sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Kraken - Os Mitos sobre Monstros Marinhos Gigantescos

  

"O maior e mais terrível monstro dos mares"

Era dessa forma que um raro documento náutico redigido no século XII tratava do avistamento de uma criatura lendária para os povos do norte da Europa.

A criatura em questão, presente no folclore de toda Escandinávia, era conhecida como Kraken, uma besta que habita as profundezas insondáveis e gélidas do mar. Ele era definitivamente um monstro marinho, ainda que não uma serpente, uma baleia de proporções colossais ou um peixe gigantesco como a maioria das bestas oceânicas são descritas. O Kraken era uma monstruosidade diferente, tomava emprestado a forma de outras criaturas bizarras para construir para si uma identidade a ser temida.

De muitas formas, o Kraken das lendas parecia o resultado da combinação de um polvo gigante e de lulas com dimensões inacreditáveis. Certamente tais animais, chamados de cefalópodes, podem crescer até proporções assustadoras, atingindo comprimentos tentaculares que se estendem por mais de 12 metros. O Kraken das lendas, entretanto, era muito maior que isso. Ele superava as maiores lulas e polvos encontrados nos oceanos profundos da Terra. Se levarmos em conta as narrativas épicas sobre avistamentos do monstro, estaríamos falando do maior animal do planeta, superando e muito a baleia azul. 


As lendas nórdicas à respeito do monstro, dão conta de que seus tentáculos poderiam atingir incríveis 80 metros de comprimento total. A cabeça da besta teria as dimensões de um navio com olhos vítreos com nada menos do que um metro e meio de diâmetro. Já a sua boca poderia engolir um homem adulto de uma única vez, levando-o para um estômago em que uma bile corrosiva o dissolvia ao longo de dias. Por sinal, um dos maiores temores entre os navegadores era ser engolido por inteiro e permanecer vivo amargando um suplício hediondo no interior da fera. 

O Kraken descrito nas Sagas Vikings seria capaz de puxar embarcações para as profundezas, afundar grandes barcos à remo e afogar tripulações inteiras. Seus acessos de fúria eram incontroláveis e resultavam nos maremotos que assolavam o litoral. Para apaziguar a fúria dos elementos, ocasionada pelo monstro, tribos nórdicas realizavam sacrifícios, separando jovens virgens ou meninos de cabelos claros, para satisfazer o apetite da criatura. Os escolhidos eram amarrados em postes e colocados na praia para que a alta da maré os afogasse. Em outras circunstâncias podiam ser levados para alto-mar, e lá um sacerdote lhes cortava a garganta e jogava nas águas esperando que o sacrifício fosse o bastante para acalmar o monstro. 

A existência do Kraken, da qual ninguém duvidava, causava temor mesmo nos marinheiros mais experientes. Tão aterrorizante era seu nome que muitos navegadores temiam sequer proferir em voz alta quando estavam em alto-mar. Havia a crença de que eles poderiam ser conjurados se o nome fosse repetido muito frequentemente. Entre as muitas narrativas algumas dão conta de incríveis façanhas que esses monstros podiam realizar com seu tamanho e força titânicos. O mero rugido trovejante do Kraken seria capaz de estourar os tímpanos dos marinheiros se produzido a menos de 100 metros de distância deles. Um agitar dos seus tentáculos criaria ondas gigantes, com mais de 15 metros que viravam embarcações. O aperto dos tentáculos, grossos como troncos de árvores, podiam despedaçar mastros e botes como se fossem gravetos. As ventosas distribuídas ao longo dos tentáculos quando se fixavam em uma pessoa jamais soltavam, e se elas se prendessem na face de um pobre coitado, arrancavam seu rosto por inteiro. Ainda segundo as narrativas, a carne da criatura era tão grossa que arpão algum a penetrava. 

Mesmo as maiores baleias fugiam da fera quando esta saia à caça. Faminto, o Kraken era uma verdadeira força da natureza devorando o que estivesse em seu caminho com voracidade inigualável. Grandes carcaças de cetáceos quando apareciam nas praias com marcas distintas de dentadas, eram creditadas ao ataque de um Kraken e nenhum barco ousava sair por pelo menos uma semana. 

Nada podia pará-los, nada poderia detê-los.


Mas, se levarmos em conta todas as lendas da mitologia da Escandinávia, o Kraken pode não ser o maior monstro marinho presente nas sagas épicas. Há coisas ainda maiores nos mares, ou assim se acreditava.

Uma das narrativas náuticas mais famosas é creditada a Orvar-Oddr, um renomado herói e explorador Escandinavo, cujas aventuras fazem parte de um longa crônica redigida por volta do ano 1200. A saga original contém algumas das mais fantásticas descrições sobre criaturas marinhas. Muitos historiadores e especialistas em folclore nórdico acreditam que ela contém algumas das mais completas descrições sobre o Mito do Kraken, mas que não se limitam a esse monstro. 

