam isso e viam as tribos canibais como "selvagens", quando essas tribos - muito provavelmente - usavam de justificativas parecidas para o mesmo hábito. É bizarro como a humanidade consegue a contradizer, criando desculpas para praticar atos, que ao serem feitos por outros, são considerados errados. Me pergunto quais são as contradições desse tipo - não tão bizarras quanto essa - a humanidade vem cometendo nessa geração.

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