segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Acordando aos gritos - Sonhos e Pesadelos em suas aventuras de RPG


"Você ouve um som vindo de baixo da cama. Um ruído úmido e estranho, como o som de peixes se debatendo em um balde ou de algo repulsivo sendo agitado num caldeirão. Você para por instante, fica esperando... torcendo para ter sido uma impressão, para ter sido sua imaginação. Mas então ouve de novo e acaba indo olhar, mesmo que todas as fibras de seu corpo digam para não fazer isso. É mais forte do que você, simplesmente não tem como evitar...

E quando você se abaixa para dar uma boa olhada, consegue ver apenas tudo escuro. Não tem nada ali. Então se permite um sorriso condescendente. 

"Tá vendo? Não tem nada, idiota"

Mas é então que algo se move, algo no escuro, na parte mais funda de baixo da cama. Algo lança tentáculos grudentos que seguram o seu rosto. Tem uma coisa ali, uma coisa nojenta, uma coisa asquerosa. E ela te puxa para baixo da cama. Não te puxa, te arrasta, e você não consegue evitar.

Ele está preso no seu rosto, puxando cada vez mais, para uma massa enorme cheia de olhos cegos, bocas com dentes pontiagudos e bile amarela que escorre. Ele está te levando lá para baixo com um objetivo e você sabe o qual é... ele vai te devorar... não tem como evitar. 

E então você acorda! 

Leva alguns segundos para perceber que foi tudo um pesadelo, mas os contornos do quarto parecem estranhos e mesmo a sensação reconfortante de estar desperto não evita que você olhe de soslaio para o lugar onde poucos segundos atrás, algo medonho o puxava para a morte certa.

Um pesadelo!

"Foi só um pesadelo" você repete uma e outra vez.

 Mas então porque você não consegue parar de tremer?" 

*     *     *


É um clássico consagrado pelos Filmes de Terror.

A sequência de pesadelo está em quase todos os filmes do gênero criando situações bizarras, assustadoras e confusas das quais os personagens não conseguem se esquivar. Repare bem. Nos filmes, séries, romances e contos, os sonhos desempenham um papel fundamental para construir situações de pavor. Nele os protagonistas, mesmo os mais indestrutíveis são confrontados com situações absurdas e nem mesmo suas habilidades conseguem livrá-los. Os pesadelos são o momento em que os protagonistas sofrem algum tipo de baque e precisam ponderar sobre sua capacidade de enfrentar seu destino.

Não por acaso sonho em alemão tem a tradução "traume" que remete a trauma. Nos reinos profundos do pesadelo, o horror prospera, a criatividade e imaginação alimentam nossos temores com um combustível de alta octanagem. As coisas que criamos quando nossa percepção vaga nos recessos oníricos  são únicas. 

Eu me pergunto então, porque usamos tão raramente nas mesas de RPG esse elemento consagrado nas outras vertentes do horror. Por que sonhos não desempenham um papel mais marcante nos cenários? Por que pesadelos raramente aparecem além de uma cena breve? Por que não damos a eles a oportunidade de causar um dano na confiança dos personagens (e por que não, dos jogadores?)

Que tal lançar algumas ideias para inserir em aventuras de horror pesadelos sufocantes e situações limítrofes?  

Aqui vão algumas sugestões de como trabalhar os pesadelos mais medonhos e fazer com que os personagens tenham medo de dormir.

1) Nunca diga que é um Pesadelo


"Eu continuo tendo pesadelos. De fato, eu tenho pesadelos tão frequentemente que eu já deveria ter me acostumado com eles. Mas não consigo. Ninguém realmente se acostuma com pesadelos".

Uma das formas mais eficientes de aterrorizar os seus jogadores é empregar a tática de fazer com que o sonho pareça verdade. Em certos momentos do jogo, é interessante usar esse expediente para transmitir uma sensação de estranheza e horror aos personagens. Lembrando que os sonhos são totalmente caóticos e nunca se sabe o que pode acontecer neles, é válido fazer literalmente qualquer coisa neles.

Ao descrever um sonho jamais confirme ou deixe subentendido que o personagem está sonhando. Narre a cena como se ela estivesse acontecendo, dando a entender que ela faz parte do cenário e que ele está seguindo normalmente. Evite portanto começar a cena logo depois dos personagens terem dito que iriam dormir ou descansar - a não ser que a cena se inicie com "algo os acorda no meio da madrugada".

O ideal para uma sequência de sonho/pesadelo é manter o ritmo de uma cena comum. Isso envolve perguntar o que o personagem vai fazer, rolar dados para determinar sucesso ou falha e descrever os aconteciemntos em detalhes. Entretanto, diferente de uma cena real - que está realmente acontecendo, o Guardião tem liberdade de dar ao sonho/pesadelo o desfecho que achar mais adequado. Geralmente com um choque considerável - o personagem morrendo violentamente, fazendo algo que julga ser errado (por exemplo matando alguém) ou ainda um incidente traumático.

Eu usei essa técnica do pesadelo repetidas vezes, e posso dizer que elas geralmente acertam em cheio.