Um trecho em particular afirma o seguinte:

"Vou contar a vocês sobre dois tipos de monstros marinhos que habitam as águas gélidas. Um deles é chamado Hafgufa (névoa marinha) e outro é o Lyngbakr (costas de urze). Ele (o lyngbakr) é a maior baleia do mundo, já o hafgufa é o mais perigoso monstro dos mares. É da natureza dessa criatura engolir barcos e homens, e até mesmo baleias por inteiro, se elas estiverem ao seu alcance. Ele fica submerso por dias, e quando vêm à superfície parte a água apenas o suficiente para que seu enorme nariz em forma de bico apareça do lado de fora. A criatura aguarda até a mudança das correntes e então mergulha uma vez mais. Se durante o tempo em que ele está respirando, um barco o atrair, tudo estará perdido para esses marinheiros. O monstro capta o cheiro dos homens e dá início à sua caçada que termina geralmente em naufrágio e morte".

Ele continua mais adiante:

"O Hafgufa possui enormes braços (tentáculos) que são compridos como pontes e mais grossos do que qualquer corda jamais fiada. Ele agarra os membros dos homens e os puxa com força lançando-os ao mar e então para sua goela voraz. Quando surgem na superfície eles se agarram em qualquer coisa e as puxam para o fundo na expectativa de ser comida. Homem ou barco, pouco importa, o abraço da Hargufa é a perdição".


A descrição parece bastante condizente com as famosas histórias sobre os Kraken, se consideramos que os braços da Hafgufa seriam também tentáculos. Contudo mesmo o Kraken com seu tamanho colossal parece tímido diante dessas criaturas gigantescas. O Hafgufa na descrição de Orvar-Oddr teria algo em torno de 200 ou 300 metros de comprimento, com um alcance de tentáculo de pelo menos 150 metros. Estes pseudopodes eram tão grandes que nem mesmo as pessoas em terra estariam à salvo de seus ataques. Uma das sagas, de fato, narra como uma vila de pescadores foi arrasada pela criatura que lançou seus tentáculos além da praia para capturar e arrastar suas vítimas desesperadas até sua bocarra.

Já à respeito do Lyngbakr, o navegador relata:

"Os lyngbakr são na verdade as ilhas que desaparecem misteriosamente, afundando de uma hora para outra. Todo homem do mar já viu uma ilha desaparecer, mas a maioria não tem explicação para tal coisa. A explicação é uma só, o lyngbakr vem à superfície e dorme com parte de seu dorso para fora. Por muito tempo, a criatura fica imóvel e nesse tempo, a "ilha" é coberta de terra e até mesmo vegetação - as urzes nas costas do monstro que dão nome a ele são as plantas que se fixam com mais facilidade. Se tempo suficiente passar, até montes se erguem nas suas costas. Ignorando a origem da ilha, e até mesmo que se trata de um ser vivo, pessoas passam a habitar a superfície das costas da imensa baleia, sem saber do que se trata. Não há nada que um homem possa fazer para perturbar o sono de um lyngbakr e este pode dormir por séculos. 

Algumas vezes, no entanto, aqueles que moram em tais ilhas sentem o chão estremecer e se mover sob seus pés como se o solo fosse acometido por tremores. Nada mais são do que os espasmos do monstro evidenciando a sua fome. Isso é sinal de que ele está prestes a despertar. E quando tal coisa acontece, tudo aquilo que está sobre ele, sejam casas ou pessoas, acaba sendo arrastado para o fundo quando ele mergulha".


Um documento do século XVI, o lendário Konungs skuggsja, que pode ser traduzido como "O Espelho do Rei" (sobre o qual já falamos aqui no blog - Leia no Link) descreve a Lyngbakr como algo realmente grande e temível: 

"Existe um monstro que permanece um mistério, e que só é mencionado quando se fala de seu tamanho que para a maioria das pessoas é inacreditável. Apenas alguns poucos sábios podem falar a respeito dele com autoridade, pois são raros os indivíduos que sabem de sua existência. Tal monstro não aparece perto da costa onde os pescadores lançam suas redes, mas em águas profundas. Não se sabe quantos deles existem, provavelmente não mais do que um ou dois em toda extensão marítima. O nome deles em nosso idioma é LyngbakrA criatura vista da superfície mais parece uma ilha do que um animal. Dizem que é possível desembarcar e andar sobre ele por horas sem chegar ao outro lado. Quando ele está dormindo é inofensivo, permanece imóvel por dias, mas quando desperto é mortal pois se alimenta de tudo que consegue alcançar".