Em mais de uma ocasião as cenas transcorreram como se a sessão estivesse continuando, com direito aos personagens enfrentando inimigos, criaturas ou horrores que brotavam repentinamente. Em uma ocasião os personagens se viram diante de horrores do Mythos, tiveram de lutar por suas vidas e acabaram sendo obliterados de forma brutal. Em sonhos, o Guardião pode dar vazão aos seus instintos homicidas e devastar o grupo sem dó, nem piedade.

Em outra ocasião, descrevi uma cena em que o personagem era chamado até sua casa e encontrava a família horrivelmente assassinada por ninguém menos que o matador que eles tentavam capturar. O jogador que controlava o personagem chegou a desconfiar que era um sonho, mas diante dos testes de sanidade, dos rolamentos dele tentando reviver a esposa gravemente ferida e das descrições especialmente sanguinolentas ele acabou achando que era tudo real. Até o momento em que  acena terminou com a família se erguendo como mortos vivos para acusá-lo de negligência.

Ah sim, vale lembrar que tais pesadelos causam uma derrocada acentuada na sanidade, sobretudo quando mais de um personagem teve a mesma experiência, sonhando com exatamente a mesma coisa vista pelos seus companheiros.

Cenas desse tipo são ótimas para criar paranoia, incerteza e horror, mas elas funcionam muito melhor se o pesadelo não for identificado como tal e parecer real... até o último segundo. 

2) Pesadelos são imprevisíveis


"Mas o fato é, sonhos nos pegam despidos de qualquer armadura"

Não há como prever o que acontece nos sonhos e isso é o mais assustador sobre eles. 

Os sonhos (e claro, pesadelos) são limitados apenas pela criatividade das pessoas e não por acaso tem um ditado que diz: "os piores pesadelos povoam a mente de quem tem grande imaginação".

O Guardião não precisa se acanhar em usar os recursos ao seu alcance para transformar um pesadelo em uma cena de terror absoluto. As coisas podem ser bem mais assustadoras, muito mais aterrorizantes e violentas no território dos sonhos. De uma forma geral, os sonhos são um terreno fértil para exageros, cenas surreais e acontecimentos inexplicáveis.

Os personagens em um sonho veem coisas que não conseguem explicar, testemunham acontecimentos desconcertantes e fazem coisas que normalmente não seriam capazes de fazer. Por esse motivo, esqueça os testes, os rolamentos e mesmo a lógica. Se alguém precisa saltar um abismo ou escalar uma montanha, ele simplesmente consegue fazê-lo. Se o sonho for uma situação surreal, exagere mesmo, vá até as últimas consequências se desprendendo da realidade.

Em sonhos, por vezes você surge em lugares diferentes, pessoas que morreram aparecem, animais falam e a paisagem é alteradas num piscar de olhos. A única coisa previsível num sonho é que ele é totalmente imprevisível.

Pesadelos obedecem a mesma máxima, contudo, sempre com um viés assustador. O interior de uma casa pode se tornar uma floresta aterradora, um dia de sol vira uma noite de tempestade num piscar de olhos e uma pessoa ferida mortalmente gargalha sem parar, mesmo com sua cabeça rola pelo chão. Num pesadelo, a norma é mexer com a percepção, invocar cores, texturas, cheiros e sons bizarros à todo momento, tudo com o intuito de tirar o personagem (e o jogador) de sua zona de conforto. 

3) No Pesadelo você é impotente


"Eu lhe darei pesadelos que irão assombrar seus sonhos muito depois de eu ter partido"

Um dos princípios norteadores das ambientações lovecraftianas é que a humanidade é impotente diante dos Horrores do Mythos. Nós somos como peões a serem sacrificados num xadrez cósmico.

Num Pesadelo a coisa é um pouco pior. Nossa vontade não importa. Somos testemunhas dos acontecimentos e não conseguimos nos esquivar deles não importa quanto se lute, não importa quanto se queira. Nos pesadelos mais negros e aterrorizantes, aquilo que nos causa medo e repulsa sempre aparece maior e mais poderoso. Geralmente, nós não temos chance de reagir ou de evitar o pior...

Não importa o quão competente você seja quando está acordado, num pesadelo você sempre estará em desvantagem. Você irá se afogar não importa o quanto seja bom nadador. Irá cair, não importa o quão bem escale. Suas pernas sempre irão fraquejar na hora de fugir. Nos pesadelos, as habilidades estão em segundo plano cedendo lugar a fatalidade.

Os personagens/jogadores não tem controle sobre esse mundo, podem até imaginar que possuem alguma influência, mas esta é mera ilusão. Em termos de jogo, imagine sempre uma falha crítica e o quanto esta poderia ser trágica para o personagem. Pesadelos são recheados de fracassos críticos dos quais não há como escapar ou se recuperar.

Finalmente, um Pesadelo é uma situação de limite. O fracasso sempre vai acarretar algo pior. Uma queda limitará seu movimento, um ferimento irá sangrar horrivelmente, uma fobia vai te paralisar. Tudo está ali para causar confusão e deixá-lo em maus lençóis. 

4) Nos Pesadelos estão escondidas Profecias


"Eu queria lembrar dos  meus pesadelos, mas não consigo. Eles são apenas um borrão assustador do qual eu não recordo nada. A não ser que eles vão acontecer mais cedo ou mais tarde... eu tenho medo de lembrar tarde demais aquilo que sonhei e entender no último momento o que vai acontecer".

Sonhos e pesadelos universalmente foram tratados como transmissores de profecias.

Desde a Grécia Antiga, os Deuses usavam os sonhos para se comunicar com os mortais e mostrar a eles o que estava por vir seus desejos e vislumbres do inevitável. Em ambientações de horror cósmico, os sonhos podem ter igual função. Eles podem ser usados tanto como recurso dramático, quanto recurso para a própria investigação.

Em um universo no qual os Deuses Ancestrais jamais morrem, mas sonham pela eternidade, as flutuações mentais deles podem ser captadas por sensitivos ou individuos escolhidos. No conto Chamado de Cthulhu, o que é o Chamado senão a influencia do Grande Cthulhu sobre a mente dos humanos. Suas projeções mentais viajam pelo mundo inteiro afetando incontáveis pessoas com as profecias de seu despertar - cultos se formam, sacrifícios são realizados e artistas criam obras influenciadas por ele.

Em determinados momentos um sonho pode fornecer um insight sobre algo que passou batido no curso da investigação, uma pista ou sinais do que está por vir. Eu gosto especialmente dessa última hipótese na qual informações truncadas ou indícios surgem nos sonhos dos personagens.

Uma regra válida é nunca ser claro nessas pistas. Sonhos são a província do surreal e jamais devem ser inteiramente compreensíveis. A interpretação sempre deve deixar em aberto o real significado e este só pode ser compreendido quando está prestes a acontecer.

Maneiras interessantes de usar esse recurso incluem trechos enigmáticos, palavras que não fazem muito sentido ou até o vislumbre de algo confuso que em dado momento não faz sentido, mas que fará em algum momento.

Esse recurso é muito usado em histórias de mistério e suspense. Os investigadores são atormentados por sonhos que parecem se referir aos seus casos, mas ainda assim, detalhes sempre parecem lhes escapar. Por vezes eles podem servir como uma premonição sobre o que aguarda o investigador ou o resultado mais provável de sua busca.

Sonhos e pesadelos são um recurso muito interessante no terror e quando bem usados fornecem um ótimo elemento dramático. 

5) Nem sempre você realmente despertou de um Pesadelo


"Qual o verdadeiro pesadelo: o horrível sonho que você teve dormindo ou a realidade que o espera quando despertar?"

Um dos aspectos mais perturbadores dos sonhos, e claro, dos pesadelos, é que nem sempre sabemos quando eles comecam e terminam.

Imagine um sonho que se iniciq de forma leve, progride para uma série de eventos bizarros e tem um desfecho surpreendente. O personagem acorda na sua cama, arfando, tenso e assustado. Ao menos ele acordou, certo?

Então, repentinamente tudo começa novamente, o horror retorna, os sobressaltos, o pavor... o pesadelo não terminou. Você acorda novamente, ainda mais aterrorizado.

Esse é um expediente muito usado em filmes de Terror que pode ser duplicado na mesa de jogo, causando um choque adicional. Quando bem executado, o tal "pesadelo dentro do pesadelo" funciona muito bem e causa uma desconcertante sensação de que nem tudo é real e que nada é tão ruim que não possa piorar.

Outra opção bastante interessante é fazer com que o pesadelo seja lembrado ao longo do dia. Quem já não teve um pesadelo que o atormentou muito tempo depois de acordar? Pequenas coisas durante o dia acabam lembrando o que foi sonhado e os indício parecem estar em todo canto.

Se um personagem sonhou com um homem misterioso vestido com um manto amarelo que escondia sua face, que tal colocar lembretes disso ao longo da investigação? No dia seguinte, ele vê carros amarelos, um livro com a capa amarela, um sujeito com uma flor amarela na lapela, sua esposa veste um chapéu amarelo... tudo isso serve como um tipo de gatilho lembrando o estranho pesadelo. Seria um sinal? Haveria um significado oculto?

Da mesma forma, um sonho pode ser trazido à tona por alguma coincidência. Nada pode ser mais perturbador do que um determinado trecho de um Pesadelo recente se manifestar quando se está perfeitamente acordado. Que tal o sonho com um ferimento se manifestar com uma dor repentina no mesmo local? Ou então, o dia se iniciar da mesma maneira que num sonho particularmente assustador, progredindo nos mínimos detalhes? Ou ainda, para um efeito mais sinistro que uma pessoa encontrada no dia seguinte lembre alguém visto ao sonhar ou que repita uma frase dita num pesadelo. 

Nada é mais sinistro do que a sensação implacável de que o pesadelo está voltando para assombra-lo, mesmo desperto.

O interessante a respeito de pesadelos é que eles nunca evaporam por completo. Por vezes eles ficam conosco, grudados nas profundezas de nossa mente, retornando quando menos se espera.

*     *     *

Bem, espero que essas ideias tenham ajudado... e que elas possam trazer algum elemento novo para sua mesa de horror.

Bons sonhos e ainda melhores pesadelos.

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