O mesmo livro descreve os horríveis hábitos alimentares da Ilha monstruosa:

"É dito que faz parte da natureza desses monstros empregar estratégias para atrair presas. O Lyngbakr pode vir à superfície abrindo sua bocarra para fora e soltando um sonoro arroto. Isso libera na superfície uma quantidade enorme de peixes semi-digeridos que ficam boiando acima dele, o que atrai cardumes grandes e pequenos, interessados em se alimentar do refugo. Mesmo homens em barcos de pesca são atraídos pela fartura de pesca. Mas estes não sabem o perigo que correm. O monstro mantém sua bocarra aberta e quando sobre ela estão presas suficientes, ele simplesmente a fecha, engolindo tudo. Assim que o estômago está cheio, o lyngbakr mergulha".


Além desses relatos, existe uma terceira fonte escrita pelo marinheiro sueco Jacob Wallenberg. Seu livro, Min son på galejan (que pode ser traduzido como "Meu filho nos baleeiros"), publicado em 1750, tenta diferenciar o Kraken e outros monstros marinhos maiores e mais ameaçadores:

"O Kraken das lendas é um animal mortal. Ele se mantém no fundo do oceano, cercado de cardumes que servem de comida e são alimentados pelo seu excremento em contrapartida. O Kraken não precisa respirar, vindo à superfície apenas quando é atraído pela presença de comida. Embora prefira cardumes e baleias como alimento, ele pode atacar embarcações e devorar homens. Nenhuma embarcação é capaz de resistir à sua investida. Seus tentáculos são letais, podendo agarra e puxar as presas para sua boca em forma de bico".

Contudo, Wallenberg deixa claro que existem "monstros ainda maiores nesses mares":

"Há, no entanto, animais colossais que superam o Kraken em tamanho atingindo as dimensões de pequenas ilhas, atóis e fiordes. São tão grandes que em suas costas cresce um ambiente propício a ser usado como moradia por seres humanos e toda sorte de animais terrestres. Elers vivem ali sem se dar conta que estão nas costas de um monstro marinho dormente. Árvores e terra seca pode surgir no dorso desses seres e até pequenos montes que despontam convidativos. Não há dúvidas de que esse seria o equivalente ao próprio Leviatãs citado pela Bíblia".

O Leviatã da Lenda bíblica é citado no Livro de Jó, e tratado pela Igreja Católica como um dos Príncipes do Inferno, que representava o pecado da Inveja. A existência desse monstro marinho era tratada com seriedade pela Igreja Medieval que atestava sua existência reputando a ele o posto de "maior e mais terrível das feras que habitam os oceanos". A origem do Leviatã, possivelmente está ligada a um mito ainda mais antigo e que pode ter sido incorporado ao texto bíblico - Tiamat. 


O Deus da Mesopotâmia Tiamat era tratado como senhor dos mares e oceanos, regendo ainda os rios e lagos que podiam ser seu habitat. Em algumas versões, ele era considerado como uma deidade feminina, uma vez que teria dado à luz aos tubarões, baleias e sereias que habitavam os mares bravios. As tempestades e furacões eram resultado de sua cólera, algo considerado cotidiano. Apesar de seus arroubos de fúria, ela era uma das divindades mais cultuadas do Panteãos Semítico, recebendo tributos na forma de peixe, pérolas e frutos do mar. Uma taxa era comumente cobrada dos pescadores, quando retornavam com suas redes cheias, costumava-se deixar ao menos dez porcento da coleta antes de chegar ao porto, como forma de agradecer à Deusa e não incidir na sua ira.

Como acontecia com frequência, a Igreja Católica demonificavam divindades do passado e reputava a elas um caráter maligno. O Leviatã, provavelmente inspirado por Tiamat, compartilhava com ela a fúria que se tornaria lendária nas palavras do poeta William Blake: 

"A cabeça do Leviatã, grande e magnífica tal como a de um tigre, sulcada por listras de verde e púrpura. Em breve vimos a bocarra se abrir e as guelras pendendo sobre a espuma enfurecida, tingindo de negro o abismo com raias de sangue, avançando contra nós, simples homens, com toda a fúria de uma existência espiritual."

Nos dias atuais, avistamentos de monstros marinhos de proporções colossais se tornaram cada vez menos frequentes. Aqueles que são céticos podem dizer que provavelmente isso se deve ao fato de tais animais jamais terem existido, outros, podem dizer que eles simplesmente deixaram de existir e se tornaram extintos. 

Contudo, nem todas as histórias sobre monstros marinhos figuram no campo dos mitos. 


Em 2004, uma expedição patrocinada pelo Museu Nacional Oceanográfico do Japão conseguiu pela primeira vez fotografar uma Lula Gigante viva, perto das Ilhas Ogasawara. O espécime registrado a uma profundidade de 900 metros se agarrou a uma isca e lutou por quatro horas para se libertar. No processo, ela fugiu amputando um trecho de tentáculo com 5,5 metros. A existência das Lulas Gigantes já era conhecida pela ciência, mas imaginar que nunca tais criaturas foram encontradas com vida nos faz pensar no que mais pode existir nas profundezas insondáveis e se as lendas não passam disso...

Lendas.

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